O poder da alma sobre as paixões



A liberdade nas Paixões: A Resolução na figura da virtude

O poder da alma sobre as paixões

"Primeiramente, cabe-nos lembrar que em Descartes o homem é um ser dual: uma mistura de corpo e alma. Tal união tem caráter substancial e não acidental, como ficou claro no desentendimento com Régius, e sem ela o homem não seria homem. Ou nas palavras de Henri Gouhier (1962:335), a experiência da união nos “maneiras pelas quais o corpo humano existe”, ou seja, “o que é próprio não à alma somente nem ao corpo somente, mas à sua união, são os estados que a alma deve à presença do corpo e os movimentos que o corpo deve à alma, é dizer, isso que em um significa ação do outro”. Entende-se, pois, que a compreensão cartesiana de união é bem diferente daquela enunciada pela escolástica.

Segundo a compreensão cartesiana a alma pensa e “estando unida a um corpo pode agir e perceber com ele”. Além disso, a união substancial é para Descartes uma de nossas noções primitivas, entretanto:

(...) as coisas que pertencem à união da alma e do corpo não são conhecidas senão obscuramente pelo entendimento só, ou mesmo pelo entendimento com a ajuda da imaginação; mas são conhecidas mui claramente pelos sentidos
(A Elisabeth, 28 de Junho de 1643, Os Pensadores, p. 313)

O aspecto de incompreensibilidade que perpassa as coisas da união está explicitado também na Sexta Meditação:

Quando examinava porque desse não sei que sentimento de dor segue a tristeza do espírito (...) não podia apresentar nenhuma razão, senão que a natureza nos ensinava dessa maneira.
(Meditações, VI, Os Pensadores, p. 140)

Descartes diz ainda que não concebe nenhuma afinidade ou relação entre o sentimento da coisa e o pensamento de tristeza. Assim, nas correspondências com a princesa Elisabeth, ele reconhece que a união do corpo e da alma contraria a razão:

(...) não me parecendo que o espírito humano seja capaz de conceber bem distintamente, e ao mesmo tempo, a distinção entre o corpo e a alma e a sua união; isto porque é necessário, para tanto, concebê-los como única coisa, e conjuntamente concebê-los como duas, o que se contraria.
( A Elisabeth, 28 de junho de 1943, Os Pensadores, p. 314)

À alma, como dito acima, atribuímos nossos pensamentos, pois pensamentos são as paixões e as ações da alma. Essas últimas são suas vontades que se manifestam ora voltadas para o espírito, ora para o corpo; ora para o imaterial ora para o material, ou seja:

(...) umas são ações da alma que terminam na própria alma, como quando queremos amar a Deus ou, em geral, aplicar nossos pensamentos a qualquer objeto que não é material; as outras são as ações da alma que terminam em nosso corpo, como quando queremos andar e nós caminhamos
(Paixões, I, Os Pensadores, Art.18, p. 234)

As paixões da alma também são um resultado da união substancial. Geradas pelo corpo “elas pertencem ao rol das percepções que a estreita aliança entre a alma e o corpo tornam confusas e obscuras”. Logo, uma leitura do pequeno tratado das Paixões da Alma pode ser esclarecedora acerca da questão da união e das coisas concernentes à união.

O texto das Paixões começa, didaticamente, pela definição. De um modo geral, a paixão é uma ação sofrida, ou seja, é a ação percebida do ponto de vista de quem a sofre. Assim, o que na alma é uma paixão “é comumente no corpo uma ação” (Artigos 1 e 2). A partir do Art. 4 teremos um relato acerca dos movimentos do corpo e uma importante informação: não é a alma que lhe dá movimento e calor, porque o corpo humano foi instituído para os movimentos, logo eles não dependem da alma. Tal tese estava presente também na Sexta Meditação:

Se considero o corpo do homem como uma máquina, de tal modo constituído e composto de ossos... mesmo que não houvesse nele nenhum espírito, não deixaria de mover de toda as mesmas maneiras que faz presentemente quando não se move pela direção de sua vontade, nem, por conseguinte, pela ajuda do espírito, mas somente pela disposição de seus órgãos
. (Meditações, VI, Os Pensadores, p. 146).

E, no artigo sete das Paixões, Descartes diz que

Enfim, sabe-se que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem, todos, do cérebro e contém com eles certo ar ou vento muito sutil que chamamos espíritos animais
. (Paixões, I, Os Pensadores, p. 229)

A apresentação dos espíritos animais mais tarde, no Art. 27, possibilitará restringir o conceito de paixões a “percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela [alma], e que são causadas, motivadas e fortalecidas por alguns movimentos dos espíritos”.

Nos Artigos 32 e 33, Descartes nos apresentará a glândula pineal como principal sede da alma, e no Art. 51 ele dirá que “a última e mais próxima causa das paixões não é outra senão a agitação com que os espíritos movem a pequena glândula situada no meio do cérebro”. Fica, porém, sem explicação como se pode dar a ação da glândula sobre a alma propriamente dita e o contrário.

Conforme disposto no Art. 52, e mais tarde no Art.136, o verdadeiro emprego das paixões será o de nos dirigir ao que nos é útil, todavia nem sempre isso ocorre:

(...) no entanto, nem sempre tal uso é bom, posto que há muitas coisas nocivas ao corpo que não causam, no começo, nenhuma tristeza ou que proporcionam mesmo alegria, e outras que lhe são úteis, ainda que de início sejam incômodas
. (Paixões, I, Os Pensadores, Art.138, p. 276)

Porém, a vontade pode ser indiretamente modificada pelo corpo; para Denis Kambouchner (1995, v. 2, p. 19), “a vontade pode ser predisposta por alguma coisa (como a representação do entendimento), a se aplicar sobre alguma coisa (...) mas que assim ela não é absolutamente determinada” porque ela age conforme a sua natureza. E tal como desde a Quarta Meditação, “a liberdade constitui em realidade a essência da vontade (...) como pura ação, absolutamente inalienável, da alma ou do espírito” (Ibidem, p. 18-19).

Apesar de nossas paixões não poderem ser “diretamente excitadas ou suprimidas por nossa alma” (Artigos 45 e 47), através dela podemos vir a considerar certas razões, e assim, por representações, conseguir nos desviar de uma tal paixão. Logo, pela atenção, a alma pode sobrepujar as pequenas paixões, mas o mesmo não acontece diante de uma paixão com grande força: “(...) a alma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir um trovão ou de sentir o fogo que queima a mão”. Contudo, isso não significa que a alma fique passiva diante do “trovão”, pois, ainda aqui a vontade terá poder:

O máximo que pode fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão, a vontade pode retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante.
(Paixões, I, Os Pensadores, Art.46, p. 245)

Por sua natureza, a vontade pode corrigir algumas ações e controlar certos movimentos do corpo e levar a alma a considerar razões contrárias às da paixão. Descartes repetirá isso ao final das Paixões, explicando que, se tivermos o cuidado de praticar, poderemos corrigir nossos defeitos naturais “exercitando-nos em separar em nós os movimentos do sangue e dos espíritos dos pensamentos aos quais costumam estar unidos” e mesmo diante de um forte pendor se pode ter um “remédio” contra os excessos das paixões:

(...) sempre que se sinta o sangue assim agitado, ficar advertido e lembrar-se de que tudo quanto se apresenta à imaginação tende a enganar a alma e a fazer com que as razões empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçam muito mais fortes do que são, e as que servem para dissuadir, muito mais fracas. E quando a paixão persuade apenas de coisas cuja execução sofre alguma delonga, cumpre abster-se de pronunciar na hora qualquer julgamento e distrair-se com outros pensamentos até que o tempo e o repouso tenham apaziguado inteiramente a emoção que se acha no sangue. E, enfim, quando ela incita a ações no tocante às quais é necessário tomar uma resolução imediata, é mister que a vontade se aplique principalmente a considerar e a seguir as razões contrárias àquelas que a paixão representa, ainda que pareçam menos fortes.
(Paixões, I, Os Pensadores, Art.211, p. 303-304)

Podemos concluir até aqui que existe um caminho “natural” das paixões, uma ação mecânica sobre a alma, em função da união. Mas essa ação pode ser controlada ou até mesmo alterada pela alma. A liberdade é, então, primeiramente concebida como um poder sobre o mecanismo das paixões e, como nos lembra Pierre Guenacia (2000, p. 214), a bondade como a maldade vem do uso da paixão. Assim, por este poder da vontade o homem fica responsável pelo bem e pelo mal, tal como é responsável pela verdade ou pelo erro nas Meditações."


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Fonte:
Geisa Mara Batista: “DEUS E A FÍSICA MECANICISTA COMO DESAFIOS À QUESTÃO DA LIBERDADE HUMANA EM DESCARTES”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Filosofia Moderna Orientadora: Profa. Dra. Telma Birchal - Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2006.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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