Goethe leitor de Kant – uma feliz apropriação



“Entender a apropriação crítica que Goethe fez de Kant é um caminho de dupla perspectiva. Insere-se tanto na historia da recepção da filosofia crítica de Kant, quanto na superação das premissas mais rígidas do classicismo de Weimar da busca por objetividade professada por Goethe. Difundiu-se por muito tempo a idéia de que a filosofia crítica foi abordada por Goethe graças a Schiller e, embora pensadores do calibre de um Cassirer tenham professado muito contra essa visão, ela se coloca de maneira quase que uniforme por muitos daqueles que pretendem estudar a obra de Goethe. Tal idéia se deve, provavelmente, ao fato de Schiller ter pouco a pouco entrado na historia da filosofia, enquanto pensador pós-kantiano, ou como outros advogam, pré-hegeliano; ao passo que Goethe, diria eu que até de maneira correta, sempre foi colocado fora dos interesses da historia da filosofia. Ao não avançar por demais contra tal postura, não cometeria o erro de colocar Goethe num altar filosófico, mas sim afirmar que ao projeto morfológico de Goethe foram de grande auxílio elementos tomados de sua leitura da obra de Kant e que da apropriação que aquele fez deste surgiram muitas coisas que estão na base da formação do método morfológico.

Goethe menciona, em uma carta datada de 25 de outubro de 1790, a Critica do juízo nos seguintes termos “O livro de Kant me alegrou muito, eu que me senti enrolado com seus trabalhos anteriores. A parte Teleológica me interessou mais do que a estética.” Talvez esta carta tenha exprimido o princípio do que Goethe chamou de “uma das épocas mais felizes de minha vida”, ou seja, a época em que descobriu a terceira crítica – que antecede em cerca de quatro anos à aliança com Schiller. O interessante é notar que a apreciação da segunda parte da Crítica do juízo como a mais interessante vai contra a apreciação geral da obra, incluindo-se o julgamento do próprio autor: “Numa crítica da faculdade de julgar, a parte que trata da faculdade de julgar estética é essencial, porque só esta contém um princípio que a faculdade de julgar coloca absolutamente a priori no fundamento de sua reflexão sobre a natureza, a saber, o princípio de uma finalidade formal da natureza segundo as suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade de conhecer, finalidade sem a qual o entendimento aí não se encontraria.”

Esta leitura, superada com o passar dos anos, será um ponto significativo, pois a relação de Goethe com Kant não se deu de maneira unívoca, e não se atrelou à recepção que se fez da obra . Ela não se deu de um modo que se pretendesse fiel ao todo da obra kantiana. A maior das afinidades será colocada em relação à terceira crítica, pois nela, Goethe viu suas “ocupações mais díspares postas lado a lado,o testemunho da arte e da natureza tratados da mesma maneira, o juízo estético e o juízo teleológico iluminando-se alternadamente.” A concordância com o modo de tratar os modos mais díspares da ocupação de Goethe não quer dizer que apenas em uma leitura de Kant o poeta pôde ver postas lado a lado arte e natureza, pois para ele, e isso é fundamental, arte e natureza caminham juntamente, e como vimos em todo o estudo de Viagem à Itália, o que se ganha em relação ao ver mais preciso em uma não deixa de se efetivar no ver da outra. Mas isso se aplicava ao espectador que à época não tinha nenhum tipo de amparo filosófico. Aqui Goethe pôde ver seus ímpetos teóricos organizados e postos de maneira a demonstrar uma espécie de matriz comum entre eles: o juízo enquanto “a faculdade de pensar o particular como contido no universal”. Nesta chave podemos pensar que em Goethe a figura mesma da faculdade de julgar, ou juízo, como faculdade resolutiva esteja na base dos questionamentos morfológicos, pois é exatamente desta interação entre universal e particular que residirá nele o maior dos questionamentos. Haverá ainda uma grande diferença entre os dois: se para ambos o particular está ligado ao universal, para o poeta este pensamento é elevado ainda a uma segunda etapa: o universal contido no particular efetivamente, o particular contém o universal, a experiência a idéia, o particular enquanto símbolo tomado como ponto de concentração do universal. Apesar de Goethe ter se tornado célebre como um pensador das artes, não foi na primeira parte, sobre o juízo estético, que ele viu a maior concordância com o filosofo de Königsberg: a segunda parte acerca do juízo teleológico foi o lugar onde Goethe se sentiu em casa. A respeito da primeira parte do trabalho Goethe talvez não tenha entendido a sua importância, pois ainda que se tenha produzido uma Critica da razão pura, onde Kant “chamou-nos a atenção para o fato haver uma critica da razão e que esta – a mais alta– faculdade que o homem possui tem capacidade para vigiar-se a si mesma. [...] Uma Critica do gosto, necessária para que a arte em geral, especialmente a alemã, possa de algum modo recuperar-se e avançar para diante acompanhando jubilosamente a vida”.

Goethe não pretende aqui retornar a uma estética do gosto enraizada no sujeito, mas gostaria de ver o gosto enquanto “regra que tem de ser fundada a priori, por que enuncia a necessidade, portanto, também a validade para todos no modo como a representação de um objeto deve ser julgada em referência ao sentimento de prazer” sendo limitado em relação aos seus objetos e seus poderes, assim como a razão. O problema colocado pela preferência pela segunda parte da Critica do juízo, é que a visão do papel da arte de Goethe não era a mesma da de Kant. A questão é colocada por Kant na Critica do juízo acerca do julgamento de um objeto, ou seja, a do principio a priori do gosto: “O julgamento de um objeto pelo gosto é um juízo sobre a concordância ou o conflito da liberdade no jogo da imaginação e da legalidade do entendimento, e diz respeito apenas à forma de julgar esteticamente (unificabilidade das representações sensíveis) e não aos produtos nos quais ela é percebida.”

Aqui podemos notar um ponto de discordância provável entre Goethe e Kant, pois o primeiro, não se contentou com o fato de que na filosofia critica de Kant: “Na arte nem na natureza nunca se trata, de uma atividade própria da natureza, nem da arte como objeto sensível (de um juízo já efetivado como obra de arte concreta) mas sempre da atividade do juízo, na qual ressalta a forma subjetiva em detrimento do conteúdo”. Goethe gostaria de ter visto resolvido o problema da recepção da obra de arte, de ter visto o seu papel elevado a uma outra esfera. Para ele embora Kant tenha trabalhado muito bem muitos assuntos, houve um tratamento “insuficiente da arte”.

Mas se até aqui a concordância com Kant pode ser vista como apenas parcial, no que se refere ao juízo teleológico a concordância se elevará a um outro patamar: “Kant nunca tomou conhecimento de mim, embora eu tenha, por impulso próprio, seguido um caminho paralelo ao seu. A metamorfose das plantas foi escrita antes de eu ter qualquer notícia de Kant, e, ainda assim, está em harmonia com sua doutrina.” Como aponta Cassirer esta frase pode ser recebida com muita estranheza, mas se observarmos atentamente ela não pode nos surpreender. O primeiro ponto a ser estabelecido como afinidade entre os dois é o afastamento das causas finais. O juízo teleológico, onde Kant busca demonstrar a possibilidade de “realizar uma experiência articulada a partir de percepções dadas de uma natureza, contendo uma multiplicidade infinita de leis empíricas”, serviu de amparo para a teoria da metamorfose de Goethe que se via, num momento posterior à Metamorfose das plantas, numa busca por validar a possibilidade de uma experiência efetiva no campo das naturezas orgânicas.

Essa possibilidade de um juízo acerca da natureza do ponto de vista subjetivo, onde a faculdade do juízo “prescreve uma lei, não à natureza (como autonomia), mas sim a si própria (como heautonomia) para a reflexão sobre aquela, lei que se poderia chamar de especificação da natureza”, estava mesmo em consonância com os postulados de Goethe acerca da natureza, pois ele mesmo não sentia a possibilidade de entrada no circulo intimo da natureza. Para ele, só é permitido entrar nessas relações mais profundas quando lidamos com o poético, no caso de prescrever à natureza uma lei, por onde pudéssemos conhecer a natureza. Temos de lançar mão de símbolos que tem origem na nossa percepção das coisas, mas que nunca são a natureza mesma.

Esta forma de juízo que permite olhar para a natureza como um todo passível de compreensão, mas sem ferir a sua infinitude, um juízo reflexionante, que enquanto tal (como nos explica Kant em §4 de sua terceira crítica) busca a regra mas não encontra. Ela busca ascender do particular para o universal, que não pode subsumir regra alguma, pode mesmo sem grande dificuldade ser relacionada com a metamorfose das plantas e seus postulados. A base da metamorfose das plantas, como vimos, é a afinidade entre casos particulares, quer entre existências particulares (Urpflänze), quer entre os movimentos interiores dessas existências orgânicas (expansão e contração) , ou ainda, como afinidades existentes em todas as partes formativas deste organismo (a folha), não era algo pudéssemos ver diretamente pelos sentidos, mas se encontrava como postulado primeiro para pensarmos a parte em relação ao todo, o individual em relação à multiplicidade casos.

Este conceito não se encontra efetivado nas ações da natureza, mas se constrói buscando reduzir um ente particular, a planta, a um reino que obedece a regras. A afinidade que está nessa base é uma espécie de derivação do juízo teleológico, dado que em relação ao organismo, enquanto algo que é em si um fim e uma causa interior a si mesmos, ela não deve ser vista como pertencente a eles, mas devemos pensá-la a propósito deles. Ela surge para validar cientificamente um caso particular, enquanto contido no universal. Trata-se de uma especificidade de nossa faculdade de conhecimento que não pode ser colocada como predicado nos seres mesmos.

A afinidade apresentada na “Segunda dedução dos conceitos puros do entendimento” como o “princípio de possibilidade de associação do diverso, na medida em que o diverso repousa no objeto, chama-se afinidade do diverso”. Seguindo adiante na explicação, Kant diz: “Pergunto portanto como tornais compreensível a afinidade universal dos fenômenos? (...) Ora a representação de uma condição universal, segundo a qual um certo diverso pode ser posto chama-se regra e se esse diverso deve ser assim posto, chama-se lei. Todos os fenômenos estão, pois, universalmente ligados, segundo leis necessárias e, por conseguinte, numa afinidade transcendental da qual a afinidade empírica é mera conseqüência.” Pressupõe-se que a “natureza mesma explicita suas leis transcendentais segundo algum princípio. E esse princípio não pode ser nenhum outro que o da adequação à faculdade do próprio Juízo, de, na imensurável diversidade das coisas segundo leis empíricas possíveis, encontrar suficiente afinidade destas, para trazê-las sob conceitos empíricos e estes sob leis mais universais, e assim poder chegar a um sistema empírico da natureza.” Mas Goethe concordaria que “parece, na verdade muito estranho e absurdo que a natureza se regule por nosso principio subjetivo da apercepção, e mesmo deva depender dele, relativamente a conformidade a leis.” A natureza enquanto “uma multidão de representações no espírito” deve ter de ser conhecida. Existe um passo decisivo, para Goethe, dado por Kant: o de colocar a experiência possível em “três fontes primitivas (capacidades ou faculdades da alma) que encerram as condições de possibilidade de toda experiência possível e que por sua vez não podem ser derivadas de qualquer outra faculdade do espírito; são os sentidos, a imaginação e a apercepção”. Essa delimitação do sujeito em relação aos objetos foi para Goethe o grande passo dado por Kant. Ao definir as fontes primitivas de toda experiência Kant fez girar o espectador da natureza em Goethe, o tornando uma espécie de aparato cognoscente imaginativo. É claro que focaremos aqui, em conformidade com o poeta, na imaginação como condição de experiência. Goethe percebeu que em Kant a faculdade da imaginação estava dotada de uma liberdade criadora, que a tornava uma faculdade perfeita para fazer mover as outras faculdades do sujeito.

Tal ponto crucial para Goethe se tornará mais claro se avançarmos para a terceira critica, onde ela é tomada, primeiro, como reprodutiva, sujeita a leis de associação, e não livre; e depois “como produtiva e espontânea (como autora de formas arbitrárias de intuições possíveis); e embora na apreensão de um dado objeto dos sentidos ela, na verdade, esteja vinculada a uma forma determinada deste objeto e nesta medida não possua nenhum jogo livre (como na poesia), todavia ainda se pode compreender bem que precisamente o objeto pode fornecer-lhe uma tal forma, que contém uma composição do múltiplo, como a faculdade da imaginação – se fosse entregue livremente a si própria – projetá-la-ia em concordância com o entendimento.”

Para Goethe depende desta imaginação todo o seu projeto morfológico, é ela que se afina com a natureza. Isso não poderia ser admitido por Kant, pois para ele o entendimento é “ele próprio é a legislação da natureza, isto é, sem entendimento não haveria em geral natureza alguma, ou seja, unidade sintética do diverso nos fenômenos segundo regras; na verdade os fenômenos como tais não podem ser encontrados fora de nós, mas existem na nossa sensibilidade”.

Goethe manteve a distinção kantiana entre razão e entendimento, mas para ele não haveria a possibilidade de a razão ser pensada como uma faculdade, ou potência, ligada ao reino dos fins, “embora ele tenha se apropriado dessa distinção critica, acentuando a inaptidão inerente ao intelecto lógico-discursivo para se adaptar aos particulares, às manifestações, ou harmonizá-las entre si, e prolongando a concepção transcendental de razão como principio de totalidade”.

Para Goethe, no entanto, a razão destina-se a, em comunhão com a imaginação, estabelecer as idéias. A imaginação propaga-se sobre todas as outras capacidades, ela é o que movimenta o espírito, e só por meio dela é que o nosso aparato cognitivo é chamado a se mover. A imaginação, diz ele, substitui a sensibilidade sob forma de memória, apresenta ao entendimento a visão de mundo sob a forma da experiência, configura ou encontra formas para as idéias da razão e anima, deste modo a totalidade humana, a totalidade da unidade humana, que sem ela deveria mergulhar na inépcia desoladora. Ora se a imaginação presta tal serviço às suas três faculdades irmãs [sensação, entendimento e razão], em contrapartida, só se introduz no reino da verdade e da realidade através destas amáveis parentes”.

A imaginação tem o seu poder elevado, quer para Goethe quer para Kant, Goethe não está aqui deturpando a filosofia crítica em nome de sua morfologia. Kant na terceira critica afirma: “a faculdade da imaginação (enquanto faculdade de conhecimento produtiva) é mesmo muito poderosa na criação como que de uma outra natureza a partir da matéria efetiva que a natureza lhe dá. Nós entretemo-nos com ela sempre que a experiência pareça-nos demasiadamente trivial; também a remodelamos de bom grado, na verdade sempre ainda seguindo leis analógicas, mas segundo leis analógicas, mas contudo segundo princípios que se situam mais acima da razão.(...) Tais representações da faculdade da imaginação podem chamar-se idéias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo situado acima dos limites da experiência, e assim procuram aproximar-se de uma apresentação dos conceitos de razão o que lhes dá uma aparência de realidade objetiva.”

É claro que Kant fala aqui de uma idéia estética, mas Goethe não terá problemas em deformar tal conceito, Goethe não atentou para o fato de que Kant intentou, no decorrer de seu projeto critico, evitar o uso de idéias como princípios constituintes da realidade. Ao notar que as idéias, mesmo que sejam somente as estéticas, são referidas “a um princípio subjetivo da concordância das faculdades de conhecimentos entre si (da imaginação e do entendimento)”, o poeta falou mais alto que o pensador de filosofia. Para Goethe a idéia é um pensamento imanente; a idéia é e se mantém como uma estranha atividade e uma efetividade. A imaginação, a plasticidade do pensamento das existências orgânicas, é capaz de tornar móveis as percepções e as imagens lembradas lado a lado, elevando o plano geral destas ao plano da idéia: “a natureza e a idéia não se deixam separar sem que a vida, tal como a arte, seja destruída.”

Entre a natureza das coisas e nossas experiências, podem nascer, por meio da imaginação como ponto intermediário de nossas faculdades, uma idéia. Goethe, avançará na leitura da terceira crítica e nela verá algo que vem ao encontro de sua tentativa de assimilar a infinitude do mundo de alguma maneira. Onde Kant diz: “A prova de nossos conceitos requer sempre intuições (...) se se pretende que seja provada a realidade objetiva dos conceitos de razão, isto é das idéias e, na verdade com vistas ao conhecimento teórico das mesmas, então se deseja algo impossível, por que absolutamente nenhuma intuição pode ser-lhes adequada.” Aqui entra em jogo a questão fundamental da primeira parte da terceira crítica, para Goethe é claro, os símbolos devem conter uma relação indireta do conceito, ou seja, uma relação mediata. O conceito racional de substrato supra-sensível de todos os fenômenos em geral “é já quanto um conceito indemonstrável e uma idéia da razão”.

Este substrato que Goethe tentará delimitar será apresentado como o fenômeno puro, aquele que não se vê com os olhos, que não é passível de nenhuma intuição. Este tipo de fenômeno é o que delimita o sujeito e suas faculdades em relação ao empiricamente casual, eliminando todas as impurezas, como se trata de uma figura simbólica, nos termos kantianos, ou seja, um fenômeno extraído da freqüência dos observáveis, mediante uma analogia, “na qual o juízo cumpre uma dupla função: primeiro aplicar o conceito ao objeto de uma intuição sensível e então, segundo, de aplicar a simples regra da intuição a um objeto, do qual o primeiro é somente um símbolo.” Em um texto seu sobre o Urphänomem, ele coloca a possibilidade de esse tipo de fenômeno ser simbólico, como vinculada à sua vocação de compreender analogicamente todos os casos, deste modo a particularidade sensível poderia manifestar em seus estreitos limites o universal, que não é dado na intuição.

É claro que Kant, quando aqui fala do simbólico, se refere majoritariamente à moral, como o título de §59 evidencia: “Da beleza como símbolo moral”. Mas Goethe sempre faz uma apropriação sempre indevida das passagens sobre a moral em Kant. Vejamos a seguinte passagem da terceira crítica analisada por Goethe: “Ora nos podemos também pensar um entendimento que – que ele não é como o nosso, discursivo, mas sim intuitivo – vai do universal sintético (da intuição de um todo como tal) para o particular, isto é do todo para as partes. (...) Aqui não é necessário demonstrar que seja possível um tal intellectus archetypus, mas simplesmente que nós somos conduzidos àquela idéia (de um intellecus archetypus) pelo contraste de nosso entendimento discursivo, que necessita de imagens (intellectus ectypus), e com a contingência de uma tal constituição tampouco tal idéia não contém contradição alguma.”

Tal citação aparece num texto de Goethe chamado “Anschauende Urteilskraft [Juízo intuitivo], onde ele dizia que este homem [Kant] “valoroso procedia de um modo travesso e irônico, por um lado ele parece esforçar-se em fixar os mais estreitos limites das faculdades do conhecer (Erkenntnisvermögen), por outro lado ele mesmo parecia apontar de sobrolho para além dos limites que havia assinalado.” Goethe vai deturpar essa visão que em Kant se estabelece num outro sentido para efetivar a sua noção de um juízo intuitivo. Enquanto ele mesmo admite “que o autor [na passagem da terceira critica citada por Goethe] alude, provavelmente, a um entendimento divino” em analogia a este conhecimento não discursivo de Kant, que vai diretamente da intuição do todo para o particular, que vise um tipo de inteligência que não encontre limites na relação com a natureza, Goethe vai supor a possibilidade não de um conhecimento intuitivo, mas de um juízo intuitivo.

Se o juízo, em Kant e em Goethe, busca por regras que não estão nas coisas, é ele que segundo o último, vai tentar transpor o limite estabelecido pelo conhecimento lógico-discursivo, um conhecimento que permita a “contemplar a natureza eternamente criadora, e nos torne dignos de um participar espiritual das suas produções.” Esta faculdade de julgar intuitiva se encarregaria de ascender em direção aos fenômenos originários, não de modo que um fenômeno de tal sorte se encontrasse contido nas representações, mas uma relação interior que na sua busca por uma efetivação no reino das existências orgânicas. Esta faculdade de julgar estaria intimamente ligada à faculdade da imaginação, esta faculdade, não discursiva do julgar intuitivo, permitiria que em um relance, a regra “espiritual” se fizesse sentir. O movimento do espírito se elevaria pouco a pouco em direção à idéia. Esta faculdade seria objetivamente ativa, mas subjetivamente atuante. Ela estabeleceria a possibilidade da “pressentida regra”.

Em associação clara com a faculdade de imaginar tal singular faculdade de julgar permitiria que pensássemos os símbolos que poderiam de maneira mediata nos apresentar realidades efetivas acerca da natureza. Não se trata de conceitualizar no campo do absoluto, mas para Goethe, trata-se da possibilidade de incluirmos o absoluto no fenômeno. É por meio desta deturpação que Goethe irá intentar um entender típico, ou seja que parta de tipos, se em Kant nos é permitida a idéia deste entendimento intuitivo. Goethe inverterá os comandos e dirá que com o juízo intuitivo, aliado à faculdade da imaginação, podemos extraviar-nos da objetividade imposta pelo discurso cientifico, e levar a nossa razão a buscar as idéias por detrás dos fenômenos.

O símbolo, como fruto desta ação, terá de anunciar a possibilidade de transposição do abismo existente entre nós e os fenômenos. Goethe intenta, acreditando-se amparado por Kant, idear a figura do modelo originário que “tenha sua representação conforme a natureza”. Pois existe, segundo o filósofo, uma incongruência entre idéia e experiência, como atesta Goethe em seu texto “Bedenken und Ergebung”, onde ele alega como irresistível a uma idéia “segundo a qual Deus na natureza e a natureza em Deus, de eternidade em eternidade, podem criar e atuar.”

Esta idéia, só poderá ser concebida por analogia, assim como em Kant os seres orgânicos só são conhecidos por analogia com a organização do objeto técnico, portanto podemos concluir que a metodologia morfológica só pôde vigorar durante as décadas subseqüentes devido a uma apropriação das teorias de Kant. Não se trata de uma leitura que busque entender as estruturas elaboradas por Kant, mas de uma apropriação que leva a postulados que não são autorizáveis pela filosofia critica, mas sua noção de símbolo, de inteligência não discursiva, permitiram que Goethe entrasse dentro de si e visse a necessidade de um treino em relação aos objetos que visasse certa objetividade.

Se em Kant a relação entre idéia e experiência se dava de modo regulativo, Goethe irá transpor esta limitação colocando essa relação em termos de símbolo ou analogia. Goethe não intentou com isso penetrar em searas profundas da vida secreta da natureza, ele apenas intentava poder manter ativa a sua atividade como observador. Goethe parece ter ficado satisfeito em abordar a natureza enquanto um símbolo. “A mais perfeita alegria, diz Goethe, do homem pensante é a de ter investigado o investigável e de, calmamente venerar o não investigável.”

Portanto todo esse trajeto pelas calendas da filosofia critica não tinha na especulação acerca das atividades o seu foco. Goethe intentava através de um reconhecimento de leis que se estabeleçam, simbolicamente, por meio dos fenômenos, poder trafegar “de uma figura à outra, e ao observar[...]naturezas mais ou menos aparentadas, nos elevamos acima de todas elas a fim de visualizar seus traços característicos em uma imagem ideal.” Para poder trafegar entre essas naturezas e delas extrair o seu ideal, simbólica ou artisticamente, Goethe teve de se conflitar com a filosofia critica, mas para explorar as potencialidades do observar, para sempre retornar ao ver, mesmo que para isso Goethe tenha tido de estabelecer melhor a relação do olhar com as capacidades do espírito. Nesta relação Goethe tomou emprestado termos e concepções provenientes da concepção kantiana, mas ainda assim, não podemos considerá-lo kantiano. Se ele transita pelas operações do espírito não è para avançar positivamente na feitura de uma ciência que se projete para alem de seus limites, mas o intuito é sempre o de delimitar o espectador para que este, munido de olho e espírito, possa cada vez mais se aproximar de uma representação apropriada dos objetos, pois ao lado de todas as afinidades possíveis, Goethe não pôde negar que sua relação com a filosofia de Kant era a de um leitor que se apropria dela fazendo “um consumo doméstico”.

Portanto, como aponta Cassirer, em seu ensaio “Goethe e a filosofia kantiana”, seria mesmo um equívoco tentar colocar Goethe em uma historia da filosofia, pois o autor já foi relacionado com muitas das correntes filosóficas existentes, de Platão a Schelling, passando por Plotino, Espinosa, Leibniz, Shaftesbury, Kant entre outros. Como diz Nisbet em The Cambridge Companion to Goethe: “Goethe não foi filósofo nem teólogo, mas poucos poetas de qualquer era ou cultura podem rivalizar com ele na amplitude de conhecimento da filosofia e da religião”. Não ser filosofo, não quer dizer que a filosofia não esteja presente em alguns pontos de sua obra, e dizer que o autor era douto em filosofia ainda não justifica plenamente um estudo filosófico de suas obras.

O uso da filosofia por Goethe não se deu de maneira unificada e tampouco uniforme. Não há nele uma clara adesão às correntes modernas da filosofia. O autor se aproxima e se afasta da tradição ilustrada alemã, resiste a um discurso filosófico que transcenda os objetos e suas manifestações. Apesar de nem sempre buscar uma clara adesão ao senso comum, há em seus textos uma tentativa de elucidar seu método e sua abordagem da natureza e das artes, mais em concordância com os objetos do que com um fator teórico isolado. É exatamente na estranha postura de Goethe, onde ao lado de um combate à filosofia figuram adesões pontuais ao sistema filosófico kantiano, que residirá grande parte do que podemos chamar de filosofia em Goethe, mas jamais nos sentiríamos aptos a pensar uma filosofia de Goethe.”

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Fonte:
Pedro Fernandes Galé: “Em torno do olhar – A formação do método morfológico de Goethe”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFLCH-USP - Universidade de São Paulo - para a obtenção do título de Mestre em Filosofia sob orientação do. Prof. Dr. Marco Aurélio Werle). São Paulo, 2009.

Nota
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