A filosofia da arte de Goethe


"As obras da época de juventude de Goethe se tornaram marcos do Sturm und Drang, o pré-romantismo alemão. No entanto, o escritor se afastou cada vez mais dos princípios desse movimento, principalmente após sua viagem de dois anos à Itália (1786-1788). Neste destino tão desejado, ele esteve em contato com os originais de obras de arte da Antiguidade Clássica, passando a valorizá-la cada vez mais, o que lhe rendeu o título de “classicista”. Ao retornar da viagem, Goethe assumiu um cargo importante na corte de Weimar e, juntamente com Friedrich Schiller, inaugurou na cidade um novo classicismo, cujo veículo de divulgação era a revista Propileus (1798-1800).

Goethe era tido pelos românticos, assim como Shakespeare, como modelo para a afirmação de uma literatura nacional fora dos ditames do classicismo francês. Schlegel questionava os que desaprovavam a negligência m trica de seus poemas: “Mas as leis do hex metro alemão deveriam ser tão conseqüentes e universalmente válidas quanto o caráter da poesia goethiana?”. No entanto, Goethe, seguindo uma crítica próxima à hegeliana, procurava escapar às armadilhas do subjetivismo exagerado e do excesso de especulações abstratas que, a seu ver, caracterizariam o romantismo. “Clássico é o que é são, romântico o que é doente”, dizia ele.

O classicismo de Weimar, de Goethe e Schiller, era diferente do classicismo de inspiração francesa que apresentamos no primeiro capítulo. Na tese Helenismo e classicismo na estética alemã, de Pedro Süssekind, vemos que o classicismo de Goethe e Schiller só pode ser compreendido justamente a partir de sua contestação ao classicismo francês. Os amigos de Weimar deram continuidade ao projeto winckelmaniano de imitar os gregos, mas essa imitação não era tal como a produção de uma cópia. Isso significa que, para eles, os modernos deveriam imitar o ideal de beleza clássico, marcado pela harmonia, equilíbrio, simplicidade e comedimento.

Um texto que mostra a importância exemplar dos gregos para Goethe o ensaio “Sobre Laocoonte” (1798), publicado no primeiro n mero da Propileus. Segundo Süssekind:

[...] Laocoonte é o sacerdote troiano que foi incumbido de realizar um sacrifício a Posseidon, quando os gregos simularam sua partida da costa e se esconderam no célebre cavado de madeira deixado como presente para o rei Príamo. Como Virgílio conta na Eneida [...], quando estava na iminência de revelar a presença dos guerreiros gregos no interior do cavalo de Tróia, o sacerdote foi castigado pelos deuses por meio de uma serpente gigantesca, que o matou junto com seus dois filhos.

No ensaio, Goethe analisa o grupo escultório do Laocoonte que retrata a cena em que os filhos são enrolados pela serpente e o pai é mordido. No século XVIII só se conhecia a cópia em mármore do grupo (que até hoje pode ser vista no Vaticano), mas atualmente sabe-se da existência de um original grego de bronze. Goethe explica, com base na sua observação da obra de mármore, que a obra pode ser sentida, mas não conhecida:

Uma obra de arte autêntica, assim como uma obra da natureza, permanece sempre infinita para o nosso entendimento; ela é contemplada, sentida, faz efeito, mas não pode ser propriamente conhecida, muito menos podem ser expressos em palavras sua essência, seu mérito.

Podemos observar nesta citação a valorização goethiana do sensível sobre o racional. Mesmo com essa advertência e certa reserva em relação à crítica, Goethe encontra um ganho ao fazê-lo, uma espécie de exercício. Ele discorre sobre Laocoonte destacando que o grupo escultório preenche todas as exigências de obra de arte elevada, inclusive a apresentação do Ideal.

A escultura de Laocoonte, como toda arte plástica, tem como objeto supremo o ser humano, mas ela é única porque levaria a representação ao ápice, já que mostraria apenas o que é essencial. Para isso, o artista necessitou “abranger o objeto em toda sua amplitude, a fim de encontrar o momento supremo a ser representado e, portanto, de destacá-lo de sua realidade restrita e dar-lhe medida, limite, realidade e dignidade de um mundo ideal”. O ímpeto e a dor do sacerdote estão reunidos em um instante que permite mostrar ao mesmo tempo o sofrimento sensível e o espiritual. Laocoonte é um modelo de simetria e multiplicidade, repouso e movimento, oposições e gradações que em conjunto provocam um efeito agradável porque fazem dela uma obra autônoma, “fechada” na terminologia goethiana. Ele descreve o grupo:

O [filho] mais jovem se defende impotente, ele está apavorado, mas não machucado; o pai reage com muita força, mas em vão, antes sua reação provoca o efeito oposto. Ele provoca o seu oponente e é ferido. O filho mais velho é o que está menos asfixiado; ele não se sente pressionado nem com dor, ele se assusta por causa do ferimento instantâneo e pelo movimento de seu pai, ele grita e se levanta no momento em que procura afastar a extremidade da serpente de um de seus pés; aqui, portanto, temos mais um observador, um testemunho e um participante do ato, e a obra está concluída.

Estão ali os três tipos de sofrimento próprios do homem. A obra provoca a compaixão pelo filho mais novo, o terror pelo pai e o medo pelo filho mais velho, que ainda pode escapar. Por isso, Goethe acredita que a obra esgote o seu objeto e preenche com sucesso todas as condições da arte.

Poderíamos dizer que, apesar de ter início com a observação atenta do corpo humano, a produção da escultura Laocoonte ultrapassa o que Goethe chama de “imitação simples da natureza”. Os primeiros românticos de Iena, como vimos, enfatizam o momento de recepção da obra de arte como essencial para a produção de seu sentido. Já Goethe, embora valorize o efeito, não dá tanta importância ao leitor e à crítica quanto os românticos. No ensaio “Imitação simples da natureza, maneira, estilo” (1789), publicado pouco tempo após o retorno da Itália, Goethe prefere se ater à esfera da produção das obras de arte.

Para produzir obras belas, o artista deveria primeiramente se exercitar na “imitação simples da natureza”, que consiste em se dirigir a objetos da natureza e modelos humanos a fim de copiar exatamente suas formas e cores. No entanto, se o artista não ultrapassa esse estágio da produção, acaba por se tornar limitado e manejar objetos agradáveis, mas também limitados. Já a “maneira” se refere ao modo como o artista cria uma linguagem própria para expressar o que a alma apreendeu. Ela se aplica, por exemplo, a imitações em que se deve abrir mão do singular para apreender o todo, como na pintura de paisagens. Na maneira se destaca o modo particular como o artista age, ou seja, sua linguagem, que se difere da de outros artistas. Esse modo de produção revelaria a face mais subjetiva da arte, diferente da objetividade do modo anterior.

Existe um terceiro grau da produção artística, síntese dos dois anteriores, que é o mais elevado que se pode alcançar. Trata-se do estilo. A imitação simples da natureza requer uma existência tranqüila e uma presença adorável, a maneira, um ânimo leve para apreender o fenômeno, já o estilo “repousa sobre a fundação a mais profunda do conhecimento, sobre a essência das coisas, na medida em que nos é permitido conhecer a essência em formas visíveis e apreensíveis”.

Estas três etapas mostram, de forma crescente, os graus em que pode se dar a criação artística como imitação da natureza. A representação mais elevada não tem como exigência a fidelidade, mas sim a expressão da perfeição do Ideal, do momento que revele o mais essencial do que está sendo apresentado. Nesse sentido, o Ideal é arquétipo, um modelo relativo da arte. Lemos em “O ensaio sobre a pintura de Diderot” (1798):

A arte não empreende uma disputa com a natureza, em sua amplitude e profundidade, ela se atém à superfície dos fenômenos naturais; mas ela tem sua própria profundidade, seu próprio poder; ela fixa os supremos momentos desses fenômenos superficiais, na medida em que reconhece neles o caráter da lei [das Gesetzliche], a perfeição da proporção conforme a fins [zweckmässigen], o ápice da beleza, a dignidade do significado, a altura da paixão.

Ao chegar a criar ressaltando o valor mais essencial da natureza, é possível que também os modernos tenham estilo, embora isso seja uma exigência, mais do que uma realidade, como Goethe ressalta na Introdução à revista Propileus. Ele mostra que é raro na época moderna que o artista crie “algo de espiritualmente orgânico, de modo que possa dar sua obra de arte um tal conteúdo, uma tal forma que faça com que a obra pareça ao mesmo tempo natural e além do natural”.

A boa obra de arte, na terminologia goethiana, é símbolo. Diferente do alegórico, o simbólico designa diretamente, e não indiretamente. No símbolo vemos o universal no particular, já a alegoria um exemplo do universal. Em “Máximas e reflexões” Goethe diz: “O verdadeiro simbolismo ocorre quando o particular representa o que é mais universal, mas não como sonho e sombras, como revelação viva e instantânea do que imperscrutável”.

Segundo Tzvetan Todorov em sua introdução aos Écrits sur l’art, Goethe buscava a lei eterna que fundamentava as formas perceptíveis, e por vezes caóticas, da natureza. No entanto, não se trata de realidades distintas, o geral e o particular só são conjuntamente. A arte mais elevada é a que corresponde ao ideal de interpenetração do particular e do universal. Trata-se da possibilidade de uma reconciliação entre a aspiração ao Ideal e a experiência do Real. A obra feita com estilo, simbólica, tenderia ao equilíbrio entre a subjetividade e a objetividade. O que Goethe critica é a preponderância de apenas um desses elementos. A interação entre os dois é o admirável. Tendo em vista que o Goethe maduro criticou os excessos da estética romântica, ele puxou seu arco para o sentido de uma “nova objetividade”, visando, segundo Todorov, abandonar a supremacia da interioridade individual.

Por fim destacamos que, no campo de discussão entre forma e conteúdo da arte, Goethe diz: “O que da obra de arte interessa mais aos homens do que o como”. Aqui ele se encontra com Benjamin, senão totalmente, ao menos na consideração de que o conteúdo da obra deve ter seu valor destacado."

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Fonte:
MIRIAM COSTA CORDEIRO: “A TESSITURA DA CRÍTICA BENJAMINIANA: ENTRE OS ROMÂNTICOS E GOETHE”. (Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte. Orientador: Prof. Dr. Pedro Süssekind Viveiros de Castro). Ouro Preto, 2010.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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