“Comecemos este tópico, “lendo” o menino Graciliano, destacando principalmente os momentos de sua formação leitora, já que eles foram tão marcantes na vida do autor que, mais tarde, se transformarão em material de escrita.
Para Paulo Freire antes que o ser humano comece a decodificar palavras, uma outra leitura já é realizada: A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente (FREIRE, 2005, p.11).
Na vida do garoto Graciliano, esta afirmativa parece ser uma realidade, pois seu primeiro contato com a leitura acontece de forma desastrosa, pois não consegue se adaptar aos métodos tradicionais de leitura – uso da carta de ABC, palmatória e castigos –, utilizados primeiro pelo pai, “o pai que atrai a criança para o mistério dos livros, não tem a chamada vocação didática” de acordo com sua filha Clara Ramos (1979, p. 29). O mesmo acontece depois com os mestres das escolas, só conseguindo ele então ser alfabetizado com quase dez anos.
Ao entrar na escola, também encontrou a violência e o medo como metodologias de aprendizagem de leitura: “Matriculado na escola pública, Graciliano cairia na tutela da profª Maria do O, figura robusta que inspirava pânico nos alunos” (MORAES, 1993, p.16).
Também em seu livro A pedagogia do oprimido, Paulo Freire cria uma conexão com a realidade descrita em Infância, quando faz a seguinte afirmação; “a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser” (FREIRE, 2005, p.48). Em Infância é possível perceber que as atitudes opressoras ali reinantes proíbem o narrador-personagem de se comportar como um ser infantil, livre para brincar e para viver fantasias e isso prejudica sua aprendizagem, fazendo com que ele tenha dificuldade em adentrar o universo da leitura.
No entanto, enquanto não dominava o mundo das letras, o garoto ia lendo o mundo em que vivia, começando a se transformar no grande observador da realidade que foi durante toda sua vida.
Em sua leitura do mundo, ele vai lendo e registrando na memória quase tudo o que lia, os castigos sofridos na família e na escola, as diferenças sociais, o comportamento dos adultos, que ele classificava como estranho, a falta de liberdade para brincar e se comportar como as outras crianças, as injustiças, as mudanças na natureza: a alternância dos períodos de chuva e de seca. Ou seja, ele vai lendo o comportamento do ser humano e do ambiente em que vive.
A leitura do mundo junto com a leitura das palavras. Depois que consegue ser alfabetizado, transforma-se num exigente leitor, realizando suas leituras sempre acompanhado por um dicionário e um Atlas, tentando captar ao máximo o significado de cada palavra: todo esse manancial de índices irá transformar-se em escrita e terá uma grande influência na sua vida como escritor e como profissional envolvido em cargos públicos.
Numa passagem do livro de Dênis de Moraes é possível observar a importância do uso de dicionários para o leitor Graciliano:
Os cinco anos passados em Maceió confirmariam a inclinação autodidata. Disciplinado, ele se enfurnaria nos estudos de português e de línguas estrangeiras (latim, inglês, francês e italiano). Adquiriria um hábito para o resto da vida: consultar dicionários. “Dicionários, para mim, nunca foram apenas obras de consulta. Costumo lê-los e estudá-los. Como escritor, sou obrigado a jogar com as palavras, preciso conhecer-lhes o valor exato”, justificaria (MORAES, 1993, p.20).
A leitura iniciada no fim da infância prossegue na adolescência, sendo constituída, em sua maior parte, por textos literários. O menino vai ampliando o seu leque de conhecimentos lendo grandes autores, como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Júlio Verne, Eça de Queirós, Coelho Neto, Victor Hugo, Émile Zola, entre outros.
Talvez, influenciado por tantas leituras, ainda na adolescência, Graciliano, que muitas vezes foi considerado como alguém sem muita inteligência, por ter dificuldade com a leitura e também com a escrita, pois sua tentativa de escrever era feita de verdadeiros garranchos, começa a escrever contos. “Graciliano Ramos estrearia, aos 11 anos com o conto “O pequeno pedinte” (MORAES, 1993, p. 18).
Já na fase adulta, o mestre alagoano exerceu alguns cargos públicos, como diretor da Instrução Pública em Alagoas e Inspetor Federal do Ensino. Durante dois anos foi prefeito de Palmeira dos Índios, fato marcante em sua vida, pois é por causa de relatórios escritos neste período que o seu primeiro romance Caetés (1933) será publicado, pois um dos relatórios escritos por Graciliano – segundo Wilton Cardoso, “são na verdade, obra de um escritor feito” – chegou às mãos do editor Augusto Frederico Schmidt, que percebeu o talento literário do escritor, procurou-o e publicou o seu primeiro romance. (1993, p.40)
Graciliano exerceu ainda a profissão de comerciante, primeiro tomando conta dos negócios do pai, e, depois, tendo o seu próprio comércio. Em alguns momentos foi mestre, dando aula para algumas pessoas que necessitavam de instrução, como podemos verificar nos seguintes excertos da biografia composta por Clara Ramos:
[1] Quando Graciliano chegou a Palmeira dos Índios com fama de possuir uma cabeça privilegiada, um grupo de rapazes o procurou com a solicitação de propagar seus conhecimentos num curso noturno. (...) Graciliano iniciara então sua carreira de professor de roça, que deverá estender-se, com períodos de interrupção, até 1932. (1979, p. 35)
[2] – Este é o Professor Graciliano Ramos.
- Professor de coisa nenhuma, foi nos dizendo ele. (1979, p. 57)
Trabalhou ainda bastante tempo como colaborador de vários jornais e revistas, foi também tradutor, mesmo que não se reconhecesse como tal: “ele não se considerava tradutor, mas fez traduções. Ao que saiba, além de poesias francesas e italianas, por aí dispersas, distantes, de uma antologia de contos russos que revisou unificando, melhorando, assinou duas edições brasileiras: Memórias de um negro, de Booker Washington, e A peste, de Albert Camus, como consta na biografia escrita por Ricardo Ramos (1992, p. 112)
É interessante que seja observado, nestes dados biográficos, que trazemos para o palco da nossa discussão, o envolvimento de Graciliano com a atividade educacional.
Graciliano foi sempre um crítico ferrenho das escolas do sertão, censurava rigidamente os métodos de ensino utilizados pelos professores, assim como a precária formação desses educadores.
Então, quando estava atuando como prefeito de Palmeira dos Índios, ao escrever o segundo relatório de prestação de contas do município - que enviou para o governador de Alagoas, Álvaro Paes - faz a seguinte afirmação:
Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. (...) Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.
Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros (RAMOS, 1980, p. 50 e 51).
Podemos constatar que a preocupação e o envolvimento de Graciliano com a educação é constante, portanto, ao assumir o cargo de diretor da Instrução Pública de Maceió, causa uma verdadeira revolução educacional. Durante a sua gestão, coloca para funcionar escolas que estavam paradas, distribui gratuitamente fardas e material escolar para os alunos carentes, institui o regime de turnos e, com isso, aumenta o número de vagas nas escolas, além de criar um serviço de fiscalização de ensino, promover seleção de professores para o preenchimento de novas vagas e autorizar a equiparação dos salários das professoras rurais às da capital.
Sempre com o seu jeito rígido, mas ao mesmo tempo dedicado e honesto de administrar, além de se preocupar com a qualidade na educação, ao reparar as escolas que estavam quase destruídas e construir outras – visando transformá-las em ambientes mais agradáveis do que as em que ele estudara quando criança – ainda tentava acabar com o clientelismo e os favorecimentos, pois alguns políticos buscavam conseguir transferências de professores para se beneficiarem, prática comum no contexto político de 1928, momento em que o Brasil era dominado pela política dos coronéis.
No entanto, a mesma eficiência que agradava algumas pessoas, desagradava outras, “a sua aversão ao clientelismo, aos favorecimentos e ao tráfico de influência provocaria descontentamento” (MORAES, 1993, p. 87). É talvez por causa de alguns inimigos conquistados durante a sua gestão, que, em 3 de março de 1936, ele foi preso, sendo a justificativa de sua prisão o fato de fazer parte do partido Comunista, o que só viria a acontecer no ano de 1945, vários anos após a sua liberdade. Portanto não havia um motivo concreto para que ele fosse preso.
Falamos um pouco sobre o cidadão Graciliano Ramos: o político, comerciante, professor, tradutor, colaborador de jornais, funcionário público – o fato de ter sido funcionário público ao longo da sua vida profissional, tendo como patrão o governo, faz com que Graciliano receba algumas críticas, pois, ao mesmo tempo em que discorda da forma de governo do Estado Novo e a ele mostra ojeriza, é funcionário do Estado, a exemplo de autores como: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Lima, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade e muitos outros. De acordo com Adriana Coelho Florent, porém, “muitos dos escritores serviram o Estado e não ao Estado (2006, p. 145) acrescentando que, ao se ler as obras Vidas secas, de Graciliano Ramos, e A Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, “chega-se facilmente à conclusão de que não submeteram a sua criação aos interesses do governo para o qual trabalhavam” (FLORENT, 2006, p. 146). Ou seja, os escritores trabalhavam para o governo, mas não se vendiam.
Na verdade o escritor alagoano foi um participante ativo dos problemas sociais, provavelmente por isso é que no universo ficcional do autor são retratados, em grande parte, trabalhadores rurais e urbanos, modestos funcionários, retirantes miseráveis, ladrões, presidiários e, entre outras personagens, crianças infelizes – essas bastante trabalhadas em nossa pesquisa.
Depois de falarmos tanto do cidadão o nosso leitor pode nos indagar, e a produção do escritor? Como ele conciliava as suas atividades políticas com o ofício da Literatura?
Para refletirmos sobre esta questão retomaremos a segunda questão elaborada no início deste tópico: Graciliano explica suas obras ou são suas obras que o explicam?
Pensamos que nem uma coisa, nem outra, pois, segundo Dominique Maingueneau:
Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união (2001, p. 46).
Portanto não podemos separar as outras profissões que o autor alagoano exerceu de seu ofício de escritor. Não temos como separar o literato do cidadão e vice-versa. E, por meio deste pensamento contido no texto de Adriana Coelho Florent, podemos inferir a seriedade com que o autor de Caetés encarava a profissão de escritor: ”Graciliano esboçou uma posição firme e coerente com relação ao trabalho de criação literária: trata-se de uma atividade profissional, que deve ser respeitada como as outras, e não de um passa tempo para ociosos” (FLORENT, 2006, p.151).
Ainda em relação às questões supracitadas, queremos esclarecer que o leitor formado no final da infância e o escritor surgido na adolescência continuaram existindo e que foi durante as atividades relatadas, por nós anteriormente, que o autor concluiu as suas três primeiras obras, Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (1936), sendo esta última publicada no período em que ele estava preso.
Seus outros livros: Vidas secas (1938), A Terra dos meninos pelados (1939), Infância (1945), Insônia (1947), são escritas após a sua saída da prisão.
Já Memórias do cárcere (1953), Viagem (1954), Linhas tortas (1962), Viventes das Alagoas (1962), Alexandre e outros heróis (1962), Cartas (1980), Cartas a Heloisa (1992) e Relatórios (1994), foram publicados após a sua morte, em 1953, vítima de câncer de pulmão. Atualmente suas obras estão traduzidas em diversos idiomas, como italiano, francês, inglês, russo e vários outros.
Comparado a outros autores da geração de 30, Graciliano tem uma produção literária pequena, mas extremamente madura e importante para a história da cultura brasileira, como podemos comprovar através de filmes que foram feitos baseados em suas obras: Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Memórias do cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos e São Bernardo (1972) de Leon Hirszman e de inúmeros artigos e trabalhos acadêmicos que a tomam como temática, como já foi assinalado.
Para fecharmos esta nossa fala sobre o escritor alagoano, decidimos retomar o texto de João Cabral de Melo Neto, na epígrafe escolhida para dar início a esse tópico, somando-o às palavras do próprio Graciliano (numa carta escrita para sua irmã Marili Ramos), “Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos” (RAMOS,1982, p. 213). Estas duas falas mostram o Graciliano realista, enquanto que as palavras da autora Clenir Bellezi de Oliveira no texto “A flor do mandacaru”, na qual ela se apóia nas palavras de Oswald de Andrade, que compara o Graciliano a um mandacaru escrevendo, servem para mostrar um Graciliano, que se expressa de forma forte e resistente como a beleza desta planta agreste do sertão. O mandacaru resiste ao sol forte, à seca, a obra de Graciliano resiste ao tempo – quando abrimos, por exemplo, o livro Infância, podemos perceber o quanto o seu enredo é atual, como ele pode ser discutido até hoje, quando falamos da decadência que ainda vigora na educação brasileira, na qual, temos de um lado crianças que lidam muito bem com a tecnologia e do outro crianças que continuam dentro de escolas sem aprenderem a ler e muito menos a escrever. As palavras da autora se coadunam com o nosso pensamento de que Graciliano não foi o homem tão pessimista, como se afirma com freqüência acerca dele, mas sim um ser humano extremamente sensível, mas realista, belo e resistente como o mandacaru."
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Fonte:
MARIA DE JESUS VAZ DE SOUSA: “RETRATOS
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Fragmentos da vida de Graciliano
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