Goethe e Espinosa hoje



No Brasil não se verifica um número relevante de publicações dedicadas a Goethe. Poucas são as exceções: as menções ao autor não surgem freqüentemente nas publicações brasileiras de literatura, em especial não como foco principal de trabalhos de fôlego. Quer no ambiente acadêmico, quer fora, as obras discutidas são poucas, quase sempre as obras literárias e dentre elas quase sempre as mesmas, as mais célebres. As exceções a esse quadro geralmente não focalizam os aspectos da filologia goetheana que esta tese contempla. Não que Goethe não haja sido discutido no país; foi, claro, mas em grupos muito restritos, dos quais um bom exemplo é a Sociedade Goethe Paulistana, entidade antiga, da qual poucos recordam-se, mesmo tendo em seus quadros alguém como Sérgio Buarque de Hollanda.

Não seria correto dizer, portanto, que os estudos goetheanos estejam começando ou por começar no país, mas que há muito tempo surgem, porém em muito reduzida proporção, aqui e ali, quase sem eco. Nos últimos anos talvez seja possível apontar certa elevação do número de leitores brasileiros de Goethe a produzir trabalhos a seu respeito, acadêmicos ou não, jornalísticos ou de divulgação científica. Mas é cedo para deduzir uma tendência coletiva e característica.

Devido a isto é que não se procura traçar ainda nesta ocasião uma recensão compreensiva da produção nacional, que contudo merecerá este cuidado, sem dúvida, em poucos anos – quando as conseqüências dos últimos anos de trabalho em Goethe se fizerem mais prontamente discerníveis. Especialmente as traduções e edições brasileiras recentes reclamam atenção, quer as que contemplam obras de grande envergadura em edições de grande circulação, quer os pequenos escritos que aparecem disseminados, muitas vezes em periódicos de circulação restrita.

No quadro de referências da língua portuguesa, é justo que se reconheça a Portugal o mérito de um maior número de traduções de Goethe. Entre os estudos lusófonos sobre sua relação com a filosofia que mereceriam menção na presente tese, destaque-se sobretudo um, de Maria Filomena Molder,
O pensamento morfológico de Goethe. Mesmo que a presente tese busque apoio em princípios bastante distintos daqueles que nortearam Molder, não é possível passar por alto a considerável empresa de numa obra alinhavar as presumíveis dívidas de Goethe para com Kant, a quem ela refere quase todas as remissões significativas de Goethe à filosofia.

O principal mérito que faz necessária a menção a Molder é da ordem do estilo. A autora aborda seu objeto de modo intencionalmente indireto, produzindo quase quinhentas páginas nas quais se repetem verbos como “inspirar-se”, “tomar emprestado”, “tender” ou “inclinar-se” para falar de ciência. Tal circunstância põe em questão qual o grau justo de alusão e mediações que o pensamento de Goethe cobraria a quem o quiser abordar em termos efetivos. A medida em que a própria Molder alcançou seu fim depende desta avaliação, como ela salienta desde as primeiras palavras da introdução a sua tese ou, ainda mais eloqüentemente, ao tomar como epígrafes da obra (há muitas) uma passagem do
Fedro e outra da Odisséia que retomam ambas o tema da “imitação do deus”. Ambas tocam a necessidade de em certas ocasiões ser preciso conduzir uma investigação como quem persegue vestígios. Daí o título da presente tese, bem como o início da configuração de seu método próprio, ora descrito.

Apesar de mencionar em nota de rodapé a Alfred Schmidt, parece não haver julgado proveitoso seu trabalho; por outro lado, não nega haver aproveitado Cassirer quando este afirma que Espinosa representaria para Goethe um mero estímulo que o conduziria à descoberta do real afazer filosófico em Kant.

A propósito ainda de Ernst Cassirer, é oportuno notar como goza de considerável prestígio no campo da história da filosofia praticada no Brasil, o que talvez predisponha o público a certo ânimo geral favorável a uma visão kantiana de Goethe. Contudo, a historiografia praticada por Cassirer não chega a autorizar qualquer menosprezo pelo papel do espinosismo na paisagem intelectual de surgimento da própria obra crítica de Kant. Poder-se-ia supor, em qualquer caso, que a opinião exposta por ele em
A filosofia do Iluminismo, livro de grande circulação no Brasil muitos anos, segundo a qual Lessing foi capaz de compreender Espinosa, mas que seu entendimento da religião não fora balizado por este e sim por Leibniz, possa haver causado algum dano ao justo entendimento da crítica da religião na Alemanha iluminista.

Apenas investigações aprofundadas sobre o ensino da história da filosofia moderna no país poderão, pois, responder por qual razão é possível encontrar trabalhos de pós-graduação que se ocupem da fortuna do espinosismo na Alemanha a partir de Schelling e Hegel, mas muito pouco sobre o período anterior.

Quanto ao estado da investigação sobre o espinosismo alemão fora do Brasil, algumas obras de referência transmitem a nítida impressão de que a fortuna do
Tratado teológico-político tem sido mais contemplada que a de outras obras. É de 2002 a mais recente publicação a respeito da recepção de Espinosa pelos filósofos e teólogos alemães de 1670 a Schelling e Hegel. Como na maioria das obras desta natureza, a polêmica sobre Espinosa e o espinosismo de Lessing ocupam a maior parte do espaço. “Textgrundlagen der deutschen Spinoza-Rezeption in 18. Jahrhundert”, de Manfred Lauermann e Maria-Brigitta Schröder é uma contribuição particularmente interessante para a revisão da bibliografia; infelizmente remete-se muito mais ao campo da política que a outros campos; de qualquer forma, é bastante abrangente e crítico (sua crítica às negligências de Pätzold, por exemplo, é bastante contundente, ou mesmo um tanto cruel).

Um pouco anterior é outra obra particularmente fértil, sobre o mesmo tema. Nesta coletânea de vários autores, o artigo de Andreas Kilcher, “
Kabbala in der Maske der Philosophie. Zu einer Interpretationsfigur in der Spinoza-Literatur”, merece consideração por sua discussão do assim chamado criptocabalismo de Espinosa. Kilcher transcreve quais seriam os mais importantes estudos sobre a recepção de Espinosa na Alemanha nos séculos XIX e XX, mas apenas de passagem. Dos artigos de outro livro, (GRÜNDER, 1984), já um tanto mais velho mas atual e que aborda os inícios da discussão de Espinosa na Alemanha, importa particularmente, pela abrangência de seus resultados, Formalis Atheus? Die krise der protestantischen Ortodoxie, gespiegelt in ihrer Auseinandersetzung mit Spinoza”, de Walter Sparn, que contribui para entender algo da diferença na recepção de Espinosa por parte de luteranos, calvinistas e pietistas, algo relevante na medida em que se mostrar útil percorrer o desenvolvimento religioso do jovem Goethe.

Quanto ao que se produziu na antiga República Democrática Alemã, Han ding-Hong, (1989), surpreende quando chega a chamar o marxismo de “uma espécie de espinosismo”, mostrando a alta estima de que gozava Espinosa no país, especialmente em seus últimos anos. Infelizmente, porém, Hong demonstra-se muito pouco adiantado frente a predecessores seus, especialmente Hamm e Lindner. Na verdade, a ligação de Espinosa a Marx determinou àquele um lugar de prestígio na historiografia filosófica alemã oriental.

Rüdiger Otto (1994) é dos comentadores mais importantes no conjunto dos estudos do espinosismo na Alemanha. Em uma obra bem documentada, ilustra o conflito entre Bollacher e Wessel, um dos mais importantes do campo estudado e contudo pouco observado. Otto tem exatamente esta vantagem: detém-se em tópicos pouco abordados. Chega a ser elogiado, com direito, como um dos autores mais minuciosos em muitos anos de pesquisa sobre seu tema nas últimas duas décadas. Seu foco é a teologia: seria talvez possível imputar-lhe certo descuido com as possibilidades de discussão do
corpus lessinguiano, mas o autor visivelmente aplicou-se a conceder espaço a autores menos contemplados.

Otto, Han Ding-Hong e os autores reunidos por Schürmann, Waszek e Weinreich em uma coletânea sobre o espinosismo do Setecentos alemão e Delf, Walther e Schoeps sobre a generalidade da história européia do movimento são, pois, responsáveis pelas mais publicações recentes de certo fôlego sobre o tema que maior atenção mereceram nesta investigação.

No que toca às mais recentes discussões sobre a fortuna literária do holandês, mencione-se Carsten Schapkow (2004), o qual defende ao longo de sua obra a tese de que a liberdade para filosofar seria o mote principal das recepções alemãs de Espinosa. Passa por vários autores e épocas. Goethe não é sua prioridade. Mas o cuidado com que sabe diferenciar aspectos internos à identidade judaica na recepção do filósofo produz resultados muito peculiares – com a constante atenção a que Espinosa não chega à Alemanha proveniente de um meio abstratamente judaico, mas sefardita e holandês. Indiretamente, esse cuidado permite a Schapkow levantar evidências da perspicácia peculiar a um autor como Heinrich Heine quando este faz suas anotações aparentemente superficiais sobre qual espécie de ascendência Espinosa poderia haver exercido sobre Goethe.

Foram enumerados aqui estudos que prestassem contas de um estado da investigação recente. Omitiram-se vários que, anteriores, correspondem a outras fases da história da investigação, mas que nem por isso contribuem menos para a atualidade e serão oportunamente apresentados.

Do estado atual da investigação, o que sobressai é sua dispersão em ensaios, capítulos de livros e outras tantas publicações que não dão conta de potencializar os resultados mediante reunião e comparação. Disso resulta o talvez mais importante sentido da presente tese: reunir o máximo destes trabalhos e, ao reduzir as repetições, reduzi-los ao denominador comum, de modo a apresentar as questões mais pertinentes ao leitor contemporâneo de Goethe que se importe com suas leituras espinosanas”.

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Fonte:
MARCO ANTONIO RASSOLIN FONTANELLA: “VESTÍGIOS DE ESPINOSA NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE GOETHE”. (Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas para obtenção do título de Doutor em Teoria e História Literária. Orientador: Prof. Dr. Márcio Orlando Seligmann-Silva). Campinas, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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