A farsa e a ironia construída pela imaginação



No universo teatral, farsa é uma peça cômica, de um só ato, irreverente e burlesca, cuja origem se encontra nas peças francesas da segunda metade do século XV. Suas principais características são a representação do cotidiano por meio de versos octossilábicos com quatrocentas linhas aproximadamente e a grande movimentação dos atores, uma vez que o elenco era pequeno, lembrando-se que nesse período os textos e as representações eram simples por causa da escassez de recursos cênicos apropriados. Esse fato justifica a ausência de autoria ou rubricas nas peças desse período.

Algumas das características desse “gênero teatral” foram resgatadas pelos dramaturgos que surgiram posteriormente, entre eles, Ariano Suassuna que trabalha em suas criações artísticas a temática da vida do campo, utilizando como recurso estético os versos e a eletrizante movimentação dos atores, assim como procedimentos que singularizam a criação farsesca no seu aspecto cômico e zombeteiro. Refletindo sobre essa problemática, Ligia Vassalo (1988, p. 196) expõe:

Tudo leva a crer que para o dramaturgo paraibano a farsa é muito mais operante e ativa do que a comédia italiana, seja pelo vigor daquela através dos tempos, seja pela influência literária culta advinda de Gil Vicente (de que se reclama o autor), muito marcante não só nos títulos das obras como nos procedimentos. Dado ao primitivismo dos personagens suassunianos, a maioria de suas peças atende ao item do cômico de farsa, vulgar, grosseiro, popular e sem maiores pretensões intelectuais ou morais.

Vassalo em suas considerações reforça o cunho farsesco das criações teatrais suassunianas, sobretudo no que tange à influência do “gênero” na constituição das personagens que fazem parte do universo do escritor. Ao privilegiar a influência de Gil Vicente, a estudiosa nos brinda com outras características que forjam os textos de Suassuna: a liberdade da escrita, a ironia como instrumento de denúncia, a crítica social, a zombaria e a simplicidade dos meios utilizados na apresentação das peças.

Discordamos, no entanto, com a postura da autora ao isentar Suassuna de pretensões intelectuais ou morais, pois, a nosso ver, ao deixar-se influencia pelo estilo vicentino, o dramaturgo nordestino, automaticamente absorve as particularidades intelectuais de Gil Vicente, e aplica-as na tessitura de seus enredos. Logo, estão presentes no universo escritural do autor brasileiro as marcas da erudição e da moralidade como uns dos traços distintivos de sua estética, que são vestígios da estética utilizada pelo seu antecessor.

Disso decorre que o diferencial de Ariano Suassuna centra-se na miscelânia de elementos que ele “manipula” na confecção de suas obras. Esses elementos vão desde a farsa (especialmente seu aspecto zombeteiro e popular) até culminar com o religioso – por meio da temática e das personagens que oscilam entre a virtude e o vício – e a moralidade. Tal mixórdia dá às peças do escritor o caráter fabular nas quais sobressaem os confrontos entre: o vício e a virtude; entre a salvação e a condenação. Com essa correlação, a farsa em Suassuna, segundo a estudiosa, perde sua força original:

Quanto à
Farsa, pode-se dizer que deixa de ser um texto popular na medida em que o autor está em constante diálogo com uma rica tradição erudita que, embora presente na obra popular, não o é de maneira consciente. Mas na medida em que conserva uma linguagem e uma trama recheada de elementos corriqueiros da ruralidade brasileira, a farsa é, nesse sentido, popular. Esta riqueza, que permite uma diversidade de leituras em níveis muito diversos, é característica de toda obra bem construída (COSTA 2006, p. 63).

Mais que evidenciar o enfraquecimento do cunho farsesco nas obras do teatrólogo nordestino, a estudiosa põe em relevo, nessa reflexão, o encontro do popular e do erudito – temática há muito explorada pelos especialistas das obras de Ariano Suassuna – que, como sabemos, teve e continua a ter uma grande repercussão na literatura teatral brasileira.

Não esquecendo que, apesar de o teatro suassuniano ser primordialmente cômico, o riso por ele provocado se submete ao ensejo moralizante, por conta das preocupações religiosas que interferem nos temas e na concretização das ações cênicas. No entanto, segundo os estudiosos, a marcante presença do riso em Suassuna se dá, sobretudo pela presença ou contaminação do mamulengo que se vincula à pancadaria e aos modelos de comicidade gestual e verbal.

Assim, embora não se caracterize como farsa na sua totalidade,
O santo e a porca apresenta diversos caracteres desse gênero teatral, sobretudo no que se refere ao cômico e à contínua movimentação das personagens. Nessa perspectiva, é que buscaremos demonstrar o farsesco como elemento constitutivo da peça.

Tomando como apoio a concepção bergsoniana que considera a ruptura da continuidade como a gênese da comicidade, passemos a apreciar alguns fragmentos de
O santo e a porca:

(Entra MARGARIDA atraída pelo rumor. Vem acompanhada de DODÓ VICENTE, disfarçado com uma horrível barbicha, com a boca torta, com corcova, coxeando e vestido de preto)
(SP, p.35).

A rubrica concretizada na imagem transfigurada de Dodó presente no palco, certamente, provoca nos espectadores uma estranheza que culmina num riso coletivo. A esse respeito, comentando sobre o caráter coletivo do risível sob a perspectiva bergsoniana, pondera Suassuna (2002, p.144):

Do ponto de vista psicológico-social, o Risível se caracteriza por uma espécie de contagio, tanto de pessoa para pessoa, quanto de acontecimento a acontecimento. Isto é: o riso em grupo é muito mais forte e caracterizado, porque as pessoas se deixam contagiar umas pelas outras, no riso; e por outro lado, um fato que, em si, não seria risível, passa a sê-lo, caso recorde aos espectadores outro acontecimento, este risível.

Depreende-se daí que o risível e o trágico só podem ser compreendidos no campo do humano: “não há cômico fora daquilo que é propriamente humano” (BERGSON, 2001, p. 3). Ou seja, a estranheza ocorre, sobretudo, pelo fato de ser Dodó, um homem perfeito que se mostra disforme, ou seja, a caracterização da personagem – que é em si cômica – a exclui dos padrões convencionais, logo, “o riso é então explicado pela surpresa, pelo contraste” (BERGSON, 2001, p. 29).

No entanto, esclarece-nos o teórico que essa concepção não é aplicável a todas as coisas, pois há uma infinidade de eventos que nos surpreendem e não nos fazem rir; logo, para que algo seja cômico, é necessário haver uma desarmonia entre a causa e o efeito. Isso leva-nos a inferir que a ruptura dos modelos preestabelecidos e o fator surpresa são apenas um dos meios utilizados pelo cômico.

Ao utilizar-se do disfarce, ao fantasiar-se, Dodó, assume segundo a concepção bergsoniana, o poder pleno de fazer rir. Nas palavras do próprio teórico: “Um homem que se fantasia é cômico. Um homem que parece fantasiado é cômico também. Por extensão, todo disfarce será cômico, não só o do homem, mas também o da sociedade, e até o da natureza” (BERGSON, 2001, p. 31).

Denotamos a partir dessa observação que o risível, isto é, aquele/aquilo de quem se ri advém de instâncias diversas, abarca uma área bastante extensa é tudo que escapa aos padrões, às convenções. Decorre disso que, “a insociabilidade da personagem e a insensibilidade do espectador são condições essenciais à comicidade, ao riso” (BERGSON, 2001, p. 109).

Dentre as diferentes características do riso farsesco, sobressai o travestimento utilizado pelas personagens com a finalidade de alcançar seus objetivos. Na peça
O santo e a porca para não ser reconhecido, Dodó disfarça-se no intuito de cortejar Margarida; Benona e Caroba trocam as vestimentas, buscando proporcionar a realização dos três matrimônios.

Porém, não se limitando ao disfarce,
O santo e a porca nos oferece outras faces do risível. Destacamos nos entrechos abaixo aquela que se desprende da conduta humana.

MARGARIDA — Papai! Que foi, meu pai? Ouvi o senhor gritar! Está sentindo alguma coisa?
EURICÃO — Ai minha filha, me acuda! Ai, ai! Os ladrões, minha filha, os ladrões!
MARGARIDA — Socorro! Socorro! Pega o ladrão!
EURICÃO — Ai minha filha, não grite assim não! Não grite, senão vão pensar que a gente tem o que roubar em casa. E vêm roubar! Santo Antônio, Santo Antônio! Ai a crise, ai a carestia!
CAROBA — Leia a carta, Seu Euricão!
MARGARIDA — É, papai, leia! Que mal faz?
PINHÃO — Se for dinheiro emprestado...
EURICÃO — (Jogando a carta no chão.) Ai!
MARGARIDA — (Apanhando-a.) Não é nada demais, está vendo? Olhe, veja o senhor mesmo!
EURICÃO — Não fala em dinheiro não?
MARGARIDA — Não (SP, p.35-37).

Vimos por intermédio dos entrechos que Ariano Suassuna trabalha com veemência as fraquezas humanas na construção da comicidade e, consequentemente, na articulação do riso que se desprende do espectador/leitor. Esse riso é espontâneo e inconsciente, uma vez que a reflexão não antecede o ato de rir. Os gestos, as palavras e as atitudes mecanizadas de Eurico Engole-Cobra é que o tornam risível. Nas palavras de Bergson (2001, p. 22): “as atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica”. Essa mecânica se faz notar nitidamente na obra em análise, no momento em que Caroba – personagem do tipo esperto – toma as “rédeas” da trama e passa a manipular as demais personagens. Elas atuam regidas pelo automatismo, sendo suas ações reflexos das ações impostas pelo esperto. Esse automatismo, juntamente com a insociabilidade e a insensibilidade, conforme Bergson (2001, p. 109) são condições essenciais à existência do cômico
: “só é essencialmente risível aquilo que é automaticamente realizado”.

É interessante observar que a comicidade que vai se construindo sobre as personagens, no início da peça, provoca um riso moderado que cresce gradativamente à medida que suas as ações se adensam, formando uma rede de equívocos que resultarão na concretização do plano organizado por Caroba. Falando acerca dessa temática, Propp (1992, p. 171) nos revela que:

A primeira condição para a comicidade e para o riso que ela suscita consistirá no fato de quem ri ter algumas concepções do que seria justo, moral, correto ou, antes, um certo instinto completamente inconsciente daquilo que, do ponto de vista das exigências morais ou mesmo simplesmente de uma natureza humana sadia, é justo e conveniente.

Calcado nesse pensamento, Propp difere seis tipos de risos: o zombeteiro, o maldoso/cínico, o bom, o ritual, o alegre e o imoderado. Com isso, o teórico intenta desvelar a relação existente entre o riso e o cômico. Considerando o riso zombeteiro aquele, que a nosso ver, mais se destaca na peça
O santo e a porca é a ele que nos direcionaremos a partir de agora.

Na concepção proppiana, o riso zombeteiro ou de zombaria têm origem nas diferentes formas de ridicularização da aparência, das atitudes e pensamentos humanos, variando de acordo com as diversas culturas e, sobretudo, com o caráter individual do ser humano. Esse riso ocorre na medida em que os defeitos do risível não se convertam em vícios, nem provoquem a repulsão nos espectadores/leitores.

Na cultura popular nordestina, o aspecto zombeteiro sobressai no mamulengo, visto pelos estudiosos como o teatro do riso, juntamente com o bumba-meu-boi e o pastoril. Ao vincular-se ao automatismo, o riso provocado pelo teatro de bonecos sistematiza a teoria bergsoniana (2001, p.51), quando nos diz que, cômico “é toda combinação de atos e de acontecimentos que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão de vida e a sensação nítida de arranjo mecânico”.

Ainda que
O santo e a porca não se caracterize como teatro de mamulengo, a técnica utilizada por Ariano Suassuna em sua confecção é a mesma. Por isso, ao nos contatarmos com esse universo, inebriamo-nos com a ilusão de vida que advém das aventuras cômico-dramáticas das personagens, como também do automatismo de suas ações, haja vista serem as personagens-bonecos coordenadas por Caroba.

EURICÃO — A facada?
CAROBA — E então? O senhor vai ver se não é! Pinhão me contou como ele faz. Chega cheio de delicadezas. A essa hora, já se informou de sua devoção por Santo Antônio. Ele chega e faz que é devoto do mesmo santo. Elogia o senhor, elogia sua filha, pergunta como vão os negócios, todo amável, e vai amolando a faca. (À medida que fala, vai evocando a cena imaginária com gestos significativos e cortantes.)
CAROBA — Deve ser uma faca enorme, assim desse tamanho. Ele vai atolá-la até o cabo em sua barriga, xuiu! (Dá a facada com a mão na barriga de EURICÃO, que cai desfalecido numa cadeira.)
EURICÃO — Ai! Quanto você calcula que vai ser a facada, Caroba?
CAROBA — Homem, pelo tamanho da faca, calculo aí nuns vinte contos.
EURICÃO — Ai! Caroba! Tenha compaixão de um pobre velho.
CAROBA — Mas é claro que tenho, Seu Euricão! Já pensei em tudo e vou defendê-lo contra esse urubu (SP, p.50-51).
EUDORO — Então mande chamar Margarida.
EURICÃO — Margarida? Pra quê?
CAROBA — Seu Eudoro quer vê-la depois de tanto tempo, é perfeitamente natural, Seu Euricão. Ele já viu Dona Benona, agora quer ver Dona Margarida! (SP, p.62).

Em ambos os exemplos, além de direcionar o pensamento e a fala de Euricão e Eudoro, Caroba, assume a sua voz, com isso muda o rumo da conversação, levando as personagens, a agirem segundo seus próprios interesses. Ou seja, a maneira como o esperto atua, evidencia, ou melhor, traz ao palco a técnica do mamulengo. Nesse aspecto, fica evidente o mecanismo dos gestos e a “ingenuidade” das personagens (ainda que inconscientes), que ficam a mercê dos objetivos de outrem. Ao refletir sobre as marionetes, Bergson vai além da manipulação dos bonecos, pois, passando a considerar a interação autor
versus espectador/leitor, ele, coloca nas mãos de ambos o “poder” de manipular, sendo que o primeiro tem maior força, posto que conduza tanto as personagens ficcionais como os espectadores; e o segundo apenas “tange” os personagens que norteiam o enredo, tal capacidade lhe é herdada do primeiro.

(...) as personagens de carne e osso ficam suspensas em cena. Às vezes ele se diverte a arrojá-las com seu peso e faze-las rolar consigo ladeira abaixo. Mas na maioria das vezes as irá tangendo como se tange um instrumento, ou as irá manobrando como títeres. Olhando-se de perto, ver-se-á que a arte do poeta cômico consiste em (...) introduzir-nos, a nós, espectadores, a tal ponto em sua intimidade, que acabamos por obter dele alguns fios da marionete que ele movimenta; é então nossa vez de movimentá-la, uma parte do nosso prazer vem daí. É ainda um automatismo muito próximo da simples distração. (...) O cômico é inconsciente
(BERGSON 2001, p. 12).

Alicerçados nessa concepção veremos que Ariano Suassuna toma nas mãos o controle de todos, inclusive da própria Caroba, posto que seja o seu criador. O pensamento bergsoniano leva-nos a ver que ao imergirmos no universo ficcional, envolvendo-nos nos acontecimentos e nos movimentos que dele emana, passamos a ser parte desse mundo, logo, igualmente somos “marionetes”, do “Criador”.

No caso de
O santo e a porca, com os movimentos dos olhos que perpassam as páginas em conexão com o pensamento que flui diante dos ardis criados por Caroba/autor, também conduzimos as ações da narrativa. Isso ocorre por que passamos a viver, conscientes ou inconscientes, a realidade ficcional. Assim, quando o escritor leva Caroba a conduzir as demais personagens, simultaneamente nos leva a exercer a mesma ação. Nesse sentido, somos conduzidos e ao mesmo tempo condutores.

Retomando como escopo a concepção proppiana sobre a comicidade e o riso, observamos que, para o teórico, o que suscita a existência de ambos é o exagero, o enganar, as mentiras, os elementos cômicos entre outros. Nas representações cômicas de Suassuna, em nosso caso, na obra
O santo e a porca, vemos emanar de sua escritura o riso zombeteiro que se origina da ridicularização das personagens, entre os quais sobressai, Eurico Engole Cobra. Este, na verdade, é ridicularizado durante toda a narrativa. Vejamos os fragmentos:

EURICÃO — Bote já aí, ponha já aí!
PINHÃO — O senhor pensa que eu sou alguma galinha? O que é que eu posso botar, o que é que eu posso pôr, o que é que o senhor quer? (p.104).
EURICÃO — Santo Antônio, que safadeza é essa? Isso é coisa que se faça?
EUDORO se aproxima de EURICÃO e começa a olhá-lo, examinando-o com um misto de curiosidade, desgosto e compaixão. Chega mesmo a tocarna roupa de EURICÃO para inspecioná-la. EURICÃO, desconfiado, vai se afastando dele, aos arrancões, mas sem querer sair para não despertar suspeitas (SP, p. 98).
EURICÃO — Era isso que você estava confessando?
DODÓ — Era.
EURICÃO — Ainda mais essa! Por cima de queda, coice! Canalha, safado, por que você não disse logo? Por que deixou que eu confessasse meu segredo?
DODÓ — A culpa foi sua, era eu falando da filha e o senhor pensando na porca! (SP, p.141).
EURICÃO — E você não já pediu?
EUDORO — Não!
EURICÃO — Quer me levar ao ridículo, é, Eudoro? Faz uma coisa dessa, compromete minha irmã e ainda vem com pilhérias, logo agora que ela foi roubada!
BENONA — Quem, eu?
EURICÃO — Não, a porca! Ai, a porca!
EUDORO — Mas Eurico, eu... (SP, p. 142).

Os trocadilhos utilizados pelas personagens confirmam a existência do riso de zombaria dentro da própria constituição ficcional. Observem que ao contrapor as falas de Euricão e Pinhão; Euricão e Dodó; Benona e Euricão; e apresentar-nos a voz do narrador, o teatrólogo nordestino, dá as personagens secundárias o poder de ridicularizar o personagem central. Essa postura que o expõe de modo exagerado à qualidade de avaro de Euricão, contamina os espectadores/leitores que não podendo contracenar diretamente com o avarento, extrapola tal sentimento, zombando-o por intermédio de contínuas gargalhadas.

Ao assumir o papel de avarento, Euricão, traz à tona o exagero emocional, atraindo para si a atenção do público, provocando nele o riso. O exagero é nesse sentido, de acordo com Propp, elemento primordial à existência do cômico. Segundo os estudiosos, ele pode manifestar-se por intermédio de traços grosseiros e refinados que se excedem na edificação e representação das personagens e, também, nos eventos que constroem a história ficcional.

Dessa arte, ao construir o cômico utilizando-se de elementos farsescos, o dramaturgo nordestino, elabora uma narrativa, na qual a ironia é presença marcante. Ironia que se destaca, sobretudo, como forma de traição à vida, uma vez que, na peça
O santo e a porca, ela se define segundo versão dicionarizada como um “contraste fortuito que parece um escárnio, sarcasmo, zombaria”.

Esse evento torna-se claro à medida que, não obstante direcionar sua existência em prol à tranquilidade futura, o avarento, depara-se com o malogro (desvalorização do dinheiro), o inusitado que lhe altera o curso da vida, colocando-o numa situação de desconforto. Eis a ironia a se manifestar, pois apesar do acúmulo material, ele de nada lhe serve. Nessa perspectiva, as ironias suassunianas são, conforme os estudiosos, capazes de trazer aos palcos, o outro lado do ser humano, todavia inobservado: o da própria ignorância como resultado do seu intimismo contraditório. Depreende-se daí, a moralidade que confere à peça,
O santo e a porca, o cunho de fábula – “quem tudo quer tudo perde”.

EURICÃO — Estão ouvindo? É a voz da sabedoria, da justiça popular. Tomem seus destinos, eu quero ficar só. Aqui hei de ficar até tomar uma decisão. Mas agora sei novamente que posso morrer, estou novamente colocado diante da morte e de todos os absurdos, nesta terra a que cheguei como estrangeiro e como estrangeiro vou deixar. Mas minha condição não é pior nem melhor do que a de vocês. Se isso aconteceu comigo, pode acontecer com todos, e se aconteceu uma vez pode acontecer a qualquer instante. Um golpe do acaso abriu meus olhos, vocês continuam cegos! Agora vão, quero ficar só!
(SP, p.152).

Reparem que Euricão, nas suas considerações, apresenta-nos a vida como cíclica, como um cenário, no qual todos podem representar seus papéis: ora no auge ora no declínio, ora perdendo ora ganhando. Assim, sucessivamente as ironias vão preenchendo nossa existência. No caso de Eurico Engole-Cobra, ela se faz notar, sobretudo, como foi abordado anteriormente na desvalorização do seu tesouro e na solidão que o acercou, após o enlace dos casais.

EUDORO — Esse dinheiro está todo recolhido, Eurico! Tudo o que você tem aí não vale nem um tostão!
EURICÃO — Nossa Senhora, Santo Antônio! Você jura pelos ossos de sua mãe como é verdade?
EUDORO — Juro.
EURICÃO — Está bem, eu acredito. Foi uma cilada de Santo Antônio, para eu ficar novamente com ele. Vou então ficar sozinho, novamente. E já que tem de ser assim, quero ficar aqui. Trancarei a porta e não a abrirei mais para ninguém. Porque não quero mais ficar num mundo em que acontecem estas coisas impossíveis de prever (SP, p.151).
EURICÃO — Você não está entendendo nada! E como ficaria eu? Você casa com Dodó, Benona com Eudoro, Caroba com Pinhão. Não vê que eu fico só? No meio disso tudo, com quem casaria eu?
CAROBA — Com a porca. E, se ela não serve mais, com Santo Antônio! (SP, p.151-152).

Como podemos notar, é a imprevisibilidade dos acontecimentos – seja no sentido social, seja no das relações humanas – a responsável pela desventura do avarento que no desenrolar do enredo vai construindo “quadros cômicos”, que envolvem o leitor/espectador, despertando-lhe o riso. Nos dois exemplos em especial, o riso parece diminuir, pois ao mesclar-se com o dramático, faz aflorar no espectador/leitor o sentimento de compaixão. Ainda em relação aos entrechos, na verdade, rimos da ironia que a vida prega ao homem – que pensa conduzi-la, mas na verdade é ela que o conduz – e do jogo frasal. A resposta elaborada por Caroba, além de ridicularizar o patrão, foge do habitual, ou seja, rompe com a rigidez, ou melhor, com a linearidade do cotidiano.

Observamos no desenvolvimento desse capítulo, Ariano Suassuna trabalhar com elementos da farsa em comunhão com a ironia. Essa conduta é o que o diferencia dos demais teatrólogos, posto que consegue articular tais elementos de modo a erigir uma obra na qual o dramático e o cômico se relacionam e se complementam, permitindo ao risível (a obra) interagir com o ridente (espectador/leitor). Enfim:

A forte comicidade do teatro [suassuniano] repousa num conjunto de elementos, nem todos pertencentes ao mamulengo, como os travestimentos, e as expressões ligadas ao baixo corporal e material. Ela provém de cenas curtas e movimentadas, portanto ligadas ao domínio da gestualidade, bem como situações de truculência física ou verbal. Há ainda um aspecto de cômico verbal muito interessante, referente aos nomes próprios enormes, às repetições, aos provérbios e ao falar “difícil” de certos personagens
(VASSALO, sd, p. 175).

Na verdade, as palavras de Vassalo, a nosso ver, sistematizam o procedimento utilizado por Ariano Suassuna na confecção da comicidade existente na peça em análise. Essa comicidade é abordada ao longo do nosso trabalho. No capítulo dois, buscar-se-á reforçar as marcas do risível presente no texto em pauta, vinculando-o às ações e aos jogos de palavras utilizadas por Caroba na manipulação das personagens."

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Fonte:
Aline Aparecida de Souza Gomes: “O santo e a Porca, de Ariano Suassuna: o imaginário do sertão em nova cena”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia São Paulo Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profª. Drª. Maria José Pereira Gordo Palo). São Paulo, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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