Kafka e Huysmans
Kafka: “Só sonhos, nada de sono”
“Gregor Samsa, o caxeiro-viajante transformado em “monstruoso inseto” já na primeira frase da novela A metamorfose (1915), vai aos poucos, à medida que se desenvolve o seu estado não-humano, desligando-se das funções vitais que o prendiam à antiga vida
Cerca de uma década mais tarde, em seu último romance, O castelo, sabemos, ao fim da história, que os secretários do castelo realizam a maioria dos interrogatórios durante a madrugada, não dormindo portanto quase nunca. O curioso é que tais eventos ocorram contra a vontade dos secretários, não porque estes preferissem fugir às obrigações do serviço para repousar, mas sim porque
A noite é menos adequada às negociações com as partes, porque de noite é difícil, ou praticamente impossível, preservar na plenitude o caráter oficial das negociações. (...) Involuntariamente a pessoa está mais inclinada a julgar as coisas de um ponto de vista mais privado, as intervenções das partes ganham mais peso do que lhes cabe; misturam-se ao julgamento considerações irrelevantes sobre a situação das partes tal como elas existem em outros lugares, suas dores e suas preocupações; a barreira necessária entre partes e funcionários, mesmo que exteriormente pareça intacta, se afrouxa, e onde normalmente, como devia ser, apenas perguntas e respostas iam e vinham, se estabelece às vezes uma troca estranha, totalmente sem cabimento, entre as pessoas. (KAFKA, 2000, p. 388).
A insônia, como percebemos, atravessa a obra de Kafka tanto como uma qualidade constante daqueles personagens que, por motivos diversos, encontram-se à parte dos demais, quanto como sinal de um afrouxamento da rigidez da lei em favor de uma maior sensibilidade. Tais situações transparecem também nos diários do autor quando, ao descrever suas noites em claro, esboça explicações de seu processo criativo:
Acho que o único motivo dessa insônia é que eu escrevo. Pois, por menos e por pior que eu escreva, essas pequenas comoções acabam me tornando suscetível, e especialmente no começo da noite e mais ainda de manhã, sinto as contrações da possibilidade imediata de estados grandiosos que me dilaceram e que me permitiriam realizar qualquer coisa; nesse alarido geral dentro de mim, que não tenho tempo para ordenar, não encontro repouso. No fundo, esse alarido nada mais é do que uma harmonia angustiada e contida que, se fosse liberada, poderia me encher por completo, mais ainda, me expandiria e continuaria me preenchendo. Mas agora, além de esperanças débeis, esse estado só me traz dissabores, pois não tenho forças suficientes para suportar essa mistura presente; de dia o mundo visível me dá apoio, mas à noite sou dilacerado sem impedimentos. (KAFKA, 2003, p. 26-27).
Nesta importante passagem retirada das anotações de seu diário no dia 2 de outubro de 1911, fica evidente essa sensação de infinitude e preenchimento potencialmente infindável proporcionada pelo contato “sem impedimentos” com tais “estados grandiosos”. Foi nesta situação, por exemplo, que a novela A metamorfose foi escrita, entre 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912, predominantemente à noite, como assinala Modesto Carone (1990) no posfácio à edição brasileira por ele traduzida. É este, afinal, “o verdadeiro espólio [que] só se encontra nas profundezas da noite, na segunda, terceira, quarta hora.” (Ibid., 2003, p. 127). Trata-se, em outras palavras, da excepcional criatividade de que fala Zygouris em “Idéias lunáticas”, nessa clarividência que só pode ocorrer quando não há mais o apoio do mundo visível.
No entanto – como tão próprio de Kafka, diga-se de passagem –, esse privilégio cobra o seu preço, e seu preço é o dilaceramento interno provocado pela insônia e pelos sonhos. No conto “A colônia penal”, o personagem condenado à morte só conhece seu crime quando, submetido a uma máquina letal, tem sua falta gravada na carne, cada vez mais profundamente, té dela perecer. Ecos dessa proposta podem se fazer sentir nesta passagem dos diários kafkianos, datada de 3 de fevereiro de 1922: “Insone, quase completamente; atormentado por sonhos como se eles tivessem sido entalhados em mim, um material resistente.” (Ibid., p. 134). Tais sonhos, mesclando-se ao processo de escrita e alimentando-o, são sentidos pelo autor numa potência tal que, assim como a escrita, por vezes se aproximam de um martírio, de uma condenação a ser suportada. “Em suma, passo a noite inteira num estado que uma pessoa saudável experimenta por alguns instantes antes de simplesmente adormecer. Acordo rodeado de sonhos em que evito pensar.” (Ibid., p. 25), diz ele.
Dessa forma, não dormir e sonhar para Kafka são praticamente sinônimos, uma vez que sua insônia é marcada precisamente por essa presença intermitente de sonhos e imagens que vêm e vão. É como se o escritor vivesse, no plano da vigília, a experiência do sono e do sonho. Não à toa Freud pergunta: “Acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em plena luz do dia’, e suas criações com os devaneios?” (FREUD, 1996, p. 139). Se seus devaneios diurnos já se mostram obras literárias em potencial, a noite parece o lugar por excelência em que tal realização terá lugar. Para Ganhito, “feito de qualidades sensíveis, este pensar tem afinidades com o “pensar por imagens” do sonho.” (GANHITO, 2001, p. 212). Tal inventividade, assim, seria resultado do afrouxamento da censura já mencionado nos artigos de Zygouris, de um lado, e, de outro, da presença aguçada desse estado sonhador em meio à vigília. O artista insone é aquele que se cria nessa tênue fronteira entre o sono e a condição desperta, aquele que vê seu pensamento extraordinariamente livre precisamente por tê-lo próximo ao estado do sonho, por achar-se nessa frágil fronteira entre o delírio e a reflexão. Nas palavras de Jane Messer na introdução de Bedlan: an anthology of sleepless nights, “por que estar sem sono não é o mesmo que estar desperto? A falta de sono é vaga e cheia de percalços (...). Os insones têm visões e pensamentos impossíveis aos outros, uma vez que estes outros estão na cama, adormecidos. Os insones desenterram segredos.” (MESSER, 1996, p. XIV).
Três constatações, portanto, se fazem necessárias. Em primeiro lugar, temos a imagem do insone como um ser de exceção, que goza de uma existência diferente dos demais e dá vazão às suas peculiaridades no período noturno. Tal imagem, num segundo momento, comporta também a do autor insone que escreve à noite enquanto os outros dormem. Veremos como esse modelo não apenas é frequente nos dados biográficos dos autores modernos, que já dispõem de lâmpadas a gás ou elétricas para produzir madrugada adentro, como é o caso de Kafka, mas como também se transforma por vezes na própria estrutura do romance, como é o caso do Paulo Honório de S. Bernardo e do Marcel de Em busca do tempo perdido, por exemplo. Ainda que este trabalho não proponha críticas de caráter biográfico, é interessante e também relevante notarmos esses intercâmbios entre a vida e a obra dos autores, isto é, nos indagarmos acerca dos desdobramentos estéticos dessas noites
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Fonte:
Victoria Saramago Pádua: “Contra a Luz: Insônia, prosa de ficção e Graciliano Ramos”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Brasileira. Orientador: Prof. Dr. José Luis Jobim de Salles Fonseca. Co-orientador: Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha). Rio de Janeiro, 2010.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Kafka: “Só sonhos, nada de sono”
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