A natureza do mal



“Partindo da difícil questão sobre a origem do mal - que jamais poderia vir de Deus porque “Deus é bom” -, Agostinho pretendia combater as idéias materialistas e dualistas do maniqueísmo e resolver o embate sobre o “pecado original” com Pelágio, um dos seus maiores opositores.

O Hiponense nega a materialização do mal, ou seja, que o mal seja um princípio ou uma substância preexistente no mundo em contraposição a um bem, e nega o dualismo que vê a separação material entre corpo e alma. Para Agostinho o mal é a expressão da finitude das criaturas, ou seja, uma ausência de perfeição. Mesmo que o homem seja mais perfeito que os outros seres e tenha herdado a imagem de Deus, não é idêntico ao seu Criador. Essa falta é o que acarreta o mal.

Podemos dizer então que em Agostinho o mal, propriamente dito, não existe, e o que existe é uma predisposição da vontade para praticá-lo. O mal seria, em suma, um desvio da vontade e um distanciamento de Deus pelo pecado. “Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão desviada da substância suprema...”, escreve Agostinho nas Confissões, confirmando que o mal não preexiste ao mundo como uma força, como afirmavam os maniqueístas, mas que está dentro de nós.

Trazendo a origem do mal para o interior do homem, Agostinho vem reafirmar o caráter dinâmico da natureza humana. O homem não é uma criatura passiva diante dos imperativos de um bem ou de um mal existente fora de nós, mas dono de uma vontade que decide entre um e outro. A vontade é, pois, uma faculdade constitutiva do espírito que nos possibilita fazer escolhas independentemente do mundo exterior.

Essa forma de pensar rompe definitivamente tanto com as concepções filosóficas maniqueístas como com a tradição grega que associa o desejo do bem ao conhecimento. Em Agostinho a vontade não depende somente do conhecimento, mas principalmente de uma decisão pessoal que muitas vezes gera ou é gerada de um conflito. O conflito, porém, não é causado pelas maleficências do corpo, pois este é inferior à alma e, sendo inferior não tem autoridade sobre aquilo que é superior. O conflito é gerado na própria alma que decide entre isto ou aquilo, visando, entre outras coisas, também as solicitações do corpo.

Nesse sentido podemos dizer que o bem e o mal existem dentro de nós em forma de duas vontades, uma que tende ao pecado e à carne, outra que tende à benevolência e ao espírito.

Assim, (existiam) duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me.

A alma vive um conflito constante entre essas duas tendências. Luta consigo mesma comandando o corpo, mas não domina a si mesma. Essa luta traduz um paradoxo dentro do pensamento agostiniano, na medida em que se coloca um obstáculo entre o querer e o poder realizar. Não realizo se não quero, mas também não faço tudo que quero, porque a razão não governa e sim, a vontade. Assim temos em um trecho dos mais significativos a este respeito nas Confissões:

A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; alma dá uma ordem a si mesma, e resiste! (...) A alma ordena que a alma queira; e sendo a mesma, não obedece. (...) Repito: a alma ordena que queira
porque se não quisesse não mandaria , e não executa o que lhe manda! Mas não quer totalmente. Portanto, também não ordena terminantemente. Manda na proporção do querer. Não executa o que ela ordena enquanto ela não quiser, porque a vontade é que manda que seja vontade. Não é outra alma, mas é ela própria. Se fosse plena, não ordenaria que fosse vontade, porque já o era. Portanto, não é prodígio nenhum em parte querer e em parte não querer, mas doença da alma. Com efeito, esta, sobrecarregada pelo hábito, não se levanta totalmente, apesar de socorrida pela verdade. São, pois, duas vontades. Porque uma delas não é completa, encerra o que falta à outra.

A alma domina o corpo porque é superior e sendo superior não se submete a ele. Mas não domina a si mesma, porque em todo ato de vontade existe um querer e um não querer. O problema é que, a alma, acostumada às concupiscências, entra em conflito consigo mesma e permanece na dúvida até que a vontade superior vença.

A afirmação acima pressupõe que a vontade é livre para exercer ou não o seu poder de escolha, livre em relação a si mesma. Podemos obrigar alguém a fazer alguma coisa, mas nunca a querê-la. Assim a vontade é alheia a qualquer manifestação do mundo exterior e livre em sua essência. Resta, porém, analisarmos a questão entre o “querer” e o “poder” e isso implica considerarmos o valor da ação no pensamento agostiniano.

Agostinho em momento algum nega que a vida contemplativa, guiada pela busca da verdade, seja a negação da vida sensível. O homem é um ser no mundo e enquanto tal está sujeito aos desejos e paixões e, mais ainda é compelido a discernir, entre as coisas sensíveis as que remetem ao bem e as que remetem ao mal. E, mesmo conhecendo o bem, ou seja, mesmo sabendo como se deve agir em conformidade com a lei, o homem pode escolher fazer o mal, ou ainda, pode fazer o bem porque conhece a lei, e ter a vontade de praticar o mal.

(...) considera um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intuito e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito.

Existe uma vontade que é sempre capaz de visar ao bem, mas para se ter acesso a essa vontade “perfeita” a alma tem de estar preparada, pura, livre do pecado e das tentações, estado alcançado somente pela graça. A consciência da verdade deve ser buscada, portanto, em Deus para que Ele guie não as nossas ações, mas a nossa vontade.

Agostinho se baseia na própria experiência de conversão para suas conclusões. E bem se sabe o quanto essa experiência lhe causou sofrimento e angústia na “guerra” que travava consigo mesmo antes e após sua conversão. Assim, em termos de concepção filosófica, Agostinho transfere o embate entre o bem e o mal do maniqueísmo para dentro de si mesmo. Esse embate acontece independentemente do consentimento ou não da razão e do entendimento. O embate é entre a alma e ela mesma, entre essas duas vontades que comandam o agir e o pensar.

Segundo Ricoeur, a filosofia de Agostinho, ao refletir em torno da natureza do mal tinha o objetivo apologético não só de combater as idéias maniqueístas, que materializavam a figura do mal mas principalmente, de criar um conceito de pecado original.

Para os gnósticos o mal é uma realidade física, uma potencialidade procedente do mundo que atinge os homens. Sem possibilidade de ser uma conseqüência da liberdade humana, a confissão não tem uma finalidade ética, pois o pecado provém do próprio estar no mundo, não é fazer, mas ser.

Para os cristãos, ao contrário, o mal não tem natureza, não é uma coisa, não é uma matéria, não é uma substância, não é mundo, mas entrou no mundo por meio da fraqueza humana. Daí, o mito adâmico se tornar o símbolo de que o homem é a causa e a origem radical do mal. A figura de Adão é arquetípica, pois representa toda humanidade e, na obra de Agostinho, representa a natureza de pecado que herdamos como dado biológico que, associado à vontade – outra natureza –, ganha também o estatuto jurídico de culpabilidade individual. Assim, o pecado original foi herdado pelos cristãos como uma categoria jurídica de dívida e uma categoria biológica de herança.

Adão representa a queda, o iniciador e nós, na medida em que também pecamos, não iniciamos, mas damos continuidade ao erro primordial. Foi por meio do primeiro homem que o pecado entrou no mundo, bem como o poder de liberdade e de escolha dos homens.

Em conseqüência à interpretação de Agostinho do mito adâmico, o mal deixa de ter dimensão cosmológica, como na concepção gnóstica, para se revestir de um caráter puramente ético, pois enquanto o homem é integralmente responsável por sua queda, é co-autor do pecado. Agostinho inaugura a visão ética do mal na medida em que atribui ao homem a plena responsabilidade de seus atos, mostrando que a natureza do homem não é má, má é a sua vontade.

Longe de se admitir, ainda, uma contingência do mal, prevalecem na interpretação agostiniana traços nitidamente neoplatônicos. O mal é uma inclinação do “ser” para o “não ser” ou uma inclinação para o nada, entendendo como “nada” uma aversão a Deus. É o movimento de aversão que constitui o pecado. Tal movimento, logicamente, não poderia vir de Deus.

Para Agostinho seria, portanto, menos difícil aceitar que o pecado e o mal entraram no mundo com a queda de Adão e a idéia de que o gênero humano inteiro está em estado de condenação como resultado do erro primordial, do que entender como o homem pode ser afligido por tantos males quando a graça e a misericórdia divina agem nele. Deus não pode ter criado o mal, porque este é uma inclinação para o nada. Assim, não pode haver começo individual do mal, pois este é uma continuação, uma perpetuação, uma marca hereditária transmitida a todo gênero humano pelo primeiro homem.

A coação, representada pela serpente, dá a idéia de que o mal é exterior ao homem e, como tal, superior e mais forte. Por outro lado, Adão cede às seduções desse mal exterior e daí nasce a culpa. Entre estas duas tendências – mal para além do humano e mal que decorre de uma escolha má – se concentra o sofrimento humano que só é superado através da experiência dolorosa da consciência culpada que busca a graça e a salvação divina."

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Fonte:
MARIA IMACULADA AZEVEDO FERNANDES: "INTERIORIDADE E CONHECIMENTO EM AGOSTINHO DE HIPONA”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob orientação do Prof. Doutor Marcelo Perine). São Paulo, 2007.

Nota
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