Representações de Guimarães Rosa



Neste capítulo, tratamos de aspectos da vida de Guimarães Rosa e do livro Tutaméia, em que quatro prefácios. Selecionamos o primeiro prefácio para análise, por ocupar, no início da obra, o posicionamento tradicional do prefácio, bem como por, dentre o conjunto de prefácios do livro, ser estruturado como um prefácio, uma vez que os demais, dispostos ao longo da obra, assemelham-se mais a estórias.

Trata-se da reformulação de um trabalho realizado (Ramos, 2008), para servir, nesta dissertação, como sistema de referências do qual partimos para a
análise, nos capítulos seguintes, do conto “João Porém, o criador de perus”.

Uma representação de João Guimarães Rosa: a sua vida
Vilma Guimarães Rosa (1999) apresenta-nos Cordisburgo, terra natal de seu pai, nascido em 27 de junho de 1908: “era a linha reta de uma rua, poucas casas muito simples, a pequenina igreja, um céu puro, muito azul. E a vastidão dos campos a se estender, sem limites visíveis.” (p.51)

João Guimarães Rosa foi o filho mais velho de Francisca Lima Guimarães e Florduardo Pinto Rosa, comerciante abastado que guardava na memória coleção fabulosa de expressões e casos relativos à tradição sertaneja, tornando-se, mais tarde, fonte a quem o escritor sempre recorreria.

Após o aprendizado das primeiras letras e um curto tempo de internato no Santo Antônio, em São João Del Rei, foi para Belo Horizonte, no Colégio Arnaldo. Descobriu muito cedo a literatura. Também se interessava pela botânica, pela entomologia e pela geologia. Cursou medicina. Casou-se com Lígia Cabral Penna, com quem teve duas filhas.

Serviu como médico voluntário da Força Pública, durante a revolução Constitucionalista de 1932. Nessa época, estreitou amizade com Juscelino Kubitschek, então médico chefe do Hospital de Sangue. Posteriormente, entrou para o quadro da Força Pública e, em Barbacena, foi promovido a capitão médio do 9º. Batalhão de Infantaria.

Começou a estudar russo e aperfeiçoou-se neste idioma por intermédio de antigos oficiais do Exército Czarista que haviam ido a Barbacena, como componentes do Coro dos Cossacos. Foi um nissei que trabalhava na Companhia de Força e Luz quem lhe transmitiu os primeiros ensinamentos de japonês. Ainda estudante, quando trabalhava no Departamento de Estatística, o diretor do serviço sugeriu-lhe que aprendesse o esperanto.

Segundo sua filha,
a angústia provocada pela sua extrema sensibilidade, no convívio com a doença e a morte que algumas vezes, apesar de seus esforços, não conseguia impedir, levou-o a abandonar a Medicina.” (p. 60). Nesse momento, conseguira prêmios literários, competindo em concursos da revista O Cruzeiro.

Em 1934, quando trabalhava no Serviço de Proteção ao índio, dispôs-se ao ingresso no Itamarati. Após o estágio na Secretaria do Estado, no Rio, designaram- lhe o consulado em Hamburgo.

Segundo Vilma Guimarães Rosa, “não era de paz o clima europeu. Na
Alemanha, queimavam-se livros, proscreviam-se escritores.(...) Inúmeros intelectuais deixavam a Alemanha”. (p. 62). Guimarães Rosa era na época um jovem cônsul brasileiro que, em seus relatórios, protegia aqueles que desejavam emigrar para o Brasil, judeus e não-judeus.

Sobre sua vivência na Europa à época do nazismo, esclarece-nos George Otte (2006) que Guimarães
Rosa não se manteve indiferente ao nazismo e indignou- se com a proibição do acesso de crianças judias a uma praça pública. Em momento algum manifestou compreensão pelo regime nazista e colaborou para a fuga de judeus para o Brasil, ao emitir, com a segunda esposa, Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, mais vistos do que as cotas legalmente estipuladas. Como prova de sua colaboração, Aracy é a única mulher homenageada no Museu do holocausto, em Israel.

Entre 1939 e 1942, serviu como correio-verbal das mensagens cifradas, entre as representações de Berlim e Lisboa. Nessa época, Guimarães teve sua casa destruída. Tendo saído, ao retornar encontrou somente escombros deixados pelas bombas. Ficou internado, em 1942, em Baden-Baden, à espera de que o Brasil e a Alemanha, em guerra, trocassem diplomatas por diplomatas. Segundo sua filha, Guimarães Rosa guardava lembrança comovida do sofrimento visto e vivido, inclusive da tensão vivida em sua viagem de retorno ao Brasil no navio Diplomatic.

Seu primeiro livro,
Contos, já havia concorrido, em 1937, ao Prêmio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio Editora, e alcançou o segundo lugar. João Guimarães Rosa levou mais sete anos reescrevendo esse livro.

Após a volta ao Brasil, o jovem diplomata foi designado para a embaixada brasileira em Bogotá.

Em abril de 1946,
Sagarana é publicado e consagrado pela crítica como uma importantíssima obra de ficção. Guimarães Rosa é convidado para chefe-de-gabinete do ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura. Foi então membro da Delegação à Conferência da Paz, em Paris. Voltou à Bogotá, em 1948, como secretário-geral da Delegação Brasileira à IX Conferência Interamericana. E o mesmo ano foi nomeado conselheiro de Embaixada, em Paris, onde serviu até 1951.

Em 1953, chefiava a Divisão de Orçamento do Itamarati. Em 1958, foi promovido a embaixador, recusou postos disputados no exterior para continuar em suas funções no ministério, bem como prosseguir em sua atividade como escritor. Segundo Vilma Guimarães Rosa, seu pai já retomara o contato com a terra brasileira em duas ocasiões marcantes: uma visita a Minas Gerais, em 1945, e uma excursão
ao Pantanal de Mato Grosso, que lhe inspirou a reportagem “Com o Vaqueiro Mariano”, publicada no Rio e em São Paulo.

Em 1956, já havia lançado as novelas de
Corpo de Baile. Foi neste ano que publicou o Grande Sertão: Veredas, seu único romance, que resultou em vários prêmios para Guimarães Rosa, que, em 1961, recebeu o “Prêmio Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras, para o conjunto de obras.

Em 1962, publica
Primeiras Estórias. Nesse ano, assume a chefia de Demarcação de Fronteiras, do Itamarati, tendo ajudado a resolver problemas de importância internacional relacionados com nossas fronteiras. Em 1965 e 1966, participou da resolução de problemas surgidos com o Pico da Neblina e o Salto de Sete Quedas.

Em 1967, a eleição para a Academia Brasileira de Letras era de quatro anos e Guimarães Rosa não havia se decidido a tomar posse, pois temia emoções demasiadas. Nesse ano, problemas de política internacional haviam exigido dele viagens, estudos, debates e pareceres. Foi vice-presidente do Congresso de Escritores, no México.

Em 1967,
Tutaméia é publicada. Na Europa, lembravam-lhe o nome para o Prêmio Nobel de Literatura.

Guimarães Rosa marcou a data da posse. Segundo sua filha, com o discurso pronto, pressentia as despedidas. A poucos amigos falou sobre seus receios. Três dias após sua posse morreu de ataque cardíaco. Em seu discurso, deixou a seguinte conceituação para a morte:
As pessoas não morrem, ficam encantadas.”

Deixou-nos sua obra, ambientada no sertão brasileiro, embora, nela, a tendência regionalista assuma característica de experiência universal, inaugurando uma maneira nova de refletir sobre as dimensões da cultura brasileira. Na ficção rosiana, o sertão não tem fronteiras. É o lugar de aprendizado existencial do homem:
“o sertão o mundo”.

Conforme Marli Fantini (2004:30), a escrita rosiana “encena processos de
conversação entre várias línguas, entre distintos planos temporais e formações culturais produzidos em âmbito regional, nacional e universal”.

Como se sabe, os fundamentos de sua escrita original resultam das pesquisas realizadas por Guimarães Rosa, não apenas no domínio da mais consagrada literatura, mas também no âmbito das narrativas populares. São famosos os surrados caderninhos que sempre o acompanhavam em suas viagens pelo sertão, em que o escritor mineiro colecionava as narrativas populares, contadas por pessoas do povo.

Sobre a visão histórico-filosófica do ficcionista, diz Vilma Guimarães ROSA (1999:31) que seu pai se interessava pela realidade do mundo imaterial, bem como
pela grande significa são das coisas criadas. “Procurava os nexos entre o visível e o invisível, o sensorial e o ultra-sensorial. Simbolismo, ficção e fato, presentes em sua obra, são os aliados que identificam a sua visão histórico-filosófica.”

Acerca do projeto ficcional de Guimarães Rosa, comenta Starling (2006), que se trata do caminho da ficção, que, segundo ela, é um caminho torto num duplo sentido: pelo lado da forma, propício a indicar que existe em toda realidade algo além do que aquilo que denominamos realidade; pelo lado da memória, produzindo um esforço de imaginação, orientado pela fantasia. Desse caminho ficcional fala o próp
rio autor: “a vida também para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a l por tortas linhas” (Rosa, 2001:30)

Uma representação intertextual de Guimarães Rosa
Tutaméia é uma obra desconcertante, como prova a polêmica travada, na seção de cartas da revista Pulso, à época da primeira publicação dos contos em 1965.

Para Vera Novis (1989, p.22), a impressão inicial provocada por essa obra é de perplexidade, pois o conjunto parece desigual: algumas estórias são semanticamente densas e intensamente dramáticas; em alguns contos o que espanta é o fato de praticamente nada ocorrer; em outros, o fio narrativo é muito tênue. Além disso, também causa estranheza haver nele quatro prefácios, caracterizados por humor, excessivo para alguns; dois títulos, que aparecem composição invertida no final do livro e um glossário com palavras não utilizadas no texto a que se refere.

A primeira estranheza com que nos deparamos é o título da obra, que faz surgir o questionamento de como entendê-lo? Considerando a pesquisa de Nilce
Sant'Anna Martins (2001), o neologismo “tutaméia” parece designar o valor irrelevante dado pelo autor a seus contos:

Nome de obra./ (...) Pequena por ão, bagatela. // No final do prefácio “Sobre
a Escova e a D vida”, o Autor acrescenta um pequeno glossário no qual arrola sinônimos: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia”. A forma dicionarizada tuta-e-meia, para a qual J.P. Machado dá a seguinte explicação: “ provável que venha da expressão uma macuta e meia, que, por muito corriqueira, se reduziu, por haplopogia, a uma cuta e meia e, com ou sem a supressão do num. uma e por assimilação do c a t, (uma) tuta e meia. Macuta era moeda de cobre, que tinha curso na África Ocidental portuguesa, com valor de 50 réis (pág.509).

A leitura de “Aletria e hermenêutica”, permite
-nos, contudo, considerar que com essa designação nova, Guimarães Rosa refere-se não apenas à valorização de sua obra, mas à problemática do valor da ficção, que, do ponto de vista do que é de fato existente, consistiria “apenas” na materializa são em palavras da imagina são artística. Tal consideração, que ora fazemos, se tornará mais clara após a análise do prefácio.

Com esse neologismo, colocam-se em relevo, sobretudo, muitos dos processos de invenção desse livro, cuja elaboração é minimalista. Paulo Rónai (ROSA, 2001:15) nos informa que Guimarães lhe segredou que, em
Tutaméia, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto.

Acerca da engenhosidade do livro
Tutaméia, lembramos que o mistério das letras de Guimarães Rosa, resultado da operosidade inventiva do ficcionista, exige paciência de quem almeja seu desvelamento, como nos alerta o próprio autor, invocando Shopenhauer (ROSA, 2001:.5): “Daí, pois, como se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entender sob luz inteiramente outra”.

O tema nuclear dessa obra é a aprendizagem. Segundo Novis (1989:27) as estórias de
Tutaméia tratam do percurso dos personagens que, partindo da ignorância, da aflição e do erro chegam ao conhecimento, à paz e à verdade."

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Fonte:
Rita de Cássia Ramos: “Texto e intertextos em Tutaméia (Terceiras Estórias): uma leitura da linguagem poética de Guimarães Rosa”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação da Professora Doutora Regina Célia Pagliuchi da Silveira). São Paulo, 2010.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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