O sertão no palco suassuniano



O sertão constitui-se no palco por excelência da dramaturgia suassuniana. Nele, o povo nordestino vivencia sua luta constante contra uma terra pobre e opressora, como em Uma mulher vestida de sol, em que os dramas da terra e do sangue se misturam, expondo a fratura entre o natural e o simbólico, onde o ser humano encontra-se constantemente ameaçado de reduzir-se ao animal.

A tragédia dos infelizes amantes Francisco e Rosa coloca o espectador diante de uma das preocupações constantes do teatro suassuniano: a denúncia da miséria e a crítica social. Crítica que se manifesta na representação da disputa armada pela posse de terras; no rebaixamento de pequenos proprietários empobrecidos à condição de jagunços; no sofrimento cotidiano dos retirantes e no apelo destes à religião como tentativa de lidar com a permanente aflição e insegurança propiciadas devido à onipresença da morte, que está sempre à espreita, podendo aparecer em qualquer lugar ou a qualquer instante; em
Uma mulher vestida de sol a morte pode ser considerada como mais uma personagem, que emprega a linguagem da seca, da fome, dos animais peçonhentos e, principalmente, da violência humana para revelar-se no palco. nesta peça o autor apresenta sua intencionalidade religiosa; os acontecimentos e ações não são justificados simplesmente pela conjuntura sócio-econômica, o que permitiria explicar uma personagem como o beato Cícero, reduzindo-lhe à ideologia, entendida como falsa consciência que inverte a realidade, impedindo os sujeitos de compreendê-la e, conseqüentemente, de modificá-la; nem mesmo em termos estritamente existenciais, do confronto trágico e da inevitável derrota do ser humano diante de um mundo absurdo, onde todas as paixões e ações perdem o sentido, a bondade e a razão sendo corroídas pela certeza da mortalidade; para além da constatação da injustiça social e da consciência existencial, embora reconheça suas respectivas importâncias, em Uma mulher vestida de sol encontra-se a idéia da fundamentação transcendente da vida humana, sintetizada na referência bíblica que não apenas dá título, mas abre e encerra a peça, e, principalmente, na cena final, em que o corpo de Rosa parece amparado por Nossa Senhora; temos aqui, em germe, as concepções religiosas que serão posteriormente desenvolvidas e explicitadas nas demais peças do autor.

No entanto, para além da aridez que caracteriza o sertão em
Uma mulher vestida de sol, encontra-se no palco suassuniano o desejo de um universo mágico, em muito devido à reinterpretação dos espetáculos populares, como o circo, no Auto da Compadecida, o mamulengo, em A pena e a lei e as apresentações de feira, na Farsa da boa preguiça, onde também se deve ressaltar o elogio ao poeta popular. Assim, a natureza hostil presente em Uma mulher vestida de sol sede lugar a uma realidade transfigurada, em que a própria vida humana pode ser compreendida como uma tentativa imperfeita de representar a si mesmo. Os infortúnios sociais e existenciais nos quais as personagens estão envolvidas não se restringem ao palco, mas pretendem ampliar-se e abranger a humanidade, sendo esta representada pela comunidade formada por atores, autor e espectadores, o que se torna evidente nos momentos em que uma personagem que representa o autor em cena se dirige ao público, caso do Palhaço do Auto da Compadecida e dos diálogos entre Cheiroso, o dono do mamulengo, e sua companheira Cheirosa no início dos atos de A pena e a lei. A respeito da representação da vida por meio da arte lemos em um de seus artigos:

O Circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha representação da vida, do estranho destino do homem sobre a terra. O Dono-do-Circo é Deus. A arena, com seus cenários de madeira, cola e papel pintado, é o palco do mundo, e ali desfilam os rebanhos de cavalos e outros bichos, entre os quais ressalta o cortejo do rebanho humano
os reis, atores trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós.

Pretende-se, portanto, no circo, e também no teatro, representar um mundo em pequena escala, pleno de significado, que lhe é dado pelo autor; este se constitui de certa forma em um Deus menor, um demiurgo. Conforme a concepção cristã em que Suassuna se fundamenta, a significação do mundo é clara e perfeitamente conhecida para Deus, mas o mesmo dificilmente poderia ser dito em relação ao conhecimento que o autor humano tem de sua própria obra. Mas, no tocante a esta homologia pretendida entre a obra de arte e o mundo e entre Deus e o artista, pode se afirmar que o autor deve se representar como se tivesse pleno conhecimento de seu pequeno mundo, característica que acreditamos encontrar no teatro suassuniano. Sobre a maneira como esta concepção aparece em sua própria obra, afirma Suassuna:

Já declarei várias vezes que sou um Palhaço e Dono-de-Circo frustrado. Meu trabalho de escritor, de professor, de falso profeta fraco e pecaminoso, de cangaceiro sem coragem, de organizador de espetáculos armoriais de música e de dança, de cavaleiro sem cavalo e de criador de cabras sem terra, não passa da tentativa de organização de um vasto Circo. [...] esse espetáculo meio circense e desarrumado ao qual se dedicam minha vida e minha imaginação meio extraviadas, tentando imprimir-lhe alguma ordem e beleza, para colocá-lo como um espelho, diante do Circo do Mundo.

O dramaturgo pretende representar um pequeno Deus, capaz de estabelecer ordem e significado a um mundo que, em princípio, não o possui. O espetáculo re
alizado pelo autor deve ser como um espelho, e refletir o “Circo do Mundo”. Neste circo-mundo sertanejo, a representação teatral pretende colocar diante do espectador, e mesmo incluí-lo, não somente em uma cosmologia, mas, principalmente, em uma antropologia do sertanejo. Cosmologia e antropologia fundamentadas em uma concepção de mundo na qual se encontram uma recepção e uma interpretação criativa do cristianismo; no teatro suassuniano, o mundo é o palco em que o ser humano, errante, procura, sem encontrar, amparo e sentido em sua vida, esforça-se para fugir ao absurdo que pode a qualquer instante esmagá-lo, devido à violência e à morte. Amparo e sentido que se encontram na abertura para o transcendente, que muitas vezes se manifesta somente após a morte, quando o ser humano se vê diante da divindade, como no Auto da Compadecida e em A pena e a lei, ou ainda, permanecendo como interrogação e expectativa, em O santo e a porca e O casamento suspeitoso.

A dramaturgia suassuniana, ao eleger como paradigma de sua elaboração artística, e mesmo de sua cosmologia, a arte popular nordestina, propicia uma revalorização e recuperação da tradição popular. Ao colocar em
cena sua representa ão dos pícaros, dos “amarelinhos”, estes permitem explicitar sua compreensão do povo sertanejo, mas também a condição de alienação em que o ser humano se encontra em relação ao transcendente."

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Fonte:
Claudio Santana Pimentel: “HUMANIZAÇÃO DO DIVINO, DIVINIZAÇÃO DO HUMANO: Representações do imaginário religioso no teatro de Ariano Suassuna”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências da Religião, na área de concentra ão “Religião e Campo Simbólico”, sob orientação do Professor Doutor Ênio José da Costa Brito). São Paulo, 2010.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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