Dos seus objetivos e razões



Dos seus objetivos e razões: as questões de Deus, da mente humana e os inícios de toda a filosofia primeira

"Precavidos, pois, sobre as reais dificuldades e exigências das Meditações, resta-nos indagar sobre os seus objetivos e razões. Ora, se o Discurso de 1637 já contém, na sua quarta parte, tal como afirma o próprio Descartes, os fundamentos de sua metafísica, quais sejam, as questões de Deus e da alma humana, o que, exatamente, justificaria, quatro anos mais tarde, em 1641, a publicação de um “pequeno tratado de Metafísica”? O que pretenderia, realmente, esse tratado: corrigir algum fundamento metafísico proposto no Discurso, aprofundar a sua exposição metafísica ou acrescentar-lhe alguns elementos que, porventura, tenham sido ignorados?

Embora essas questões não mereçam rápidas soluções e despertem respostas diferenciadas entre os estudiosos de Descartes, o que nos parece, a princípio, mais evidente é que, em nenhum momento, como vimos, as Meditações representam, metafisicamente, qualquer espécie de correção ou acréscimo temático ao Discurso; em nossa opinião, elas são, sobretudo e apenas, um aprofundamento das questões metafísicas tratadas na quarta-parte daquele.

Não se trata, em absoluto, de minimizar aqui a importância das Meditações ou super-qualificar a posição do Discurso, ignorando assim certas diferenças entre ambas as obras; trata-se, somente, de negar certa interpretação frequentemente aceita de que a metafísica do Discurso seja incompleta ou insuficiente, sobretudo quando posta em relação à exposição metafísica das Meditações. Em tese, as diferenças existentes entre a metafísica do Discurso e das Meditações, definitivamente, não se dão em termos, propriamente, metafísicos.

Em nossa opinião, se pode falar, razoavelmente, de uma diferença considerável entre ambas as obras se admitirmos, antes, que tal diferença é estritamente funcional; de outro modo, certamente, se estaria aplicando à metafísica cartesiana uma distinção que não encontra o mínimo de correspondência em toda a filosofia que a compreende.

E, ainda assim, vale a ressalva de que mesmo essa diferença em termos funcionais não deve ser tomada de forma muito rígida, visto que a chave de leitura que Descartes parece ter nos fornecido para a devida compreensão da especificidade de suas exposições metafísicas, nesse caso em particular, o Discurso e as Meditações, é tão elementar e comum à metodologia geral cartesiana que se torna facilmente questionável o próprio termo “diferença” para designar a particularidade de cada exposição; isto é, se considerarmos o simples fato de que cada exposição metafísica de Descartes é, comumente, precedida por um resumo, prefácio ou dedicatória que se encarrega de apresentar-nos, ordenadamente, seus objetivos – diversos de acordo com cada exposição – veremos, sem dificuldades, que eles, esses objetivos, seriam, sozinhos, suficientes para dar conta de justificar com clareza a especificidade de cada uma de suas exposições.

Nesse caso, então, importa-nos menos investigar sobre essas supostas “diferenças” metafísicas existentes entre o Discurso e as Meditações, que saber quais são os seus respectivos objetivos.

De modo bastante generalizado, enquanto o Discurso objetiva não ensinar, mas somente discutir o conteúdo que ele apresenta, as Meditações, ao contrário, pretendem evitar discussões sobre seu conteúdo para ensina-lo àqueles que saibam e queiram medita-lo; por isso, se, de um lado, o Discurso, para realizar seu objetivo, apresenta os fundamentos metafísicos de seu autor em forma de “certas doses de metafísica” e, de outro, as Meditações, pelo mesmo motivo, apresentam esses fundamentos em formato de “um pequeno tratado de Metafísica”, é somente porque o objetivo do Discurso está voltado diretamente a interlocutores que não tenham mais que certas noções metafísicas; ao passo que o das Meditações não admite aqueles que não sejam verdadeiros meditadores dessa via. Desse modo, são diferenças de objetivos e não de conteúdos que parecem vigorar nesse caso.

Desse modo, explica-se, para nós, grande parte da especificidade que caracteriza a metafísica do Discurso e a metafísica das Meditações. Note-se que se a passagem do conteúdo apresentado para ser discutido Discurso ao conteúdo apresentado para ser ensinado – Meditações –; bem como a passagem de “certas doses de metafísica” – o Discurso – para um “pequeno tratado de metafísica” – as Meditações – e, ainda, a clara definição dos leitores de cada obra: de um lado, interlocutores, e, de outro, meditadores.

Tudo isso ressalta apenas que as “diferenças” entre uma exposição e outra são nada mais que determinações de seus diferentes objetivos; ou seja, não há, aí, exatamente, qualquer indício de que haja “progresso” entre uma obra e outra; isto é, não há, definitivamente, diferenças propriamente metafísicas entre ambas as obras.

Portanto, insistimos: a especificidade de cada exposição metafísica que Descartes nos ofereceu é resultado mais das diferenças na ordem dos objetivos de cada obra que na ordem de seus respectivos conteúdos; logo, Discurso e Meditações representam, cada qual, indiscriminadamente, a única e mesma metafísica cartesiana. Se, ainda assim, haja quem insista em manter certa distinção no interior dessa metafísica, que, ao menos, não se engane por completo: tal distinção de fato existe, mas é meramente funcional.

Todavia, não nos é dado negar uma séria dificuldade que essa tese nos traz: Se afirmamos que a metafísica das Meditações é, estritamente, um aprofundamento daquela do Discurso e negamos, categoricamente, que ela lhe seja um acréscimo e, menos ainda, uma correção; e ainda dissemos que as supostas “diferenças” que há entre ambas são, somente, da ordem de seus objetivos; quais seriam, exatamente, então, as razões pelas quais os objetivos das Meditações se sustentam? Em outras palavras, se a metafísica das Meditações não representa “progresso” algum em relação à metafísica do Discurso, que, nesse caso, então, não é incompleta e, tampouco, requer correção, o que, afinal, justifica a metafísica das Meditações? Ou ainda, em tom mais radical: Se o Discurso já contempla, ao menos no que se refere ao nosso objeto de estudo, o cogito, a totalidade da metafísica cartesiana, por que, afinal, as Meditações Metafísicas?

A questão é, sem dúvida, muito difícil e, certamente, extrapola os termos de nossa análise; porém, o importante Prefácio ao Leitor que aparece na primeira e segunda edição das Meditações, respectivamente em 1641 e 1642, e que, estranhamente, já dissemos, não aparece na edição francesa de 1647, parece cumprir, de forma bastante fácil, o papel de solucionador desse problema.

Aí, Descartes apresenta-nos, claramente, as três principais razões de seus objetivos com as Meditações; e, dessa forma, acreditamos justificar, perfeitamente, o caráter de aprofundamento que concluímos pertencer à metafísica dessa obra.

As duas primeiras razões que o filósofo nos oferece tratam das questões de Deus e da mente humana. Descartes justifica ter tocado nessas questões, em seu Discurso, de forma muito abreviada e não muito precisa, para que aprendesse depois, com o juízo de seus leitores, como deveria melhor trata-las em outra ocasião. Diz:

De modo breve, tratei anteriormente das questões sobre Deus e sobre a mente humana, no Discurso sobre o método para dirigir retamente a razão e investigar a verdade nas ciências, editado em francês, em 1637, não, a bem dizer, para o fazer em termos precisos, mas para delas oferecer uma prelibação e para aprender, a partir do juízo dos leitores, o modo como teria de em seguida delas tratar.

A terceira razão que o filósofo nos apresenta diz respeito aos inícios de toda a filosofia primeira: Agora, diz ele,

[...] depois de ter tido uma vez a experiência do juízo dos homens, tento tratar aqui de novo das mesmas questões sobre Deus e a mente humana e, ao mesmo tempo, dos inícios de toda a Filosofia Primeira.
Em carta ao amigo Mersenne, Descartes reforça e esclarece ainda mais essa última razão. Ele diz que: “[...] a discussão [das Meditações] não se confina a Deus e à mente, mas trata de todas as coisas primeiras a serem descobertas pela filosofia.”

As questões de Deus, da mente humana e dos inícios de toda a filosofia primeira constituem, pois, as razões principais pelas quais se fundamentam todos os objetivos das Meditações.

Note-se que é na metafísica do Discurso, e não “noutra” metafísica possível, que Descartes vai buscar cada uma dessas questões; ou seja, não se trata da introdução de novos elementos metafísicos, mas, ao contrário, de uma retomada de temas conhecidos e trabalhados, anteriormente, pelo filósofo.

Outro aspecto que deve ser ressaltado diz respeito à justificativa dada por Descartes ao fato de essas questões terem sido tratadas, no Discurso, de forma tão breve e imprecisa: o filósofo deixa transparecer um tom premeditado, quase duvidoso, querendo fazer entender que a brevidade e imprecisão da metafísica do Discurso seriam, não somente, recursos estilísticos e estratégicos da obra, mas que conteriam propósitos bem definidos: cumpririam o desígnio bastante modesto de apenas adiantar algo sobre aquelas questões para que, a partir do juízo dos leitores, pudesse aprender de que modo deveria trata-las depois, em outra ocasião.

A despeito da validade dessa justificativa, podemos notar, mais uma vez, que nenhum desses argumentos faz, sequer, a mínima referência ao fato de que as Meditações representam, quaisquer que sejam, ou “progresso”, acréscimos, correções ou mesmo modificações na metafísica do Discurso; ao contrário, tudo isso, leva-nos a perceber, com exatidão, os verdadeiros motivos pelos quais tomamos a metafísica das Meditações, em termos específicos, como um simples “aprofundamento” da metafísica presente no Discurso. São, portanto, os próprios argumentos de Descartes, que nos convencem dessa tese.

E, nesse sentido, dado que perguntar pelas razões, através das quais a metafísica das Meditações é estabelecida como um aprofundamento das questões tratadas na metafísica do Discurso é o mesmo que perguntar pelo significado específico desse aprofundamento no interior das Meditações, afirmamos que, do sentido mais originário desse aprofundamento, sobressaem, ao menos, dois importantes aspectos que podem, certamente, no mínimo, clarear a questão: ele é tanto a realização de uma expectativa que Descartes, supostamente, trazia desde a metafísica do Discurso, quanto um novo “caminho” de explicação das questões ali tratadas.

Quanto ao primeiro aspecto, basta-nos retomar a justificativa de Descartes ao explicar por que o Discurso era tão conciso no tratamento das questões metafísicas, onde ele diz que sua pretensão, ali, era somente adiantar algo dessas questões para que, após o juízo de seus leitores, aprendesse de que modo haveria de trata-las depois. Essa suposta expectativa do juízo de seus leitores a fim de aprender um modo para tratar as questões metafísicas encontra sua completa satisfação, então, na mesma medida em que esse aprofundamento metafísico operado pelas Meditações representa não um progresso, mas, justamente, esse outro modo de tratamento daquelas questões metafísicas.

E, quanto ao segundo aspecto, na verdade, indicativo do primeiro, o próprio Descartes declara que as questões metafísicas tratadas no Discurso lhe pareciam tão importantes que deveriam ser tratadas mais uma vez sob uma novo “caminho” de explicação. Diz:

Pois, (as questões metafísicas tratadas no Discurso) pareceram-me de uma importância tal que julguei necessário agenda-las mais de uma vez. E, para as explicar, sigo um caminho tão pouco praticado e tão distante do uso comum que não estimei fosse útil ensina-lo mais amplamente [...]

Desse modo, o significado mais elementar desse aprofundamento metafísico representado pelas Meditações diz respeito, precisamente, ao estabelecimento de uma nova ordem de abordagem metafísica e não, exatamente, de uma “nova metafísica” como parece sugerir Alquié; trata-se, enfim, como quer o próprio Descartes e não nos cansamos de repetir: simplesmente de “[...] uma explicação mais precisa [...]” acerca de sua metafísica do Discurso.

Em termos mais precisos, trata-se do estabelecimento de uma abordagem metafísica que é propriamente meditativa e que, certamente, não deve ser confundida com aquela abordagem dissertativa própria do Discurso e nem ser tomada, a rigor, como um novo conteúdo metafísico proposto por Descartes.

Em suma, as Meditações Metafísicas não seriam, em última análise, justamente a metafísica do Discurso meditada?"

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Fonte:
WEINY CÉSAR FREITAS PINTO: “DESCARTES E A PRIMEIRA PARTE DA MEDITAÇÃO SEGUNDA: Da natureza da mente humana ou de uma suposta equivocidade do cogito?” (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea. Linha de Pesquisa: Ética e Conhecimento . Orientador: Professor Dr. Marcio Chaves Tannús). Uberlândia, 2009.

Nota
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