"A concepção da “linguagem artística” aliada a uma consciência de caráter nacional e à necessidade de atualização tão reivindicada pelos escritores da época, traz uma linha de ruptura intensa com a literatura canônica no país, calcada, quase sempre, em modelos narrativos do século XIX.
Começava, com essas tendências e com sua conseqüente ruptura, certo avanço comparado com o movimento regionalista, que imperava na época, e que obtinha uma aceitação, tanto em áreas de médio e escasso desenvolvimento educativo, como nas mais avançadas, principalmente por esse movimento ter se preocupado, em princípio, mais em imitar a história literária dos modelos europeus. Rama observava este movimento como “o abastecimento e a incorporação do externo” era a absorção de técnicas avançadas sem tratamento dos conteúdos; colocando em segundo plano as possíveis contribuições literárias latino-americanas.
O modernismo tem como aliado a cidade, que apresentava um novo espaço de circulação e uma nova tendência do protagonismo literário. Contudo, há em um primeiro momento, por parte dos regionalistas, uma espécie de atitude defensiva contra esta nova forma literária modernista, uma espécie de olhar e análise esmiuçada para este novo momento literário. Não se almejava um imediato enfrentamento que talvez resultasse, segundo Rama (1970), em um endurecimento de posições. Instaurado e aceito o vanguardismo, cabia aos autores regionalistas conservar e transladar para suas obras meios eficazes de resguardar conjuntos de valores literários e de tradições locais. Emergia assim a necessidade de representar, em novas modalidades narrativas, as tendências e estruturas literárias urbanas que surgiam com muita força. Havia a percepção, por parte de muitos autores, de que a modernidade não era renunciável, até porque esse embate não seria muito produtivo para o regionalismo. Se este houvesse tido um enfrentamento direto com o vanguardismo, com certeza, sofreria perdas consideráveis no campo da cultura, cuja conseqüência talvez fosse a sua definitiva “extinção”. Rama ressalta que o resultado desse embate ocasionaria perdas de conteúdos culturais regionalistas muito importantes, uma aculturação talvez, e, conseqüentemente, cruciais particularidades da estrutura global da sociedade latino-americana, particularidades estas que o regionalismo havia conseguido transladar a muito custo para suas obras, peculiaridades culturais que, em muitos casos, haviam sido forjadas em algumas áreas ou sociedades internas, que o regionalismo havia conseguido atingir e que, conseqüentemente, resultaram em seu perfil diferencial.
Diante da força e da conseqüente pressão impostas pelo avanço modernizador, principalmente de uma forte inspiração de conteúdos estrangeiros, surge uma importante resposta narrativa dos escritores regionalistas. Resposta esta definida por Rama como plasticidade cultural, em referência à produção literária que integrava estas novas estruturas formais sem recusar as próprias tradições. O autor uruguaio ressalta que essa plasticidade cultural funciona como parâmetro para o diálogo entre culturas que os escritores representarão, em narrativas denominadas de transculturadoras.
A atuação importante dos escritores conscientes dessa dialética permite - para Rama - uma “plasticidade cultural” propiciadora de um diálogo ativo entre as várias culturas e entre seus espaços internos, sem hierarquias, xenofobias e rigidez cultural. De um lado a desarticulação a suposta universalidade e superioridade estética que as vanguardas - no espaço da metrópole - apregoam; de outro lado, evita o regionalismo fechado em si mesmo, de base cultural, que rejeita o diálogo produtivo com outras fontes culturais. (RAMA, 1970, apud ARAÚJO, 1998, p. 35).
Há hoje, claramente, uma percepção de que o diálogo cultural adotado pelo regionalismo foi crucial para conservação dos elementos do passado que tanto haviam contribuído para a singularização cultural regionalista. Araújo (1998, p. 35) lembra que pontos em comum uniam esses escritores: a consciência de suas culturas, o uso de recursos expressivos da vanguarda para representarem suas tradições e a revalorização do espaço rural que a literatura da modernidade, mas citadina e cosmopolita, havia alijado como primitivo e anacrônico. Diante disso, Rama, em sua proposta da transculturação narrativa, ao estudar os fenômenos culturais na América Latina, citou como fundamentais autores que constituíam uma forma particular artística de resposta à crise da modernização acelerada e à integração forçada em um sistema mundial que havia sido causada por um desenvolvimento adotado como modelo sócio-econômico. Assim, ele os definiu como transculturadores e com ênfase cita escritores como: Juan Rulfo, José Maria Arguedas, Gabriel Garcia Márquez e João Guimarães Rosa.
Rama cita o escritor brasileiro João Guimarães Rosa, ao perceber que, através da representação do diálogo cultural, há em seus textos a ocorrência simultânea de estratos orais e eruditos da cultura brasileira. Bosi (1992) relata que existem potencialidades de expansão de várias faixas da cultura brasileira, fazendo referência a tipos de culturas como a erudita, presente principalmente nas classes altas e nos segmentos mais protegidos da classe média; a cultura de massas, que corta verticalmente todos os estratos da sociedade crescendo principalmente no interior das classes médias; e uma cultura popular, sendo esta pertencente, tradicionalmente, aos estratos mais pobres, o que não impede, segundo Bosi (1992), seu aproveitamento pelas já citadas culturas.
Rosa apresenta fórmulas extremamente particulares, trazendo avanços na narrativa e conservando parcialmente características dos escritores regionalistas, como a especificidade da cor local, lançando em suas obras novas articulações literárias. A linguagem literária de Rosa permite que, na América Latina, seja evidenciado o diálogo que, segundo Rama (1970), apresenta-se em dois eixos diferenciados: o da cultura latino-americana e as outras, externas, com que dialoga. E o que ocorre a partir do momento em que a cultura do continente dialoga com suas regiões internas, urbanas, cosmopolita, em contato com as vanguardas estrangeiras, assim como, do mundo rural tão bem representado por Guimarães Rosa, de peculiaridades locais e nacionais (Cf. RAMA, 1978).
O autor brasileiro começa assim um questionamento da linguagem ficcional e de suas experimentações, que acrescentaram direções novas ao curso literário brasileiro, nos temas e na linguagem do narrador e das personagens, trazendo o embate, por exemplo, entre o significado das experiências dos seres rurais e dos urbanos, colocando sempre o sertão como espaço desse enfrentamento. E é o sertão o espaço que será apreciado nesta análise. Aqui a plasticidade cultural ganha espaço na dialética e na peculiaridade de um conto permeado por inovações transculturadoras anteriormente mencionadas. E é na junção dos estratos oral e escrito, no espaço dos jagunços, que começaremos a localizar nossa análise, com o intuito de convidar os leitores ao fascínio literário transculturador que Rosa nos apresenta.”
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Fonte:
HERBERT NUNES DE ALMEIDA SANTOS: “DE ANGEL RAMA A JOÃO GUIMARÃES ROSA, A TRANSCULTURAÇÃO NARRATIVA NA LITERATURA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO CONTO “FAMIGERADO”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Alagoas para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração
Nota:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
João Guimarães Rosa, um transculturador
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