Cosmovisão sertaneja

Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. GUIMARÃES ROSA

“Como venho salientando até aqui, a produção artística, estética e política de Suassuna tem como eixo principal um dispositivo espacial denominado Sertão. Contudo, como vimos também, o Nordeste não é somente esse Sertão suassuniano, mas também o agreste e a Zona da Mata de Gilberto Freyre, universos que se atraem e distanciam contraditoriamente nas dobras do discurso territorial suassuniano. Pertencente ao mundo urbano-litorâneo da Zona da Mata, Suassuna permanece virtual e sentimentalmente ligado ao território sertanejo erigido como forma de um ritornelo existencial, supostamente ao abrigo das forças caóticas da modernidade.

Contudo, esse espaço denominado Nordeste, como o concebemos hoje, é uma construção recente na nossa história, fruto do discurso patriarcal saudosista de uma geração que perdia espaço, tanto social como econômico, como nos mostra Albuquerque Júnior em A invenção do Nordeste e outras artes. E um dos principais representantes desse discurso é o escritor, dramaturgo e poeta Ariano Suassuna. Discurso que não obstante exclui a zona da mata freyriana, privilegiando o sertão com paisagem discursiva da formação brasileira. É o autor paraibano talvez o último dos randes nordestinos, a figura mais representativa ainda viva daquele grupo que criou e faz mover essa máquina chamada Nordeste. Um grupo e uma geração que instituiu um imaginário de Nordeste e Sertão, e que, por conseguinte, o acaba difundido para o restante do país. Logo: Nordeste/Sertão dispositivo espacial, afetivo e existencial, “onde a terra dura e seca recusa o do homem e o ferro da enxada, um Nordeste sem água nem vegetação... um Nordeste definido em termos de carência e de necessidade, um Nordeste chamado sertão”. Para esse grupo o “sertão não encolhe frente ao avanço da civilização ‘modernizadora’, como se supunha, mas cresce e se expande no imaginário: ‘O sertão é o mundo’, dizia Guimarães Rosa”.

Dessa forma, o Nordeste e o Sertão tornam-se visíveis no conjunto da obra de um Ariano Suassuna, bem como nas obras de toda uma geração de artistas armoriais que Suassuna inspirou. Como nos confirma uma das maiores estudiosas sobre o autor, Idelette Muzart Fonseca dos Santos:

O Nordeste e o sertão estão presentes nas obras armoriais: inventário da terra, dos rios, da fauna e da flora, das casas e dos homens, em Marcus Acioly; paixão das paisagens, das cores, dos cheiros e dos ruídos, tanto do sertão quando da zona da Mata, em Maximiliano Campos; enfim, sertão cotidiano e eterno, histórico e mítico, vivo e resistindo às modas, em Ariano Suassuna.

Assim, imerso no fabulário regional, Ariano Suassuna estabeleceu no Sertão nordestino o centro de gravidade de sua obra. Nesse sentido o “escritor da Paraíba desenvolverá um mundo mítico único onde dominarão as imagens do sertão”. Os símbolos e imagens com os quais Ariano construirá o seu castelo sertanejo têm origem na “cosmologia medieval”, pois, para o autor d’A Pedra do Reino, são esses “elementos da imagética armorial que a relacionam com um passado de tradições autênticas brasileiras”. Dessa forma, na sua “busca de imagens míticas milenarmente repousadas no coração de nossa própria terra”, Suassuna realiza um trabalho de reelaboração simbólica desse Sertão. Perseguirá, o autor, os elementos míticos que constituiriam uma pretensa cultura brasileira, uma suposta singularidade que caracteriza nossa gente e nossa gênese cultural. Não foi o único, como vimos, outros já haviam se empenhado numa tentativa de “resgatar a cultura nacional, construindo universos simbólicos habitados por elementos ditos imanentes ao povo brasileiro: cordialidade, mestiçagem, tristeza e tantas outras características”. Para Maria Aparecida Lopes Nogueira: “Com base no seu lugar real e mítico, a Taperoá de sua infância, esse profeta alucinado inventa um mundo cujo núcleo central é a presença simultânea de dois elementos, o popular e o erudito [...]”. É essa paisagem sertaneja que Suassuna privilegia no seu discurso territorial, sendo o local consagrado pelo autor à defesa e proteção de uma arte que se diz autenticamente brasileira.

Como vimos anteriormente, representa essa paisagem o fechamento estético de um espaço geográfico, que remete ao ritornelo de Deleuze & Guattari, enquanto agenciamento territorial. É agenciamento territorial visto tratar-se de “um conjunto de relações materiais e de um regime de signos” que tenta instituir um espaço de resistências às supostas influências deletérias de uma cultura de exportação, representada pela cultura de massa.

Como também já foi dito aqui, esse espaço geográfico Sertão, essa unidade territorial idealizada pelo armorial (ritornelo existencial), pode “ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’”. Dessa forma, o “território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma”. E como já havia afirmado Bachelard: “[...] a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”, logo, a “casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”.

Volto a insistir que representaria, esse fechamento estético de uma região geográfica, na concepção de autores como Suassuna, uma forma de proteção ao processo histórico moderno de desagregação cultural, que segundo alguns, estaria impingindo às culturas periféricas uma forma de desconfiguração de suas raízes.

Outrossim, reforço aqui a ideia de que o Sertão seria uma espécie de heterotopia suassuniana, um “lugar-outro”, ao mesmo tempo real e mítico que, segundo Ariano, deve ser salvaguardado em nome de sua suposta “pureza cultural”, ainda não corrompida pelas forças externas. Segundo Foucault:

[...] a ideia de conseguir acumular tudo, de criar uma espécie de arquivo geral, o fechar num só lugar todos os tempos, épocas, formas e gostos, a ideia de construir um lugar de todos os tempos fora do tempo e inacessível ao desgaste que acarreta, o projecto de organizar dessa forma uma espécie de acumulação perpétua e indefinida de tempo num lugar imóvel, enfim, todo esse conceito pertence à modernidade.

Modernidade esta que nos legou o conceito, para alguns ultrapassado, de Nação e dos sentimentos nacionalistas que esta ficção chamada Estado-nação suscitaria ao incutir um sentimento de pertencimento a um local, a um povo e a uma cultura. São essas mesmas ideias que vemos refletidas na atitude “museológica” de Ariano e dos folcloristas do século XIX, que buscavam fundamentar os discursos nacionalitários no estabelecimento de um vínculo indissociável que uniria povo e nação, vínculo que deveria preservar: um passado imemorial; um espaço sagrado, local de origem, morada e destino; a fonte de uma cultura que representaria toda “atividade criadora que não se aliena, que não perde a sua cor, e seu caráter local”.

Entretanto, volto a frisar, um meio nunca é totalmente isolado em relação aos outros meios, como querem supor alguns pensadores essencialistas, sempre há um deslizamento de um meio em relação aos outros. Dessa forma, os meios sempre estarão abertos ao caos, e sendo ameaçados de esgotamento ou de intrusão. Ao contrário do que insiste o pensamento suassuniano, esse lar “originário”, essa “casa” estrutura que abrigaria supostas essências e purezas culturais não é algo pré-dado, como se ali estivesse desde o começo dos tempos. Assim, o “estar em-casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado”.

Assim, esse espaço limitado e frágil seria ocupado pelo Sertão na obra de Ariano Suassuna. Então, o Sertão se constituirá o “símbolo primário” de construção de toda a sua estética armorial, e o referente de uma fictícia gênese cultural, que brotaria deste solo rústico, pedregoso e árido, mas nem por isso infértil, pois, como atesta Suassuna, o sertão é “ao mesmo tempo desértico, grandioso e épico na Seca, belo, gracioso e fértil quando fecundado pelas chuvas de inverno”. É essa terra “lugar privilegiado de reunião de contrários e por isso o mais representativo da cultura brasileira” – que fornece ao autor paraibano o “universo simbólico de pesquisa e criação”, onde ele vislumbra uma possível “fusão de todos os mitos que habitaram e deram força de expressão à cultura brasileira”. É Francisco Brennand que vem corroborar essa ideia: É no aproveitamento de nossas raízes próprias, no ambiente e no clima tropical em que vivemos, na força rejuvenescedora, na originalidade, na sabedoria com que saibamos explorar a nossa própria tradição, é nessas forças, todas conjugadas, que podemos criar uma arte verdadeiramente brasileira, rica em símbolos, alegorias, emblemas e mitos.

Assim, nas imagens organizadoras do pensamento suassuniano a presença de elementos paradoxais, que dialeticamente interagem – o sertão e o massapê, o bem e o mal, o sagrado e o profano, o espiritual e o corporal, o cômico e o trágico, o sublime e o grotesco –, num jogo de contrastes que podemos encontrar também na arte barroca, uma das principais influências do autor. Então, essas “imagens alimentam um simbolismo mítico onde se conjugam o tempo, o espaço e a religião”. E se a “interpretação dos símbolos é significativa da maneira pessoal de ver o mundo”, vamos encontrar na simbologia empregada por Suassuna os elementos formadores da sua cosmovisão sertaneja.

Outrossim, para Brennand, a dimensão simbólica expressa pela arte é de fundamental importância na constituição de um povo. Diz ele: “Acredito que as forças espirituais de uma nação devem orientar as ações criadoras, a elaboração de mitos, de lendas, de utopias, de formas alegóricas e sobretudo simbólicas, que é igualmente uma tarefa da arte”. E complementa:

Para que um povo possa vir a ser efetivamente grande é essencial que não lhe falte uma vigorosa capacidade para a criação de símbolos e mitos. A função simbólica e a função mítica do espírito são forças que funcionam à semelhança de mapas, guiando a ação humana através da história, criando tudo aquilo que vai sendo antecipado pela linguagem, sempre renovada pela ação fabuladora dos artistas: pintores, compositores e poetas.

Joseph Campbell já havia alertado para a importância do mito na elaboração artística ou de qualquer empreendimento do gênio humano. Segundo ele:

Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos
humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.

Dessa forma, ao artista caberia a criação de um mundo além da realidade imediata. No ato criador há uma apropriação do mundo por parte do artista, um mundo que ele passa a interpretar e representar a partir de sua capacidade metal de simbolizar. Assim,

Mais do que homo sapiens, o homem é um animal simbólico, como definiu o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945). Somos seres simbólicos, e isso faz com que sejamos capazes de inventar e criar símbolos, ordenando e interpretando o mundo por meio de um sistema de representação.

Segundo Cornelius Castoriadis: “Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico”. Entretanto, ainda segundo esse autor, existe um componente essencial no símbolo que deve ser observado: “é o componente imaginário de todo símbolo e de todo simbolismo, em qualquer nível que se situem”. Dessa forma, para Castoriadis, “o imaginário deve utilizar o simbólico, não somente para ‘exprimir-se’, o que é óbvio, mas para ‘existir’, para passar do virtual a qualquer coisa a mais”. Essa afirmação é confirmada por Michel Maffesoli: “Não é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário. A existência de um imaginário determina a existência de conjuntos de imagens”. Um conjunto de imagens que, na cosmovisão sertaneja de Ariano Suassuna, irá se refletir na configuração de um sertão telúrico e mítico. Ainda podemos encontrar em Michel Maffesoli que, o “imaginário é algo que ultrapassa o indivíduo, que impregna o coletivo ou, ao menos, parte do coletivo”. Dessa forma: “O imaginário é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma comunidade, etc. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual”. Refletindo essas palavras pode-se situar todo aquele grupo de pensadores e intelectuais que tomaram para si a tarefa de instituir um imaginário de nação brasileira, grupo do qual Ariano Suassuna herda sua forma de narrar a Nação. Ideal que ele leva adiante ao lançar sua proposta de interpretação da cultura brasileira, através do Movimento Armorial.

Os armoriais, capitaneados por Ariano Suassuna, ainda procuram recriar os símbolos de uma suposta consciência nacional no Sertão e na cultura popular nordestina, especificamente naqueles elementos que, segundo eles, seriam os mais representativos dessa cultura, pois, ainda de acordo com Brennand:

em cada sociedade humana um padrão próprio de atividade criadora que não se aliena, que não perde a sua cor, e seu caráter local. Pertence ao espírito de seu povo e é, muitas vezes, o único elemento capaz de configurar a consciência coletiva da Nação.

Assim, a citação acima espelha o mesmo tipo de ideia que já discuti na primeira parte desse trabalho os armoriais ainda acreditam em uma cultura popular que seria o resíduo autêntico de um povo e de uma nação, como “atividade criadora que não se aliena” por se manter, esse tipo de manifestação, às margens do processo histórico. Mas como foi salientado, esse tipo de pensamento, que fecha a cultura em um compartimento estanque, com a justificativa de preservá-la, produziria uma cultura condenada à morte pois, ao tentar preservar sua suposta pureza, estaria lhe sendo negado o diálogo com a diversidade cultural, que possibilitaria a sua renovação e transformação, e como nos atestou Marc Augé, as culturas “só vivem por serem capazes de se transformar”.

Entretanto, é em busca desse Sertão, berço e casa do que representaria para ele nossa suposta essência como povo, que Ariano Suassuna empreende sua tarefa de dizer a nação. É no Sertão nordestino, mesmo como um resultado de um pensamento dialético em relação ao massapê, que ele buscará os elementos que constituiriam nossa originalidade cultural. Então, ele se atribui a tarefa de decifrar esse solo sagrado, de lhe impor um sentido. Para Suassuna, o sertão se constituirá “a esfinge a resolver, a Onça a domar, mesmo sabendo que essa fera, bela como seja, é hostil e feroz e terminará por nos despedaçar com suas garras”.

Conforme foi mencionado aqui, “os discursos imaginários tem acima de tudo uma ligação estreita com o mundo mítico, particular a cada autor”. E o mundo de Suassuna é o mundo nordestino-sertanejo, este é o centro de gravidade de sua obra. É a partir desse mundo e das imagens que ele evoca, que o escritor paraibano vai desenvolver todo o seu trabalho como artista, como teórico, como pensador da cultura brasileira. Para Maria Aparecida Lopes Nogueira, “o universo suassuniano, em todas as suas dimensões, [é] um universo fenomenal regido pela recriação e reinvenção, pelo reencantamento dos mitos do reino do sertão”.

Entretanto, o Sertão suassuniano não é o sertão real, mas um espaço mitificado onde a realidade sertaneja, em sua “matéria vivida”, é transfigurada em “matéria imaginada”. Dessa forma, Suassuna erige um Reino onde “o real é transfigurado em um mundo menos cruel”, institui um espaço idílico e pastoral de uma infância remota, recomposição da presença/ausência paterna. Esse espaço nasce na cabeça do homem Ariano e nas suas narrativas. Utopia? Certamente um devaneio, que “idealiza ao mesmo tempo o seu objeto e o sonhador”, transformando-o numa figura quixotesca nessa modernidade líquida.

Deleuze afirmara que, “[...] o mundo inteiro é apenas uma virtualidade que existe atualmente nas dobras da alma que o expressa, alma que opera desdobras interiores pelas quais ela dá a si própria uma representação do mundo incluída”. O mundo suassuniano é a representação dessa geografia imaginária urdida pelo autor na dor, na saudade e na tradição, e “os mitos que emergem de suas narrativas se imbricam e nos enredam nesse sertão sonhoso”.

Virtualidade e devaneio, paisagem sentimental e existencial de uma “criança no escuro”, seja lá o que ela for, é “[n]a aspereza do sertão pedregoso, [que] irrompe o encanto, o mistério, o divino, a sagração e a transcendência dos homens e das coisas”. É sobre essa mitologia e simbologia suassuniana e sertaneja que me debruçarei nas linhas que se seguem."

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Fonte:
Reginaldo Aparecido de Freitas: "SERTÃOMUNDO: O território mito-poético e retórico de Ariano Suassuna". (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Literatura, área de concentração em Teoria Literária, linha de pesquisa Teoria da Modernidade, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura. Orientadora: Profª Drª Ana Luiza Andrade). Florianópolis, 2010.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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