O ciúme de Paulo Honório e o aniquilamento de Madalena



"Em São Bernardo, o ciúme aparecerá na narrativa como um sentimento negativo, o qual se revelará contrário à idéia da presença de um intenso sentimento amoroso, onde os parceiros temem a perda do ser amado e buscam, de forma exagerada, prendê-lo com cuidados excessivos. A postura forte de Paulo Honório sucumbirá ao medo de lidar com o abandono, com as frus trações e as dores possivelmente advindas com a traição da esposa, com o fato de ser trocado por outro que lhe fosse superior tanto em termos de beleza física quanto de capacidade intelectual.

Já nos primeiros dias após o casamento, esses temores começam a se revelar no discurso do narrador, com as descobertas em relação ao caráter da mulher. Desde o primeiro encontro até o pedido de casamento, o contato entre eles fora muito pouco. Entretanto, uma aproximação inicial já é suficiente para que a mulher se torne um objeto desejado, o qual deseja ser apreendido e tornado objeto de posse. Segundo Flávio Gikovate, “mesmo que mal tenhamos conhecido a pessoa que se transformará em nosso objeto de amor, passamos imediatamente a nos sentir com direitos de propriedade sobre ela assim que estabelecemos o compromisso de namoro” (2006, p. 147).

Depois do matrimônio, o narrador nos relata que Madalena havia chegado à fazenda cheia de sonhos, muito alegre e disposta a participar ativamente das atividades e afazeres que haviam por lá. Como Paulo Honório pouco a conhecia, essas primeiras impressões e a disposição da esposa o agradam, já que era exatamente alguém assim que procurava, alguém disposta a contribuir na sua ascensão financeira, não uma mulher que desejasse apenas usufruir dos seus bens materiais. Entretanto, a aproximação da esposa com os empregados, mais especificamente com os homens na lavoura ou empregados da casa, é vista com maus olhos. O protagonista sabe, pelo caráter amável e pela atitude sempre solícita da esposa, que suas intenções eram as melhores possíveis em relação a diminuir um pouco do sofrimento e da miséria em que os trabalhadores viviam. A essa altura, começam a surgir as primeiras demonstrações de possessividade, porque sendo esposa, Madalena deveria estar sob o seu domínio, assim como estavam todos os que o cercavam e trabalhavam na fazenda. É inaceitável para ele ter uma mulher se metendo em seus negócios, dizendo-lhe como devia proceder e se relacionando com seus empregados de forma direta, conversando trocando informações e até incutindo-lhes idéias de cunho socialista. Para o crítico Antonio Candido, “ninguém fazia sombra a Paulo Honório; agora eis que alguém vai destruindo sua soberania; alguém brotado na necessidade patriarcal de preservar a propriedade no tempo, e que ameaça perdê-la” (1992, p. 27). Esse será, como veremos, um dos motivos que levam o casal ao desentendimento contínuo. Para entendermos melhor a postura de Paulo Honório, o capítulo dezenove nos serve como exemplo para pensarmos em suas atitudes frente a ela. Analisando-o, nos parece que o narrador sente a necessidade de explicar aos leitores os motivos dos seus tormentos no presente, e um deles é a falta de compreensão que nutriu pela esposa: “Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste” (p. 100).

Como não a conhecia e nem desejava conhecê-la, pois seu espírito bruto não o permitia aceitar a alteridade, preferia pensar que a aproximação de Madalena com os homens da fazenda tinha outras intenções além da caridade e do desejo da diminuição das injustiças sociais. Agora, no presente da escrita memorialista, é tomado por emoções que o alucinam, o inquietam, fazendo-o tomar conhecimento da injustiça cometida com a esposa. A reflexão e o tempo o fizeram reconhecer o quanto foi injusto e duro com ela. Mas é tarde e todo o arrependimento não traz de volta os momentos bons que passaram juntos. O sentimento de culpa o incomoda, entristece-o e o impele a escrita que é uma das formas de reviver o passado e analisar suas ações, resultando na transformação do seu espírito, transcorrida ao longo da narrativa.

Dessa forma, quando o fazendeiro narra os primeiros dias de seu casamento deixa claro que foram dias felizes, até começarem os primeiros desentendimentos e sua implicância com o tipo de relação mantida entre a esposa e os amigos que freqüentavam a fazenda. O seu desejo era que Madalena não ultrapassasse os limites da casa, apenas ajudando nos afazeres domésticos ou que auxiliasse o seu Ribeiro, no escritório, pois mostrou conhecimento em escrituração, de acordo com o velho empregado de Paulo Honório. Ou seja, a partir dessas colocações percebemos o desejo de posse absoluta da esposa, na qual ela deveria somente atender às suas necessidades e corresponder aos seus anseios. Isso implicava ficar longe das atividades com outras pessoas, como o Padilha, o qual compartilhava idéias socialistas com Madalena, e o Nogueira, homem instruído que lhe despertava o ciúme.

As imposições de Paulo Honório não a impedem de continuar suas atividades, como as conversas com os trabalhadores e as ajudas prestadas às famílias e às pessoas carentes da fazenda do marido. A inteligência e a amabilidade conquistavam a todos, fazendo com que se tornasse uma criatura admirável, até mesmo recebendo o reconhecimento do narrador. Este vivia sempre aborrecido com o tratamento que ela dispensava aos outros e com a indiferença demonstrada com relação aos assuntos que lhe dizia respeito. A sua origem e as dificuldades passadas para conseguir a fazenda eram, na visão dela, menor do que a tia, d. Glória, havia sofrido para sustentá-la e conseguir que a sobrinha se instruísse, pensamento revoltante e inaceitável para ele.

Todos esses conflitos iniciais, resultantes de temperamentos tão diferentes, começam a se acentuar na medida em que Madalena consegue influenciar o marido e fazer com que a permita continuar suas atividades pela fazenda. Vemos, por exemplo, um Paulo Honório capaz de mandar dinheiro para um trabalhador doente, ou comprando materiais escolares para ajudar as crianças e adultos nas lições. Contudo, essa influência exercida sobre ele o incomoda e as brigas vão se acentuando. O narrador chega a tentar evitá-las, pois Madalena fica grávida e esse seria um atenuante para as discussões violentas entre os dois. Difícil se controlar, mas o fazendeiro se rende aos caprichos da mulher e, por vezes, desconsidera as palavras duras e as críticas dirigidas a ele, na intenção de buscar o entendimento entre os dois.

Em poucos meses de casados, o narrador passa a suspeitar do tipo de afinidade mantida entre ela e Padilha (a quem Madalena mostrou indiferença e repúdio ao comportamento, ao chegar a fazenda) e outros homens, como o Nogueira. As conversas, muitas vezes inteligíveis para ele, era motivo de suspeita de uma possível traição ou de planos arquitetados contra a sua soberania entre os trabalhadores. Madalena era apontada, a todo tempo, como uma socialista, ou comunista que desejava destruir os seus bens materiais e compartilhá-los com os demais empregados, como uma forma de diminuir a desigualdade entre eles. As cartas que escreve, os artigos vão ser o alvo também dessa desconfiança, a qual chegará a conseqüências trágicas. Para Lúcia Helena Vianna, a instrução de Madalena é um dos motivos que levam o narrador a desejar castrá-la de suas atividades intelectuais, já que as posses, o conhecimento que dispunha não era nada comparado aos saberes que a mulher mostrava possuir. “A carência do saber letrado serve então como força ativadora do sentimento de falta, que se exterioriza, entre outros modos, no ciúme” (VIANNA, 1999, p. 80).

Lembremos que Madalena chegou à fazenda muito feliz, satisfeita pela escolha e por estar morando num lugar tranqüilo, com muito verde, animais e propício ao desenvolvimento de suas idéias. Com o passar dos dias, observamos, de acordo com o que nos relata o marido, a sua tristeza, o choro e o desespero em situações onde se sente subjugada pela postura controladora de Paulo Honório. A situação começa a se agravar quando, estando os dois no escritório, o marido revela aos leitores uma idéia, um pressentimento que lhe surge:

Interrompi a leitura da carta que tinha diante de mim e, sem saber por quê, olhei Madalena desconfiado. Estava de pé, encostada à carteira, mexia distraída as folhas do razão e contemplava pela janela os paus-d’arcos distantes. (...) Nisto a idéia voltou. Movia-se, porém, com tanta rapidez que não me foi possível distingui-la. Estremeci, e pareceu-me que a cara de Madalena estava mudada. Mas a impressão durou pouco
(p. 125-126).

Apesar de deixar subentendido o que pensou naquele instante, fica claro que começava a enxergar uma outra Madalena, uma mulher capaz de mentir, dissimular e enganá-lo. Essa idéia “escorregadia”, sem uma forma concreta é o início de seu ciúme e das desconfianças em relação às amizades que a mulher mantinha, as quais lhe desgostavam profundamente. Em sua mente alucinada, Paulo Honório rejeita o fato de a personagem manter uma ligação com essas outras pessoas que, tal como ela, são instruídas e expressam pensamentos semelhantes em termos políticos e sociais.

Dissemos anteriormente que o ciúme do narrador tem uma conotação negativa. Pensando no sentimento experimentado ao vê-la conversando, trocando idéias sobre assuntos por ele desconhecidos, e ao notar que Madalena dava atenção a esses outros homens por possuírem um saber o qua l não detinha, associamos ao seu modo de se portar certa inveja, atitude que revela a sua condição de inferioridade em relação ao ser amado. O ciúme, por sua vez, dependendo de como é expresso, pode apresentar uma aceitação, um entendimento por parte do parceiro, pois o “ciúme pode subtender sentimento amoroso, desejo de proteger e querer preservar a companheira do assédio de outros homens” (GIKOVATE, 2006, p. 139). Já a inveja não tem outra interpretação além daquela da sensação de inferioridade, na qual o amante é sobrepujado pelo poder que o outro tem em seduzir ou roubar a atenção de outra pessoa, do qual se é incapaz de fazer o mesmo.

Ora, até então, o fazendeiro sentia extrema revolta pelo comportamento e tendências socialistas, cujas idéias colocadas pela mulher aos trabalhadores começavam a atrapalhar sua gerência em São Bernardo. Agora, esse sentimento inexplicável que lhe ocorre o levará a paranóia, a perseguição contínua dos seus atos, desencadeando um processo de acusações e desconfianças para com a esposa. Assim, aquele sentimento apontado por Flávio Gikovate como positivo para muitos, aqui tomará formas devastadoras na medida em que pretende autorizar a interferência na vida do parceiro. Segundo ele, “o ciúme tido como emoção aceitável e digna, passa a ser o sentimento que avaliza a dominação, a tirania e legitima a intromissão de uma pessoa no modo de ser da outra” (GIKOVATE, 2006, p. 138). Paulo Honório não hesitará em exercer o poder de dominação, que sempre o acompanhou em suas relações com as pessoas, sobre a mulher, levando-a ao desespero.

Como vítima do marido, Madalena mostra-se uma mulher disposta a desafiá-lo. Mantém contato e participa das conversas com os amigos do marido, mesmo sabendo que sua atitude desgosta-o. Antes do narrador iniciar as acusações, os insultos, a mulher acreditava que o marido agia em conformidade ao regime patriarcal, o qual podava a mulher de envolver-se nas atividades designadas ao homem. Paulo Honório, como fruto dessa sociedade machista, não podia agir diferente dos demais. Contudo, quando percebe que sua atitude vai além do desejo de impedi-la de agir livremente e expressar os seus pensamentos, o vê como um homem bruto e ignorante, capaz das mais diversas agressões verbais que a diminuem enquanto mulher.

Mas, nos perguntamos: por que o narrador sente tanto ciúme da esposa se, até aquele determinado momento, ela não dava mostras de um possível envolvimento sexual ou afetivo com outros? Uma das prováveis respostas a essa questão está na postura de Paulo Honório ao sentir-se inferior, feio e sem atrativos se comparados a, por exemplo, seu amigo Nogueira:

Procurei Madalena e avistei-a derretendo-se e sorrindo para o Nogueira, num vão da janela. Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa bem-feita, a voz insinuante. Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mãos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e comecei a sentir ciúmes
(p. 133).

Sentimos nessas palavras já o início da paranóia que o acometerá, quando começa a imaginar que a vê flertando com outros homens, como na cena descrita, onde Madalena parece interessada por Nogueira. É comum nesse tipo de ciúme sexual que o/a amante viva a situação de forma exagerada, beirando a fantasia e o delírio constante. Nessas situações, conforme diz o psicólogo Flávio Gikovate, eles criam hipóteses, muitas vezes sem nenhum fundamento, mas que acreditam serem verdades. Por isso, aos olhos do narrador, a esposa estaria despertando o interesse sexual de outros homens e correspondendo às investidas.

Outro agravante a essa situação criada pelo fazendeiro é que sua condição física e intelectual, se comparada aos dotes do Nogueira, eram inferiores, o que daria margem ao interesse da esposa. Lembremos que Madalena não o amava e o marido sabia disso, porém aceitou casar-se nessas condições. Se provavelmente ainda não o amava, talvez também inexistia uma admiração e tal fato o incomodava. Surge então o medo da perda, o temor de ser trocado por alguém que se mostrasse mais interessante, capaz de ocupar o lugar que era seu. Rude, mãos calejadas pelo trabalho, destituído de beleza física, vemos um narrador que expõe a sua inferioridade e admite, mesmo dizendo que “confia em si”, que a mulher poderia olhar e desejar outro. Esse tipo de ciúme é o que Freud classificou de concorrencional ou normal. Segundo ele, experimentamos um sentimento de despeito, onde acreditamos não ter o que o outro tem, ou seja “eu não sou tão bom quanto o outro” (FREUD apud LACHAUD, 2001, p. 64 34-35). Dessa forma, essa inferioridade percebida pelo narrador, ao se observar e se olhar num espelho, começa a se estender a seus amigos e o próximo alvo de sua desconfiança é o dr. Magalhães que, mesmo velho, era alguém que despertava a atenção de Madalena e talvez a atraísse pelas suas qualidades:

Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que eu também era um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte a culpa era minha: não me tratava. (...) Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. (...) Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos! As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam. Se ele só pega em autos! (...) Fui ao espelho. Muito feio, o dr. Magalhães; mas eu, naquela vida dos diabos, berrando com os caboclos o dia inteiro, ao sol, estava medonho
(p. 140).

Vendo nos próprios amigos rivais aptos a tirar-lhe Madalena, o narrador inicia um processo que poderíamos chamar de afastamento ou anulamento dos possíveis homens que a esposa poderia vir a se relacionar, numa relação de infidelidade ou mesmo troca por outro parceiro. Sentindo-se ameaçado, a primeira medida adotada é afastar Padilha da mulher, prendendo-o na escola e deixando quase que passar fome para ficar magro, feio, abatido e, conseqüentemente, desinteressante aos olhos dela.

Até então, as atitudes e pensamentos de infidelidade não haviam chegado ao conhecimento da mulher. Esse primeiro momento de desconfianças ronda a mente de Paulo Honório e o atormenta bastante, levando-o quase a um estado doentio, pois chega a dizer que estava sentindo-se mal, doente e sofrendo com aquela situação de ciúme. Violento, dominador, sente vontade de bater na mulher, espancá-la para descarregar a raiva sentida e vingar-se de uma possível traição já acontecida. Para ele, Madalena não prestava e deveria ter pensado nisso ao desejar casar-se com uma mulher de escola normal. Intelectual e, ainda por cima, sem religião, conclui que a esposa era o protótipo da mulher imprestável para o casamento, pois o marido não conseguiria ter nenhum tipo de controle sobre alguém com pensamentos e idéias tão avançadas, e contrárias às normas estabelecidas por uma sociedade patriarcal e severa como ainda o era naquela época. Desejava ter o seu total controle, mas àquela altura, percebia a impossibilidade de conseguir fazer da mulher mais um instrumento manipulável.

O ciúme de Paulo Honório ganha forças descomunais e o fazendeiro inicia um processo de anulamento também de Madalena. Se a raiva e o descontrole estavam voltados para os possíveis rivais, agora o alvo de seu ódio passa a ser a própria mulher e as atividades que ela desenvolve. Chama-nos a atenção o seu interesse pelas cartas que ela escreve. Lúcia Helena Vianna aponta, em São Bernardo, a significação que as cartas têm como um elemento de poder exercido por quem as escreve sobre quem deseja saber o que querem significar. Elas carregam “um valor simbólico: o de promover a refração daquilo que o sujeito mais deseja, que é saber. Saber sobre o destinatário, o lugar em branco, o vazio. Paulo Honório está na posição daquele que vê, mas não pode fazer nada” (VIANNA, 1999, p. 82-83). Resta-lhe então o desejo de conhecer seus pensamentos, seguir seus passos, o tipo de amizade que mantém com Azevedo Gondim, um dos amigos que Madalena escrevia constantemente. Ora, para aquele que sente ciúme a vontade de conhecer, de descobrir os pensamentos do amante é constante. E, por não conseguir descobri-los, a dúvida de se estar ou não sendo traído aumenta. Na narrativa, em vários momentos o personagem assinala o desejo de desvendar o que continha aquelas cartas, aqueles traços e palavras muitas vezes incompreensíveis para ele. Entretanto, a mulher se nega a mostrá-las e revelar-lhe o conteúdo. A escrita, na verdade, é também alvo da inveja do narrador, cujo desejo seria expressar-se com a habilidade que Madalena o fazia, mas fora tolhido da educação formal, pela vida dura e pelo caminho escolhido para ser um proprietário de terras. Ou seja, para o seu fito, bastava-lhe tão somente obter os conhecimentos necessários a lidar com os negócios, as aplicações financeiras e a administração. Agora, diante daquele papel escrito, o qual muitas vezes configurava-se como um enigma, ele amargurava-se e buscava diminuir a importância da formação de Madalena, em oposição a todo poder conquistado, ao longo dos anos, sobre as pessoas ao seu redor. Assim, o fato de possuir o saber é colocado em detrimento ao possuir terras, influência, domínio sobre os mais fracos e o dinheiro.

Como já afirmamos, em muitos casos, o ciúme estará relacionado à inveja e, nesse caso, é certo que Paulo Honório a invejava, assim como invejava Padilha, Azevedo Gondim, Nogueira e o dr. Magalhães. É o início da possessividade absoluta sobre a mulher, que chega ao extremo da agressão verbal, como podemos ver na cena descrita, no capítulo vinte e seis:

– Mostra a carta, insisti segurando-lhe pelos ombros. Madalena defendia -se, ora levantando o papel com os braços estirados, ora escondendo-o atrás das costas:
– Vá para o inferno, trate de sua vida.
Aquela resistência enfureceu-me:
– Deixa eu ver a carta, galinha.
Madalena desprendeu-se e entrou a correr pelo quarto, gritando.
– Canalha!
D. Glória chegou à porta, assustada.
– Pelo amor de Deus! Estão ouvindo lá fora. (...)
E eu só sabia dizer:
– Mostra a carta, perua.
Madalena rasgou o papel em pedacinhos e atirou-os pela janela:
– Miserável! (p. 141)

O relacionamento entre os dois entra em crise e as agressões verbais são a prova de que o casamento fracassava. Tomado pela fúria, o marido agride a mulher de forma desrespeitosa, usando termos que a comparam a uma mulher vulgar (perua, galinha) e denigrem a sua imagem de esposa respeitável. Madalena, por sua vez, reage às agressões e usa palavras designando-o como um homem grosseiro, capaz de maltratar aquela que diz amar, a mãe do seu filho. Luta, responde, foge e não revela a sua intimidade como uma forma de reação ao desejo castrador do ma rido. Essa discussão violenta é a gota d’água para uma derrocada da união, que terminará com a morte da mulher. A essa altura, Madalena já está, como o narrador nos expõe, emagrecendo, pálida, acabrunhada e triste. Situação bem diferente do que se encontrava antes do matrimônio. Seus planos de viver num lugar tranqüilo, em levar uma vida saudável no campo e tranqüila ao lado de um homem que prometeu cuidar dela e da tia vão ficando distantes. Resta-lhe tentar resistir o máximo possível à brutalidade do marido e não sucumbir à sua possessividade e ao ciúme doentio. Mas, até quando conseguirá?

Cabe ressaltarmos outro ponto importante na narrativa, que é a maternidade, a qual não temos a visão de Madalena sobre os reais motivos de seu distanciamento com o filho, já que é através da ótica do narrador que conhecemos a história e, na seleção feita, fica de fora o motivo pelo qual a esposa mostra-se alheia a criança. Contudo, podemos imaginar o ambiente da fazenda, e até mesmo da casa, como o próprio Paulo Honório nos conta, repleto de tristeza e de sombras. Sofrendo com a dominação do fazendeiro e privada de seus sonhos, ela estaria passando pelo estado que poderíamos denominar de uma possível “depressão pós-parto”, a qual era imperceptível para o marido pela sua ignorância. Antes e logo após o nascimento do menino, o casal vivia em brigas e discussões constantes. Apenas durante a gravidez da esposa, o narrador diz ter evitado as tais desavenças, “pegava nela como em louça fina” para evitar aborrecimentos. Logo em seguida, ouvimos dele, a todo o momento, que Madalena é indiferente à criança, a qual fica aos cuidados, na maior parte do tempo, de Casimiro, empregado da fazenda. É ele que brinca, carrega o menino magro e feio para todos os lados e o enche de cuidados. Tendo sido escolhida para ser a responsável por gerar um herdeiro para São Bernardo, naquele ambiente de dominação e infelicidade seria difícil conseguir sentir-se mãe, mulher, plena, pois os carinhos eram sentimentos distantes daquela realidade áspera que havia em seu lar.

Quanto a Paulo Honório, notamos uma angústia, um incômodo visível por meio do seu comportamento agressivo. Pelo que nos conta, o ciúme e as desconfianças que nutria pela esposa estavam lhe consumindo, e até buscava aceitar que eram infundadas. Na verdade, mesmo não a conhecendo, como irá nos dizer, sabia que as gentilezas, as conversas entre Madalena e os seus amigos eram desinteressadas de qualquer desejo sexual ou amoroso: “Madalena era honesta, claro. Não mostrara o papel para não dar o braço a torcer, por dignidade, claríssimo. Ciúme idiota” (p. 144). No entanto, sabemos que o ciúme em sua fase mais exacerbada provoca paranóia, e o ciumento não consegue separar o que é real do que está sendo fantasiado. Tanto que o narrador chega ao cúmulo de imaginar que a mulher está se envolvendo com o padre Silvestre e com os caboclos da fazenda e que, aquela altura, já estaria sendo o alvo do comentário dos empregados. Ou seja, enquanto traído, seria o último a saber, o que o revoltava bastante. Seu ciúme entrava numa fase de imaginar e visualizar situações incoerentes, sem fundamento, ao passo que chega a nos dizer: “Creio que estava quase maluco” (p. 153).

O ciúme não só faz mal a quem dele é o alvo, mas também a quem o sente. É comum vermos pessoas procurarem tratamento psicológico para curar-se, pois esse sentimento em sua etapa mais avançada acaba impedindo o indivíduo de ter uma vida normal, porque o temor da perda e a possessividade perdem o controle a ponto do amante delirar e desejar seguir os passos do parceiro durante as vinte e quatro horas de um dia, ou então colocar alguém para segui-lo, numa atitude desesperadora, para não terem que passar pela dor da perda. Isso acontece porque dói, machuca pensar que o ser amado pode estar dando aquilo que se entende ser seu (carinho, atenção, amor, cuidados) a outro(a). E, nessas situações, o mais comum é tirar todo o direito de liberdade do outro, o que acabará o afastando e fazendo com que perca a admiração e o respeito nutrido pelo parceiro. Assim, ambos sofrem e têm suas vidas estraçalhadas por esse sentimento visto por muitos como positivo, mas que sentido de forma exacerbada pode destruir a vida de alguém.

Em São Bernardo
, o narrador admite estar vivendo uma situação extrema e é incapaz de reagir. Tanto que com o passar dos dias, suas desconfianças em relação à mulher e às cartas escritas por ela só crescerão. Como não a conhecia, era impossível ter a certeza de sua fidelidade. Então, faz conjecturas, chega a pensar na vida que lhe daria se soubesse que era fiel: “Seria atencioso, muito atencioso, e chamaria os melhores médicos da capital para curar- lhe a palidez e a magrém” (p. 150), ou na vingança que praticaria se soubesse que era infiel:

“matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr por um dia inteiro” (p. 150). A dúvida era insuportável, embora, no final das contas, ficava-lhe a certeza de que a esposa estava mesmo o traindo: “Madalena tinha manha encoberta, indubitavelmente. – Indubitavelmente, indubitavelmente, compreendem? Indubitavelmente. As repetições continuadas traziam-me uma espécie de certeza (p. 151).

Tem início, então, as visões, a audição de barulhos, pessoas assoviando ao redor da casa, subindo no telhado, mexendo nas portas, as quais seriam, provavelmente, os amantes de Madalena. As noites passam a ser um tormento para Paulo Honório, pois não consegue dormir, ficando em alerta e a observar os gestos da esposa. Madalena, por sua vez, sofre, vive num estado de melancolia, tristeza, está magra, acabada pelas desconfianças e acusações absurdas do marido. O desejo de posse da esposa faz com quem o narrador a encurrale dentro da casa, no quarto, chorando todo o tempo, como podemos ver no capítulo trinta:

Fechava a janela e acendia o candeeiro.
– Que foi? Gemia Madalena aterrada.
– São seus parceiros que andam rondando a casa. Mas não tem dúvida: qualquer dia fica um diabo aí estirado. Madalena abraçava-se aos travesseiros, soluçando. Um assobio, longe. Algum sinal convencionado.
– É assobio ou não é? Marcou entrevista aqui no quarto, em cima de mim? É só o que faltava. Quer que eu saia? Se quer que eu saia, é dizer. Não se acanhe. Madalena chorava como uma fonte (p. 154).

Como um carrasco, o narrador age de forma bruta, usa palavras pesadas e fortes no diálogo com a esposa, revelando o seu lado violento ao dizer que se pegasse um dos seus amantes cometeria um assassinato. Dessa forma, deseja exercer o domínio, implantar o medo e o terror sobre a mulher. Às vezes, chega até a se dar conta da violência praticada contra ela, mas é incapaz de agir de forma diferente. A violência presente em seu comportamento desde a juventude, quando praticou o assassinato de um rival, e presente durante todo o percurso da aquisição de São Bernardo, agora estava voltada para o aniquilamento do próprio interior. Conforme assinalou Antonio Candido, “a violência é dissolução, e destrói construindo. Caracteriza-se efetivamente pela volúpia do aniquilamento espiritual, o cultivo implacável do ciúme, que não é senão uma forma de exprimir a vontade do poderio e recusar o abrandamento da rigidez (1992, p. 30). Alimentando-a, vai, aos poucos, conduzindo sua vida para a fatalidade que se abaterá sobre ambos.

Tomado pelo ciúme que, segundo Peter Szondi, contrário a outros tipos de paixões, “comporta em si mesmo a tragicidade como possibilidade” (2004, p. 103), Paulo Honório levará a sua esposa a cometer o suicídio e, conseqüentemente, se mortificará por sua morte. Tal como acontece com Otelo, o fantasma da infidelidade rondará a mente do protagonista, embaçando-lhe a real visão da realidade. As provas do adultério são procuradas no sentido de comprovar a traição da esposa e não com a intenção de inocentá-la, pois o gérmen da dúvida já se implantou desde o momento em que começam os delírios, as visões de Madalena trocando olhares com outros homens e a escrever-lhes as cartas. Estas, como acontece na tragédia de Shakespeare, em que o lenço (prova da infidelidade da mulher) dado por Otelo a Desdêmona e que foi parar no quarto de Cássio, servem de provas do caso que Madalena mantinha com algum de seus amigos: “Li a folha pela terceira vez, atordoado, detendo-me nas expressões claras e procurando adivinhar a significação dos termos obscuros. – Esta aqui a prova, balbuciei assombrado. A quem são dirigidas essas porcarias?” (p. 159). Colocada em cena como o estopim de uma conversa para acertos de contas entre os dois personagens de São Bernardo, a folha de uma carta encontrada no jardim pelo narrador revela, para este, o segredo que buscava descobrir e que, por ser apenas parte de um todo (onde estaria o todo?) merecia uma explicação: o nome do destinatário.

Aqui, podemos pensar na formação de um “triângulo imaginário”, no qual o personagem acreditava estar dividindo a esposa não só com um, mas com vários homens. Como já apontamos, todo triângulo amoroso acaba sendo autodestrutivo. O “terceiro elemento” era desconhecido de Paulo Honório, mas carregava em si todas as características de alguém capaz de tirar-lhe a esposa. Diante, então, de supostas provas, o ódio se abate sobre o personagem e leva-o ao desespero. A idéia violenta de agressão física e talvez até de morte surge nesse instante dramático. O comportamento agressivo, uma de suas marcas, o conduz a interpelação da esposa com a folha em mãos:

– A senhora escreveu uma carta.
(...) Madalena estava como se não ouvisse nada.
(...) A minha raiva se transformava em angústia, a angústia se transformava em cansaço.
– Para quem era a carta?
(...) O que me espantava era a tranqüilidade no rosto dela. Eu tinha fervendo, projetando matá-la. Podia viver com autora de semelhante maroteira? (p. 161-162)

A cena é montada meticulosamente e o leitor fica na expectativa do que poderia suceder do encontro dos dois. Entretanto, o desfecho trágico preparado pelo autor nos remonta a uma segunda possibilidade. Ao invés de tornar-se o assassino da mulher adúltera, se acaso ouvisse de Madalena uma confissão, o que não o faria sentir-se culpado depois, o desfecho apresentado com o suicídio da esposa e a descoberta de sua inocência, o conduz a tragicidade de uma culpa que o acompanhará a partir daquele instante. Culpa essa capaz de fazer sucumbir o senhor todo poderoso de São Bernardo, levando a ruína e a necessidade de escrita do livro.

Assim como o amor foi capaz de revelar para o narrador as inseguranças e as angústias relativas ao seu interior, como a questão física ou a intelectual, pois se sentia inferior a esposa em relação aos conhecimentos que ela mostrava ter e que estavam distantes dele, a morte apresenta a sua real condição sobre os seus limites. Com a ausência da mulher, sempre lembrada pelo pio funesto das corujas que povoavam a torre da igreja, o fazendeiro sucumbe ao terror das visões, das alucinações, do vazio que se tornara a sua vida e o desejo de continuar vivendo não existe. “Antes, Paulo Honório fora um personagem coeso e forte, movendo-se em um mundo de objetivos claros e (ainda que ilusório) repleto de significado: a propriedade” (LAFETÁ, 2002, p. 214). Agora o suicídio traz até ele o real significado da vida levada, ou seja, tudo não passou de uma ilusão, tivera uma existência desperdiçada pela incapacidade de entender, aceitar o outro e o amor.

Desse modo, pudemos observar ao longo desses capítulos que antecedem o desfecho do drama vivido pelos dois personagens, o quanto o sentimento de posse e o ciúme excessivo foram decisivos para o final do relacionamento desses dois seres tão díspares e fechados em si. Paulo Honório provoca sua autodestruição e a destruição da esposa, vitimada pela brutalidade incontida e pela sede de dominação do senhor de São Bernardo. Esmagada e subjugada pelo ciúme do marido, Madalena vai perdendo as forças, se rendendo aos poucos e definhando sem poder visualizar uma saída possível para o seu drama. Assim, homem e mulher serão vitimados por um relacionamento doentio que, mesmo sem vivenciar o amor, chegou ao desespero e ao aniquilamento."

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Fonte:
DEBORA CARLA SANTOS GUEDES: “SOBRE O AMOR EM GRACILIANO RAMOS”. (Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Letras – Subárea de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Estudos de Literatura. ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª MATILDES DEMETRIO DOS SANTOS). Niterói, 2009 .

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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