A fulgurância do sucesso de Tutaméia



Tutaméia teve seu lançamento amplamente divulgado pela mídia impressa, mas recebeu um número pouco expressivo de resenhas ou textos críticos. O aspecto do livro mais observado nas notícias da época é a presença de quatro prefácios e a continuidade do estilo de Primeiras Estórias, a saber, o do conto curto; já as resenhas aludem ao princípio de condução do leitor, principalmente no que tange às epígrafes e à existência dos prefácios. Reúno aqui um panorama geral desse primeiro momento da fortuna crítica de Tutaméia, a partir dos textos mais relevantes.

Em alguns dos recortes de periódicos guardados por Guimarães Rosa é patente a tentativa dos autores de entender a singularidade do conjunto de contos. João Condé afirma ser Guimarães Rosa o nosso Góngora. Tristão de Athayde indica que o livro é a confirmação de singularidade frente a toda a história da literatura brasileira, marcando a solidão ficcional do autor de Sagarana. Para ele, a estilística rosiana é antropofágica, pois o autor é tragado pelo estilo; e ainda: poderíamos analisar cada um de seus contos “como aspectos de uma só realidade consistente e confusa”.

Ainda em 1967, o estudo de Laís Araújo determina que a habilidade lingüística “é ela mesma personagem e obra”. Segundo a pesquisadora, essa linguagem impregna-se “de imediato no leitor, entra-lhe pelos poros e absorve e transmuda a nossa indigente capacidade oral e escrita”. A estória seria uma tutaméia porque prescindiria da fabulação para “sobrenadar na superfície do fato, inexistível por desnecessário – como em Hiato, Quadrinha de estória e No prosseguir etc. – esboços enquanto contos, mas totais enquanto Guimarães Rosa”.

A conclusão do texto recai no questionamento sobre a possível diminuição do livro em virtude dos comentários tecidos sobre ele, ao que a autora responde: “nós, não, o autor, por desarmar-se de sua espessura dramática, sua metafísica, seu halo de absconso e fusco”. Ou seja, o autor teria decidido apresentar em retalhos vários mundos (telúrico e afetivo, dramático e assombrado, bem e mal, entre outros). Por fim, ela pondera que: “ainda assim, Tutaméia será talvez essa ninharia indispensável, desejável, à mão, consumível rápida e levemente, mas de sabor indelével e incorruptível”. O que interessa para minha leitura é a constatação desse efeito de esboço, de inacabado ou de retalho que por diversas vezes os contos provocam.

Entre 1967 e 1968 são publicados os textos de Assis Brasil sobre Tutaméia no periódico carioca Jornal de Letras. O crítico pretende analisar os prefácios a partir da idéia de testamento estético e, de certa forma, inaugura, em relação a Tutaméia, a interpretação baseada na idéia de necessidade de decifração textual para sua compreensão. O crítico chega mesmo a apagar as fronteiras entre ficção e realidade, afirmando que Tutaméia nos dá “a chave estética de sua obra, um resumo didático de sua criação, através de quatro prefácios, onde o ficcionista ‘explica’ o mecanismo de sua arte”. O estudo seduz por ter em seu horizonte a explicação do mecanismo da arte de Guimarães Rosa, mas termina forçando o texto a curvar-se a essa idéia.

Há também críticas avessas ao livro, como as de Leão de Almeida e Nogueira Moutinho.

Leão de Almeida afirma que o autor não tinha mais o que dizer: para ele, Guimarães Rosa aproveitou-se da falta de assunto para acentuar seus “malabarismos técnicos e de linguagem”. Sugere ainda que o livro é bem ordenado e de leitura “amena, séria, deleitosa, de mais fácil compreensão do que as obras anteriores, engraçadas aqui e ali, pintadas de dramaticidade”.

Também é exemplar o artigo de Nogueira Moutinho, pois este comenta a troca da “estória”, pela “estorinha”; e afirma que o autor abandonou um romantismo onírico para descer “ao nível desse mar morto (diria pântano) no qual pachorrentamente estadeiam-se as flores tristes e pobres de um trivialismo”. Nesse sentido, Moutinho aceita que Guimarães Rosa teria a liberdade de mudar, mas apenas se o fosse para melhor:

após as Primeiras Estórias não se poderia admitir uma relativização das forças novelísticas, uma redução do poder encantatório e mágico, um restringir-se à exclusiva e inócua liberdade de deflagrar um instrumento lingüístico poderoso e inusitado sem atribuir-lhe um significado maior, uma força de desvelamento que o justifique.

Para ele, o autor deveria elaborar “sua equação da realidade” e demonstrá-la como fez em Primeiras Estórias. Por fim, atribuiu o seguinte julgamento ao livro: “Guimarães Rosa permite-se agora unicamente a construção de vazios edifícios vocabulares, cada vez mais ininteligíveis ao leitor comum”.

Mais adiante, retomaremos alguns aspectos sublinhados por esses dois autores, como os efeitos de trivialismo, o deslocamento entre a leitura fácil e a ininteligível, a “relativização das forças novelísticas”.

Observa-se nesse breve panorama da recepção contemporânea ao lançamento de Tutaméia que o livro parece ter causado desconforto até para os que o defendiam (quatro prefácios, muitas estórias, linguagem como personagem) e não só foi criticado, mas repudiado pelos que não gostaram. Duas posturas são marcantes nessa recepção: os que o aceitaram, mesmo com ressalvas, estavam mais atentos aos elementos de composição textual e estrutural, enquanto os que o negavam posicionavam-se contra essas características, pois, para elas seriam responsáveis pela supressão da mímesis realista e do substrato “encantatório e mágico”, consagrado na recepção anterior de Guimarães Rosa.

Um dado interessante: mesmo sendo um dos livros menos estudados pela crítica rosiana, Tutaméia teve sua primeira edição esgotada em menos de três meses. Ao contrário do que parece, ao trazer essa informação não queremos insinuar que haja muita diferença entre a leitura do público comum e a do público especializado, mas sim que havia grande expectativa em relação a mais nova obra do autor de Grande Sertão: Veredas. O dado apontado revela também que a produção de valor agregado ao nome João Guimarães Rosa pelos consumidores foi desigual à produção de valor concedido à obra – lembremos a relação entre produção e recepção problematizada por Valéry: o “consumidor (...) torna-se produtor: produtor, primeiramente, do valor da obra; e, em seguida (...) do valor do ser imaginário que fez o que ele admira”.

Os dados, notícias, críticas e resenhas citados acima foram todos pesquisados no arquivo pessoal do escritor. A coleta e organização desse material por parte de Guimarães Rosa mostram que este se preocupava em documentar o que a crítica falava a respeito de sua produção. Isso significa que, de alguma forma, ele tinha ciência do tipo de leitura que faziam de suas obras. Mesmo assim, até hoje quase não há trabalhos que as avaliem em relação ao campo literário em que suas obras estão inseridas. Nesse sentido, a leitura de Covizzi é inovadora, pois, ainda em 1969, percebe que a escrita de Tutaméia está marcada por esse diálogo com o discurso crítico da época. A partir do exame dos prefácios de Tutaméia, Covizzi conclui que, assim como os textos de ficção, eles possuem pluralidade de níveis de significação. Desse ponto de vista, poderiam ser lidos em três níveis: “a) como estória, se bem que mais informativa que ativa; b) como problemas fabulados de teoria literária; c) como pretexto de justificação de concepção existencial”.

Por não apresentarem o caráter explicativo, os quatro prefácios terminariam por caracterizar um livro com dupla função, a saber, “teoria/prática, e elemento a mais pour épater quantos o lêem”. Segundo Covizzi, isso acontece porque o autor deixou sobressair a necessidade de justificar a obra, resultando numa “impressão de livro didático, orientado, que não deixa cada qual senti-lo e/ou dissecá-lo em paz, sem um semáforo a dizer constantemente, como um obstáculo com o qual se tropeça a cada passo: PARE! ATENÇÃO! SIGA!”.

Concordo com tais afirmações uma vez que problemas literários indicados pela crítica especializada em livros anteriores são tratados em Tutaméia, por Guimarães Rosa, de forma diferenciada, principalmente quanto à estruturação do duplo e à elaboração de efeitos de produção textual. Entretanto, discordamos da negatividade que tomam as assertivas de Covizzi, sobretudo por causa de um a priori dessa leitura, pois ela parece fundada na idéia de que os textos devem formar uma unidade entre si (os paratextos “destoam do todo da obra”). Isso acarreta a eliminação do caráter lúdico da multiplicidade textual, segundo o qual os contos podem ou não dialogar com outras narrativas do autor."

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Fonte:
Mônica Fernanda Rodrigues Gama: “Sobre o que não deveu caber repetição e diferença na produção e recepção de Tutaméia”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Língua e Literatura Francesa Orientadora: ProfaDra Claudia Amigo Pino). São Paulo, 2008.

Nota
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