“Tuta e meia”, Guimarães Rosa e os provérbios



“João Guimarães Rosa, como apreciador da cultura popular, suas crenças, mitos e falares, inscreve muitos provérbios em suas narrativas. Porém, são poucos os estudiosos que se dedicaram a um estudo mais aprofundado sobre os provérbios na obra do escritor mineiro. Tais estruturas são importantes em seu processo criativo, chegando o próprio autor, em carta a seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, a afirmar: “Ora, já deve ter notado que freqüentemente eu utilizo a matéria de provérbios ou de lugares-comuns, para obter uma nota de humour” (ROSA, 2003b, p. 311).

Até este momento, há uma bibliografia mais numerosa que trata dos provérbios em Tutaméia – Terceiras Estórias; nas demais obras do escritor, esse estudo é ainda muito escasso.

Benedito Nunes, em ensaio de 1969, observa aspectos importantes sobre os provérbios e ditos paremiológicos em Tutaméia:

Da modificação de locuções e provérbios, que soem representar a sabedoria consagrada e popular, obtém Guimarães Rosa um novo sentido, de mistura com o não-senso. (...)
O cômico na linguagem não se detém nesse enriquecimento por inversão de termos e transposição de significados. Continua, já em outro nível, na criação, que é réplica à imaginação popular e ao folclore, de autênticos provérbios e ditos (NUNES, 1969, p. 207).

O estudioso dá grande peso aos provérbios modificados por Rosa e àqueles por ele criados, pois mantêm o folclórico e o popular típico das sentenças proverbiais, além de trazerem humor misturado ao não-senso, acrescentando novos sentidos às sentenças. Nunes observa duas maneiras de inserção dos provérbios em Tutaméia: a modificação de locuções e provérbios e, ainda, outras sentenças, criadas, como réplicas a provérbios e ditos. Nunes afirma, ainda, que:

De fato, o jogo da linguagem, levado, em Tutaméia, ao extremo do paradoxo, volteia nas diversas glosas humorísticas a expressões comuns, e num confronto exaustivo com o mundo e com a existência expande-se na criação de vocábulos novos. Foi a dúvida, a tudo problematizando, que impulsionou esse jogo e que o conduziu àqueles últimos limites, onde a linguagem se transforma em meio de revelação, para dizer o que antes não podia ser dito
(NUNES, 1969, p. 209).

Assim, observa-se que, muito mais que simplesmente uma possibilidade de “humour”, os provérbios e frases feitas ganham densidade dramática, testemunho do embate entre o corriqueiro e a criação reveladora.

Outro interessante trabalho é o desenvolvido por Santos, no qual a pesquisadora faz um levantamento, em todos os quarenta contos e quatro prefácios de Tutaméia, dos provérbios recriados por Rosa e seus respectivos originais, além de estudar os procedimentos lingüísticos empregados por Rosa para a modificação dos provérbios e clichês. A pesquisadora esclarece:

O que se verifica, configurada na sistemática modificação fraseológica dominante no texto, constitui, da parte do escritor, “uma aplicação consciente da liberdade criadora” diante do material por ele observado em todos os quadrantes: no mundo, na língua, no corpo social, destinatário da comunicação artística, e diante do julgamento dos peritos em questão de correção gramatical, de Literatura e Crítica
(SANTOS, 1983, p. 538).

A posição de Santos e de Nunes coincide; os dois pesquisadores vêem, nas criações de Rosa, um embate entre o mundo por ele observado e sua habilidade e liberdade criadoras. O provérbio recriado é um espaço em que essa tensão se revela visto que se trata da renovação de uma estrutura conhecida e consagrada, que recupera sua carga poética e revela seu potencial artístico:

A modificação do clichê varia enormemente de figura em Tutaméia. É uma experiência extraordinária a verificação de como o escritor Guimarães Rosa vai “tirando do bolso”, não mais “rios, cada qual com sua cor de água” (na invenção poética de Drummond), mas “novidades”, a partir das velhas formas de uso corrente, e, desconstruindo-as, desperta-lhes sentido novos
(SANTOS, 1983, p. 547).

Para Santos e Nunes, desconstrução de velhas estruturas não anula o sentido anterior, mas acrescenta novos sentidos aos já consolidados pelo provérbio original:

(...) o “grupo fraseológico”, uma vez rompido ou parodiado, mediante as modificações mais inesperadas, instala uma surpresa mais forte e mais durável: a comparação inevitável, pelo leitor, da forma estereotipada com a expressão nova, detém a atenção na singularidade do fato (SANTOS, 1983, p. 537 - grifo nosso).

Daí extrai-se que as duas formas são previstas na leitura, a convencional e a modificada, uma depende da outra para que haja a máxima expressividade poética.

Há, ainda, o significativo trabalho de Simões que vê nos provérbios recriados e criados por Rosa em Tutaméia a possibilidade de reflexão:

O provérbio funciona como um tipo de metáfora, descrevendo uma situação idêntica à ação. Ainda que não transgrida a fórmula consagrada, a função é semelhante à das outras estórias (de Tutaméia): trata-se de um preceito para pensar.
Ao lado dos provérbios modificados, há que assinalar a presença de imagens prosaicas, elo de ligação entre a linguagem erudita e popular nos contos das Terceiras Estórias, que, por outro lado, acentuam o tom cômico da narrativa (SIMÕES, 1988, p. 125 - grifo nosso).

Segundo Simões, as narrativas de Guimarães Rosa, especialmente as de Tutaméia, introduzem sentenças que suspendem a narração propriamente dita para provocar a reflexão do leitor. Para a autora existem três instâncias: o erudito, advindo da modificação dos provérbios, o prosaico, advindo das imagens propostas nas narrativas e o cômico, que aflora a partir desse contraste.

Percebe-se que os provérbios se inserem em Tutaméia de três maneiras diferentes: (1) recriações a partir de provérbios consagrados, (2) sentenças que mantêm as mesmas características estruturais e poéticas dos provérbios e (3) provérbios reproduzidos sem nenhuma alteração estrutural em relação aos originais.

Do primeiro caso, bons exemplos seriam: “Haja a barriga sem o rei” (T, p. 40); “(...) aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma” (T, p. 215); “(...) a andorinha e o verão por ela feito” (T, p. 217); “Marinheiro de primeira nem de última viagem” (T, p. 234); “Então, homem que vale por dois não precisa estar prevenido?” (T, p. 248) Como se observa, nos exemplos colhidos, a referência aos provérbios originais é nítida, operaram-se algumas modificações, mas as palavras centrais permaneceram.

Do segundo caso, alguns exemplos possíveis: “a gente tem de temer a gente” (T, p. 79); “não esperar; adiar de ser” (T, p. 206); “(...) no mal falar e curto calar” (T, p. 210); “Quem quer viver faz mágica” (T, p. 247). A estrutura das sentenças proverbiais é mantida: bipartite e completa, rimas, como esperar/adiar, falar/calar, mensagem admoestadora ou conselho, atemporal, impessoal, concentração de um pensamento numa métrica, metáforas, elipses, todos os recursos empregados nas frases feitas foram mantidos nas sentenças criadas.

Do terceiro caso: “Quem menos sabe do sapato é a sola” (T, p. 249); “Quem entra no pilão vira paçoca” (T, p. 250); “(...) janeiro afofa o que dezembro endurece” (T, p. 257). Nesse caso, o número de sentenças é mais reduzido, mas também se configura num método de apropriação do elemento popular.

Conforme se percebe, a maneira de inserção é diferente e isso se deve, possivelmente, ao questionamento proposto em vários níveis: do ensinamento que o provérbio encerra; de sua estrutura pronta que se presta facilmente ao jogo da linguagem versejadora e da condensação de pensamentos, mesmo que, em alguns casos, a mensagem admoestada inscreva um paradoxo, ou algo que sugira não a repetição, mas o movimento; da aplicação prática das sentenças que podem ser facilmente inseridas e, ainda, da seriedade das sentenças, reconstruídas, construídas, ou copiadas de maneira a dar um aspecto informal e mesmo cômico aos textos.

Do exposto, extrai-se que os provérbios configuram-se como matéria-prima da construção poética de Rosa."

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Fonte:
GISELE PIMENTEL MARTINS: “Os provérbios na construção do poético em Tutaméia-Terceiras Estórias”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Prof. Dr. Maria Rosa Duarte de Oliveira). São Paulo, 2008.

Nota
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