O contexto brasileiro. João Guimarães Rosa e o super-regionalismo



“Se se trata, neste item, de tentar mapear influências, de sondar mais a fundo os pontos de contato entre o movimento renovador modernista de 22 e a chamada revolução rosiana, é indispensável referirmo-nos ao ensaio “Literatura e subdesenvolvimento”, em que Antonio Candido (1989, p. 140-62) trata das relações entre subdesenvolvimento e cultura na América Latina.

Abordando a dependência causada pelo atraso cultural, o crítico discute o problema das influências, desde o momento colonial, notando uma “influência inevitável”, implícita, fruto do “vínculo placentário” com a metrópole. Os nativismos requeriam sempre a escolha de temas e sentimentos novos, sem contestar o uso das formas importadas, o que significaria o mesmo que se opor ao uso dos idiomas europeus ou a formas como o soneto e o conto realista, entre outras. Assim, essa dependência, vista como natural, torna-se “forma de participação e contribuição a um universo cultural a que pertencemos, que transborda as nações e continentes, permitindo a reversibilidade das experiências e a circulação de valores” (CANDIDO, 1989, p. 152).

Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores: “Isso significa o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna” (CANDIDO, 1989, p. 152).

Candido sublinha que os criadores do nosso Modernismo são herdeiros das vanguardas européias, mas a geração seguinte, os poetas das décadas de 30 e 40, é descendente direta deles. Segundo o crítico, as vanguardas do decênio de 1920 “marcaram uma libertação extraordinária dos meios expressivos e nos prepararam para alterar sensivelmente o tratamento dos temas propostos à consciência do escritor” (CANDIDO, 1989, p. 154). Importa notar que a consciência e o reconhecimento daquela vinculação natural correspondem ao início do desejo de inovar no plano da expressão e de lutar no plano do desenvolvimento social e político, a dependência encaminhando-se para uma interdependência cultural.

Sobremaneira relevante para nós é, porém, a reflexão do crítico acerca do regionalismo (CANDIDO, 1989, p. 157-62): este, embora possa parecer afirmação da identidade nacional, pode ser na verdade “um modo insuspeitado de oferecer à sensibilidade européia o exotismo que ela desejava, como desfastio; e que se torna desta maneira forma aguda de dependência na independência” (CANDIDO, 1989, p. 157). Tanto a imitação servil quanto o regionalismo do pitoresco, baseado em uma “realidade quase turística”, são sintomas do atraso e da dependência. Tal regionalismo, que principia com o Romantismo, nunca produziu obras consideradas de primeiro plano, correspondendo ao momento que Antonio Candido considera a “fase de consciência eufórica de país novo”.

Esse período inicial é seguido, nas décadas de 1930-40, pelo “regionalismo problemático” da fase de “pré-consciência do subdesenvolvimento”, de que são representantes o romance social e o romance do Nordeste, caracterizados pela superação do otimismo patriótico e certo pessimismo, que na degradação do homem uma conseqüência da exploração econômica (CANDIDO, 1989, p. 160). A consciência social, em alguns casos, leva à procura de soluções formais capazes de dar conta da representação da desigualdade e da injustiça, como se pode observar, por exemplo, em Vidas secas, de Graciliano Ramos.

Mas é a “consciência dilacerada do subdesenvolvimento” que vai, num terceiro momento, caracterizar a fase que Antonio Candido chama de “super-regionalista”: aproveitando o que antes era a substância do nativismo, do exotismo e do documentário social, mas descartando o sentimentalismo, e utilizando elementos não-realistas e técnicas anti-naturalistas, como o monólogo interior, a produção dessa fase é marcada pelo refinamento técnico, que transfigura as regiões e lhes empresta um caráter universal (CANDIDO, 1989, p. 161).

E é aqui que o crítico localiza “a obra revolucionária de Guimarães Rosa, solidamente plantada no que poderia chamar de a universalidade da região”, constituindo, como “atuação estilizada das condições dramáticas peculiares” ao subdesenvolvimento, ao lado de Juan Rulfo e Vargas Llosa, ou Cortázar e Clarice Lispector, no universo urbano, “uma espécie nova de literatura, que ainda se articula de modo transfigurador com o próprio material daquilo que foi um dia o nativismo” (CANDIDO, 1989, p. 162).

Notemos que tanto a tentativa de Affonso Ávila de resumir o projeto literário brasileiro desde seus primórdios, através da evolução das relações linguagem-realidade (em texto que pensou o Modernismo brasileiro e fez parte de um evento comemorativo aos cinqüenta anos da Semana de 22) quanto as considerações de Antonio Candido acerca dos reflexos do subdesenvolvimento na produção literária latino-americana (em trabalho destinado a fazer parte de obra editada pela Unesco, América Latina en su literatura) vão encontrar seu fecho, seu desfecho, na mesma obra, no mesmo nome: João Guimarães Rosa.

Esse fato, que exemplifica a (quase) unanimidade da crítica em relação à importância da obra rosiana, ao mesmo tempo em que indica sua posição de destaque no cenário literário nacional e latino-americano, indica como o autor mineiro se encontra, com efeito, naturalmente vinculado a uma série, apesar do que há de tão particular em sua obra. Mas é sobretudo seu caráter revolucionário, assim como a questão da estilização das condições socioculturais do subdesenvolvimento, que mais nos interessa destacar. Se essas considerações se aplicam em primeiro lugar a Grande sertão: veredas, podem também ser estendidas à obra de estréia do autor, Sagarana, e de forma mais incisiva ainda àquela que aqui nos interessa.

Recorde-se que, no primeiro texto citado neste item, Ávila coloca em evidência, como elementos definidores do Modernismo, a experimentação formal, a linguagem inventiva, a reflexão sobre a linguagem, lado a lado com a consciência crítica e um alto grau de referencialidade, a “consciência contextual inerente à ideologia crítica” (ÁVILA, 1975, p. 35) traços que poderiam também, sem maiores esforços, ser atribuídos à obra de Guimarães Rosa como um todo, embora a referencialidade da região, no caso do sertão rosiano, extrapole os limites do referente, pois “o sertão é o mundo”. O segundo texto, de Antonio Candido, por sua vez, discute a libertação definitiva dos meios expressivos promovida pelas vanguardas da década de 20, abrindo caminho para as gerações seguintes – o que nos permite considerá-la como determinante na criação das condições de produção e recepção locais que possibilitaram a gestação, o nascimento e a permanência da literatura de um Guimarães Rosa.

Com efeito, no ensaio “A Revolução de 1930 e a cultura”, Antonio Candido afirma:

[...] no decênio de 1930 o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito, não uma transgressão, fato notório mesmo nos que ignoravam, repeliam ou passavam longe do Modernismo. Na verdade, quase todos os escritores de qualidade acabaram escrevendo como beneficiários da libertação operada pelos modernistas
(CANDIDO, 1989, p. 186).

Vale a pena explorar mais esse texto esclarecedor, se quisermos compreender melhor o estado de coisas vigente na época em que se preparava a estréia de Guimarães Rosa no cenário da literatura brasileira, levando em conta que Sagarana, publicado em 1946, já vinha sendo preparado desde a década anterior, e uma versão da obra, intitulada Contos, havia sido submetida ao Prêmio Humberto de Campos no ano de 1937.

Ao tratar da consolidação da consciência social por parte dos escritores e artistas naquele momento, Candido aponta uma atitude que a ela correspondeu, bem característica dos anos 30, definida como um certo desdém pela elaboração formal:

Chega-se a pensar que para eles não era necessário, e talvez até fosse prejudicial, fundir de maneira válida a “matéria” com os requisitos da “fatura”, pois esta poderia atrapalhar eventualmente o impacto humano da outra (quando na verdade é a sua condição)
(CANDIDO, 1989, p. 196).

Essa atitude, aliada à extraordinária importância da “fatura” na prosa rosiana, levada às raias do preciosismo, pode ter sido responsável, de certa forma, pela acusação de alienação que durante muito tempo pesou sobre o autor mineiro. Na verdade, no ambiente literário da época aparentemente prevalecia

[...] a preocupação de discutir a pertinência dos temas e das atitudes ideológicas, quase ninguém percebendo como uma coisa e outra dependem da elaboração formal (estrutural e estilística), chave do acerto em arte e literatura
(CANDIDO, 1989, p. 197).

Por sorte o “quase”: Guimarães Rosa o percebeu, como poucos, podendo assim acertar. Seja-nos permitido mais um quase: quase um retrocesso, o descaso ou a desconfiança em relação à elaboração formal, nesse momento, se se pensa no esforço anterior dos modernistas em refletir sobre a linguagem e renová-la, esforço que, de qualquer forma, caracteriza sobretudo o chamado modernismo heróico, o qual foi sendo paulatinamente substituído pelo “projeto ideológico” (LAFETÁ apud CANDIDO, 1989, p. 196). Desse mal, o desdém pela forma, entretanto, não sofreu Guimarães Rosa; pelo contrário.

Depois dessa tentativa de compreender melhor o modernismo e os meandros do regionalismo e de visualizar algumas facetas do momento histórico-cultural brasileiro sob cujos auspícios nasce a obra de Guimarães Rosa, vejamos alguns aspectos mais específicos, que podem ajudar na elaboração da síntese que buscamos e que começa a se fazer necessária.

Em artigo intitulado “Tendências regionalistas no Modernismo”, Bernardo Élis (1975) reúne considerações que se aproximam bastante da resposta que temos procurado. Destaquem-se, em primeiro lugar, as seguintes afirmações: “o grande tema da ficção nacional tem sido o Brasil”; guardadas algumas exceções, “nossa temática é preferentemente e exclusivamente regional. O regional definiu o modernismo brasileiro” (ÉLIS, 1975, p. 88), uma vez que este “aceita a internacionalização estética e procura conciliá-la com o nacionalismo temático” (MARTINS apud ÉLIS, 1975, p. 91). Dessa forma, é possível vislumbrar a continuidade na tradição literária nacional que vai redundar no sertão rosiano, uma vez que o terremoto de 1922 parece manter intacta a força do regional. Para Wilson Martins (apud ÉLIS, 1975, p. 91), nacionalismo e regionalismo são os dois postulados essenciais da configuração espiritual do Modernismo.

Na opinião de Nelly N. Coelho, os temas, os cenários, as condições socioeconômicas do romance que se sucede ao regionalismo nordestino da década de 30 não se alteraram, mas “o ângulo de visão, o veículo expressivo e a técnica da estrutura são outros. [...] O que encontramos nesses novos autores [...] é a perplexidade de um homem que está perpetuamente pondo em pauta a visão do seu mundo íntimo” (COELHO apud ELIS, 1975, p. 89).

Entre esses novos autores, está Guimarães Rosa. “O Movimento Modernista de 1922 a 1946 insuflou, aqui e ali, movimentos de cultura regional dos quais saiu o mais original e o mais vivo de nossa literatura contemporânea” (ÉLIS, 1975, p. 91). Porém, o modernismo brasileiro, por força do invencível lastro cultural, não rompeu com o tradicionalismo, fazendo com que as estruturas expressivas da nossa ficção permanecessem, apesar do novo aproveitamento lingüístico: “a tradição regional contaminou o Modernismo, fazendo persistir nele as estruturas e técnicas romântico-realistas do século anterior”, na opinião de Bernardo Élis (1975, p. 97), que assim explica a existência de uma forte continuidade nesse aspecto.

Mais recentemente, Décio Pignatari (1997-98, p. 99), por sua vez, assinala, pela vertente da inovação, o parentesco de Riobaldo com Macunaíma e Miramar:

A grande novidade da literatura em prosa hispano-americana dos anos 60 e 70 a do famoso boom reside justamente na conjunção da metáfora do significado com a metáfora do significante, ou seja, em termos semióticos, rumo à iconização do verbal (em especial, Rayuela, de Cortázar, e Tres tristes tigres, de Cabrera Infante). Mas Guimarães Rosa os antecedeu nesse processo e lhes é superior. João Miramar, Macunaíma (em parte), Grande sertão, Poesia Concreta, Galáxias, Catatau, Frasca, Panteros e Um copo de cólera assinalam os passos do inovador percurso da prosa narrativa brasileira deste século, a única da América Latina que desautomatizou a escrita neste quase findo e finado século. Quantidade pouca, originalidade muita.

A idéia de continuidade defendida por Bernardo Élis, quanto à permanência de uma visão idealizada do elemento nacional, é compartilhada por Antonio Medina Rodrigues, ao comentar o impasse aberto por João Guimarães Rosa, que,

[...] entre outras façanhas, recuperara o romantismo. Ele também não escapara de uma ontologia nacional, inda que transcendentalizada ou disfarçada. De certa forma, o que Alencar fizera com o índio, respeitadas as diferenças, foi também o que Rosa veio a fazer com a transcendentalização do sertanejo
(RODRIGUES, 1997-98, p. 94).

O autor identifica, então, um dilema: esses imperativos transcendentais não poderiam ser tratados de forma “acaboclada ou verista [...]. A camada fonética, no caso, reclamava a sublimidade da própria representação da vida. Rosa, portanto, equilibrou as duas grandezas. Preservou a simetria” (RODRIGUES, 1997-98, p. 94).

Rodrigues critica essa solução, com uma argumentação que não chega, contudo, a convencer. Ele afirma que tais soluções

[...] não nascem de situações narrativas. Nascem da lírica, que opera por saturação, e que socorre a narrativa com a sensação de presente. [...] Não é que o sertanejo não fale daquele jeito. É que ninguém fala daquele jeito. Quem numa epopéia fala não se preocupa com a fala. [...] Poetizá-la [a linguagem oral] é perverter a ação, fazer de um ato a alegorese de si mesmo
(RODRIGUES, 1997-98, p. 94).

A pergunta que nos colocamos, entre outras possíveis, é: por que estaria o sertanejo, personagem do romance ou do conto, obrigado a falar desse ou daquele jeito? E não é a linguagem oral do cotidiano, muitas vezes, tão poética quanto a mais elaborada construção literária? Rodrigues continua, criticando a precariedade das cadências frasais, cuja acentuação, na sua opinião,

[...] chega a ser inepta. [...] Ora, a dicção rosiana promove um balbuceio regressivo, que às vezes é constrangedor, e mesmo kitsch. Não é fala dialetal. Nem fala humana. Chega a lembrar os vulgares oralismos de Mário de Andrade, a quem Rosa não apreciava. Trata-se de dicção afetivante, que nos tolhe a liberdade
(RODRIGUES, 1997-98, p. 94; grifo nosso).

Difícil imaginar de que liberdade se trata aqui. Afinal, se o leitor se sente, por um motivo ou outro, constrangido ou tolhido, tem a liberdade de fechar o livro, mas o escritor tem também, por sua vez, aquela outra, que lhe é inalienável: a de escrever o que quiser e como quiser – pelo menos desde o grito de liberdade dado pelos modernistas lá nos idos de 22.

Francisco Bosco (2004), em texto dedicado à obra de Caetano Veloso, faz um comentário que vale a pena ser aqui registrado, pois a análise da reação de certo público a determinadas atitudes do artista nos parece aplicável, de certa forma, ao contexto que ora investigamos:

Incômodo: talvez o afeto por excelência que seu discurso costuma provocar. O incômodo é o estado afetivo decorrente do discurso ambíguo, no limite indecidível. O indecidível é, para alguns, insuportável, e assim preferem desqualificá-lo como logro, enganação, ou mero oportunismo político (não tomar uma posição “clara”, unidirecional). Pelo contrário, é preciso chamar a atenção para a dimensão política do indecidível: toda a arrogância, todo o autoritarismo são fundados na crença em uma verdade; a dúvida, benefício do pensamento livre, tem enorme importância política
(BOSCO, 2004, p. 109).

Para o pensamento livre, é fundamental uma palavra livre. O indecidível em Guimarães Rosa parece manifestar-se, sobretudo, na forma da aporia e do paradoxo, enquanto figura de pensamento, por um lado, e na distaxia, no nível da língua, por outro. E, diferentemente de Caetano Veloso, sobre quem pesa a acusação de oportunismo, sobre o autor mineiro pesava a de alienação, conforme veremos de forma mais detalhada a seguir. De qualquer modo, um discurso que não se fecha numa única verdade, que instaura um espaço aberto para a coexistência de opostos, para a liberdade, para a criação levada a seus extremos, tem inegável peso político, ético, filosófico, além de grande importância no âmbito da estética e da criação literária.

Recorde-se ainda o que o próprio Guimarães Rosa, com aguçada percepção dos efeitos e afetos que uma obra como a sua provoca, escreve num dos prefácios de Tutaméia, não sem uma boa dose de ironia:

Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde, quase ofende. Perspica-nos a inércia que soneja em cada canto do espírito, e que se refestela com os bons hábitos estadados. Se é que um não se assuste: saia todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a língua tida e herdada?
(ROSA, 1976, p. 64).

Curiosíssima também a suposição de Rodrigues de que a fala tenha de ser “dialetal”, uma vez que sequer fala humana ela é – idéia incompreensível, mesmo, já que não é crível que o crítico não leve em consideração ou tenha se esquecido de que personagens são “seres de papel”, criações do escritor, pela via do discurso narrativo. Tal exigência de verossimilhança parece-nos completamente deslocada, nos estertores do século XX, que viu surgir e desaparecer “ismos” sem conta.

Finalmente, ao perguntar-se: “No que consistiu a busca dos romancistas após Guimarães Rosa?”, Rodrigues reconhece: “Consistiu em moderar os elementos líricos e diminuir os apelos do transcendental” (RODRIGUES, 1997-98, p. 94). Embora o tom de seu artigo continue a ser o da crítica ácida, como se esses efeitos desmerecessem a obra, ele com isso reafirma também o significado da produção do autor mineiro, como divisor de águas a influenciar embora não no sentido de fazer escola, ou grupo toda a produção literária subseqüente. “Moderar” e “diminuir”, a nosso ver, podem indicar aqui, talvez, que nenhum prosador que a ele se sucedeu pôde alcançar a maestria com que o mineiro de Cordisburgo construiu sua obra.

Sandra Vasconcelos (1997-98, p. 80), por sua vez, afirma que o escritor,

[...] ao mesmo tempo [em] que se vincula à linha regionalista de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto e Valdomiro da Silveira, inscreve-se ainda na tradição dos escritores brasileiros que, como Mário de Andrade, estiveram empenhados numa pesquisa quase de cunho etnográfico em seu projeto de mapear o Brasil.

Mais pertinente ainda, quanto ao ponto de vista desta reflexão, é o fato de que

A mistura programática desses saberes [fruto de variadas experiências de vida e leitura] faz da obra de Rosa um espaço permanente de negociação entre a modernidade urbana e a cultura tradicional-oral das comunidades rurais, ou de articulação entre o espírito de vanguarda e o interesse no regional, o que, superando dualismos e dicotomias, resulta numa mescla de formas cultas e populares, arcaísmos e neologismos e regionalismos e estrangeirismos
(VASCONCELOS, 1997-98, p. 80; grifo nosso).

A autora refere-se, nesse trecho, a um “espírito de vanguarda”, mas indica também que este se articula ao regional, e assinala que houve aí uma superação: reporta o fato de que o crítico uruguaio Ángel Rama, nos anos 70, vê em João Guimarães Rosa um transculturador, “apontando nele a superação da dicotomia entre vanguardismo e regionalismo, graças à conjunção dessas duas linhas de força em sua obra”, em que se faz evidente, sobretudo no Grande sertão: veredas, a mediação entre os aspectos tradicionais da sociedade brasileira e o impulso da modernização (VASCONCELOS, 1997-98, p. 83). Na opinião de Rama, seja no nível da língua, da estruturação literária ou da cosmovisão, trata-se “da construção de um olhar, de uma resposta criadora ao confronto entre o mundo tradicional do sertão e as alterações que vão, gradual mas inexoravelmente, transformando sua face e modos de vida” (RAMA apud VASCONCELOS, 1997-98, p. 84).

Cite-se, ainda que em trecho longo, a opinião de Rui Mourão (1975, p. 200-1) acerca de João Guimarães Rosa no contexto da literatura mineira e nacional:

[...] tudo o que vinha em gestação nesse longo processo de amadurecimento irrompe num texto por excelência açambarcador. A linguagem [...] [é] ao mesmo tempo invenção lingüística e abertura para o mistério mais transcendente, mergulho no mágico e aderência à objetividade documental. A frase foi estourada em seus compartimentos tradicionais para ser restaurada, a partir dos escombros, no plano de uma lógica criadora que parece competir com a própria capacidade de surpresa do real. E é quando compreendemos que o experimentalismo do autor de Grande sertão: veredas não só absorveu tudo aquilo que vinha se desenvolvendo à sua volta, dentro da circunstância mineira, como foi se abeberar no rico filão dos paulistas de 22. Ele realizou a síntese mais vasta do modernismo, considerado desde as suas origens, e a prova disso é que sua obra, até certo ponto, atualizou o movimento como um todo.

Apesar de parecer-nos desnecessário acrescentar qualquer comentário a essas considerações, cumpre ressaltar o experimentalismo na linguagem a frase desmontada, reconstruída, a rivalizar e a entrelaçar-se com o surpreendente da realidade. A relevância dessas considerações, no contexto deste trabalho, repousa em destacar, na caracterização da prosa rosiana, seus traços mais significativos.

Resta saber se o experimentalismo lingüístico posto em prática por Guimarães Rosa pode de alguma forma ser vivenciado pelo leitor da tradução. Sem isso, parece-nos possível dizer, invertendo a equação de Candido, que aquilo que resta acaba correndo o sério risco de ser lido como nativismo, exotismo, documentário social, conteúdo ao qual tampouco faltaria o sentimentalismo, e de onde podem desaparecer os elementos não-realistas e as técnicas anti-naturalistas, que é sobretudo nesses aspectos estilisticamente elaborados da superfície lingüística da narrativa que reside a parcela mais significativa do refinamento técnico característico da fase super-regionalista, aquele que é capaz de transfigurar as regiões e emprestar-lhes caráter universal (CANDIDO, 1989, p. 161), sem o qual, reafirmamos, restaria destacado o referente, o conteúdo regional.

Enfim, deve-se tomar João Guimarães Rosa como moderno, modernista, ou homem de vanguarda? Difícil retomar todos os fios que foram ficando soltos pelo caminho, as pistas que as diferentes leituras puderam levantar. Mas poderíamos destacar, por exemplo, o seguinte: se “mundo moderno” supõe o progresso material, o comércio e a indústria, a obra de Guimarães Rosa trata dele também em alguns momentos que, embora escassos, são emblemáticos e podemos pensar que, assim, a ele se relaciona, ainda que pela via da ausência, pela consciência do atraso do sertão.

Se “mundo moderno” supõe necessariamente o declínio das crenças antigas e uma concepção linear de tempo, podemos observar que o mundo do sertão rosiano, ao contrário, é majoritariamente um mundo arcaico, primitivo, e a presença do tempo mítico ou do tempo da natureza é uma constante sempre registrada por inúmeras análises.

E se o mundo moderno implica o triunfo da razão, este não é o mundo dele, que defende o primado da intuição sobre a “megera cartesiana” – mais de acordo, assim, com o pensamento filosófico que distingue na modernidade o declínio da razão, domesticada pela indústria e pela técnica, ruína do espírito. Como explica Michel Raimond (2000) e exemplifica Mário de Andrade no “Prefácio interessantíssimo” de Paulicéia desvairada, o exterior da vida moderna – automóvel, cinema, asfalto – não é ingrediente necessário a uma arte que se queira moderna. Temas eternos, universais, podem perfeitamente sê-lo: o homem eterno, às voltas com o grande enigma da existência. A modernidade, assim, dá-se a ver não necessariamente de modo direto, enquanto conteúdo temático, mas como atitude, como fatura, como forma, pela linguagem.

Podemos encontrar em Guimarães Rosa atitude correspondente àquela descrita por Antonio Candido, segundo a qual, no romance social das décadas de 30-40, a consciência social leva à procura de soluções formais. Um exemplo, pequeno, mas a nosso ver muito representativo desse aspecto, é encontrado no conto “Conversa de bois”, de Sagarana: trata-se da presença, na fala do mesmo narrador, de diferentes formas de tratamento, cuja distinção fundamental é “Soronho” versus “Seu Soronho”, relacionadas ao regime de focalização variável: embora a voz seja a mesma, a do narrador, a visão varia, correspondendo o tratamento mais formal a trechos em que a focalização corresponde ao menino Tiãozinho, explorado e humilhado, pois ele, sim, mas não o narrador associa o patrão Soronho ao Demo. Assim, por meio de pequenos achados formais como esse, vão se desenhando diferentes concepções de mundo, supera-se a dicotomia Bem versus Mal, e é trazida à tona a questão das relações de poder e dominação.

Recorde-se que, conforme Candido, Guimarães Rosa representa um segundo momento do romance social, em que este se transforma, e o viés regionalista se faz supra-regional, ao transfigurar as regiões e emprestar-lhe caráter universal; não obstante, a dimensão da região e dos problemas sociais que lhe são específicos ainda permanece válida. E nesse percurso, a busca, luta mesmo, por soluções formais que renovem o idioma é incessante e, ao longo da obra do escritor, cada vez mais acirrada.

Podemos entender sua obra como antitradicional, em alguns aspectos; fala-se muito da “revolução rosiana”, que até hoje, vimos, parece encontrar resistência em alguns meios. Ao mesmo tempo, ela é tradicional: reacionário da língua, ele assim se autodefine, querendo com isso diferenciar sua obra da de Joyce, que seria revolucionário. Enfim, não é de se estranhar que se veja em Guimarães Rosa o escritor moderno, mas que não pode ser tomado como de vanguarda, como Calinescu afirma acerca de outros grandes nomes da literatura mundial.

Se não for pelas distintas concepções de tempo linear e irreversível, na visão da vanguarda –, outro fator relevante a colocá-lo em posição alheia à vanguarda, apesar do aspecto de inovação extrema da linguagem, é a idéia de movimento de grupo, de rebanho, própria às vanguardas, mas estranha à situação do escritor mineiro. Embora seja possível localizar correntes que desembocaram na prosa rosiana, filiações e parentescos, João Guimarães Rosa está, com efeito, sozinho no cenário da prosa de ficção no Brasil. Sobre ele, afirma Luiz Fernando Veríssimo (1997-98, p. 76) em texto, aliás, que se intitula “Isolado”: “[...] nosso escritor mais regional e mais universal, mais arcaico e mais moderno, e não deixou nenhum herdeiro reconhecível”. Opostos que não se excluem parecem ser, aliás, muito freqüentes nas considerações de grande parte da crítica dedicada à obra do autor.

Note-se que a abordagem que procura compreender a inserção de Guimarães Rosa no quadro maior da literatura brasileira, ainda que não se faça representar com muita freqüência nas pesquisas dedicadas ao escritor nos dias de hoje, todavia se faz presente e acaba por se aproximar de uma vertente relativamente atual da crítica, a dos estudos pós-coloniais.

No âmbito de nossa pesquisa, as considerações reunidas neste item ganham relevância no equacionamento da questão que nos move, na medida em que localizam a obra de Guimarães Rosa como o ápice do Modernismo entre nós, pela via da combinação entre regionalismo e experimentalismo, pela via da revolução na linguagem. Ademais, permitem entender com mais clareza por que Ángel Rama atribui ao autor o papel de transculturador, idéia que ganha importância se se trata de refletirmos, nesse contexto transcultural, acerca de suas relações com a cultura do outro e, em última análise, acerca da tradução de sua obra. É importante destacar a idéia de que representa papel fundamental, nesse quadro, a possibilidade de expandir o universo de leitores de sua obra para além das fronteiras do país".

---Fonte:
GILCA MACHADO SEIDINGER: "GUIMARÃES ROSA EM TRADUÇÃO: O TEXTO LITERÁRIO E A VERSÃO ALEMÃ DE TUTAMÉIA". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Orientadora: Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel). Araraquara – SP, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.Disponível digitalmente no site: Domínio Público

3 comentários:

  1. Olá, Iba, tudo bem?

    Agradeco a divulgacao do meu trabalho e me coloco à disposicao dos seus leitores.

    Abs,

    Gilca

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    1. PS: A tese foi publicada depois pela Editora UNESP e está disponível (com acréscimos mínimos, como por ex. trechos das traducoes brasileiras do Schopenhauer, publicadas depois de a tese estar concluída) e está disponível em versao eletrônica e também para impressao sob demanda.

      http://www.editoraunesp.com.br/catalogo-detalhe.asp?ctl_id=1394


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    2. Cara Gil,
      Acabei de acessar seu belo trabalho, o qual me encantou! É um privilégio divulgar seu belo trabalho...
      Abraços,

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