O olhar menino: Miguilim



No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Guimarães Rosa

De que serve um palácio [...] se eu nasci na cabana que o sol queimou, se as minhas recordações ficaram na cabana [...]?Nunca mais hei de ver o canto do meu berço, nem o alpendre onde meu pai vinha sentar-se à tarde, enquanto minha mãe fiava [...]
Coelho Neto

“A estória de Miguilim, protagonista da novela Campo Geral, nascido em buraco de mato, lugar chamado Pau-Roxo, na beira do Saririnhém (ROSA, 1984, p. 16), a tradução mais pura da linguagem da natureza do sertão. Usando expressão de Alencar (1919, p. V-XIV), a fase da infância da terra mimetizada na infância do personagem. Confrontado com o mundo dos homens, o mundo infantil de Miguilim é regido pela natureza virgem do Mutum e de toda a transcendência que dela exala. Nesse cenário, o menino é levado a se desligar das coisas terrenas, para uma maior aproximação com a obra de Deus.

Miguilim tinha os olhos embaçados pela miopia, falha por ele desconhecida e somente descoberta no final de uma narrativa paradoxalmente carregada de sinais visuais da Natureza. O fato nos leva ao texto As doze beguinas de Ruysbroeck, sobre o qual Heloisa Vilhena considerou via interessante para se estudar o livro Corpo de baile e particularmente Campo geral :

[...] deveis manter vosso pensamento livre de toda imagem sensível; o entendimento aberto e elevado, com desejo, à verdade eterna; o espírito descoberto diante de Deus como um espelho vivo para receber, com ele, a semelhança eterna o pensamento vazio de imagens o espelho vivo no qual brilha esta luz
(apud ARAUJO, 1996, p. 380).

Apesar da visão pouco nítida, o menino tinha o entendimento aberto e elevado e seus olhos eram como o espelho vivo de Ruysbroeck. Ainda de acordo com o místico,

[q]uando a claridade do sol banha a atmosfera, a beleza e a opulência do universo inteiro tornam-se visíveis, os olhos do homem clareiam e dão o gozo de mil cores diversas. Da mesma forma, quando a simplicidade reina em nós e quando o espírito da inteligência ilumina e banha nosso intelecto possível, tornando-nos capazes de conhecer os sublimes atributos de Deus, fonte de todas as obras que dele emanam
(apud ARAUJO, 1996, p. 425).

Dessa forma, o mundo de Miguilim, regido pelos elementos da Natureza, representa também um início de uma vida natural, que recebeu um primeiro raio de luz da graça de Deus, do sol da vida espiritual (ARAUJO, 1996, p. 380). Assim sendo, em sua simplicidade e inteligência, Miguilim é capaz de perceber com clareza a linguagem das cores, dos sons, dos cheiros e da tatilidade da Natureza do Mutum.

No que se refere aos estímulos sensoriais, sabe-se que estes podem desempenhar papel importante na memória e conseguem transportar as pessoas para situações vividas. Com relação ao olfato, Lévi-Strauss (1986 apud Meyer 1998, p. 127) dá um testemunho interessante, ao relatar que a cor vermelha da madeira do pau-brasil desenhava em sua mente uma imagem aprazível do Brasil. A simples menção do nome Brasil, cheirava a brasido , levando-o a pensar em primeiro lugar, num perfume queimado.

Em sua análise das anotações de Boiada , Meyer (1998, p 127) reconhece que, através do cheiro da macela-do-campo, Guimarães Rosa se recorda da mãe. Repare-se que esse estímulo sensorial está presente no mundo imaginário de Miguilim, pondo a descoberto registros da memória, associados a novas sensações:

Dito começava a dormir de repente, era a mesma coisa que Tomezinho. Miguilim não gostava de pôr os olhos no escuro. Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé. O travesseirinho cheirava bom, cheio de macela-do-campo
(ROSA, 1984, p. 37).

Lembremo-nos do que afirmou Cannabrava (1994, p. 72), a respeito da identificação entre autor e personagem em Campo Geral :

[a] razão dessa vida em comum entre o herói e o escritor provém de que ambos foram feitos do mesmo barro, experimentam as mesmas vivências e reagem sob os mesmos excitantes. Nada mais difícil do que estabelecer critérios que permitam distinguir o autor de sua obra, pois se trata da própria substância de Guimarães Rosa impregnando as páginas de Corpo de baile. Ele está presente em cada frase, expressão ou palavra, imprimindo o cunho de sua personalidade nas formas, situações ou coisas que figuram nesse livro abundante de imagens e de vida.

Muitos outros pormenores do mundo sertanejo registrados em Boiada e repassados pelos olhos de Miguilim irão compor a paisagem de Campo Geral . Nela a combinação da realidade crua com a rapsódia sertaneja empresta [...] uma força singular . Mas, conforme afirmou Cannabrava (1994, p. 73), o gosto pelo descritivo refreia o ímpeto da imaginação alcandorada, obrigando-a a participar dos pequenos acontecimentos e a disciplinar-se através de incursões constantes no domínio da filosofia sensorial.

Em Campo Geral
, como resultado dessa incursão, a realidade apresenta-se impregnada por poemas em miniatura, sobre o futuro de uma biodiversidade, que, a exemplo de outras partes do mundo, poderia ser condenada à extinção.

Para darmos prosseguimento à nossa linha de pensamento, são necessárias algumas considerações. Conforme já observamos, as primeiras ideias preservacionistas surgiram a partir do início do século XIX, na Europa, e para isso contribuíram o avanço da História Natural e o respeito que os naturalistas tinham por áreas selvagens não-transformadas pelo homem (THOMAS apud DIEGUES, 2001, p. 23). Criado nos Estados Unidos, em meados daquele século, o parque Yellowstone simbolizará, nesse sentido, o início de novas ideias relativas à revalorização do mundo natural.

Embora a questão ambiental não represente uma ideia nova nos meios científicos, para Lévêque (1999, p. 9-10),

até aqui, não houve muita preocupação sobre o devir da diversidade biológica, tão longo foi o período em que os recursos vivos pareciam inesgotáveis e que o espaço era suficiente para permitir que os homens ocupassem novas terras sem comprometer, portanto, o futuro das outras espécies. É justamente a tomada de consciência recente sobre uma desaparição maciça e rápida dos meios naturais, sob o efeito conjugado das atividades ligadas ao desenvolvimento e dos meios técnicos cada vez mais possantes, que suscitou a inquietude dos cientistas e das associações de conservação da natureza.

Observa-se que, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, a Natureza que apenas tinha sido tocada levemente pelo homem, torna-se domínio de uma agricultura moderna e de uma indústria expansiva (DIEGUES, 2001, p. 25). De acordo com Murari (2009, p. 20),

[n]a segunda metade do século XIX, o crescimento econômico do mundo capitalista adquiriu uma intensidade até então inédita, sob o impulso da expansão da atividade industrial nos Estados Unidos e nos principais países europeus, e das recentes inovações tecnológicas nos setores de transporte e de comunicação, que possibilitaram a incorporação de novos espaços à dinâmica do capitalismo e a aceleração do ritmo das trocas, com correspondente ampliação dos mercados para a economia industrial em ascensão, de forma a integrar todo o planeta, progressivamente, ao sistema capitalista.

Em sua pesquisa sobre a relação entre homem e Natureza, na produção intelectual brasileira de 1870 a 1920, a autora considerou a Natureza espaço por excelência da imaginação romântica da nacionalidade e que dizia muito a respeito dos impasses da modernização no país como o avesso do incipiente cenário técnico-industrial brasileiro. Para ela,

o modernismo do século XIX e do início do século XX caracterizou-se pela atração e entusiasmo pela modernidade, simultaneamente à sua crítica e sua recusa [...]. A literatura e o pensamento social foram, portanto, marcados por essa ambiguidade fundamental entre o futurismo progressista e uma certa nostalgia que partia em busca de uma poética da ancestralidade e da tradição, dos espaços selvagens ou arruinados pelo tempo.[...] os espaços não civilizados tornaram-se intrinsecamente poéticos e românticos, tanto na lentidão de seu ritmo vital, em sua imemorialidade, seu apego à tradição e ao transcendente, quanto em sua violência.

Portanto, a partir do Romantismo científico até a primeira metade do século XX, a literatura brasileira será ponte de ligação entre passado e futuro, tradições e utopias, em bases alicerçadas por um discurso moderno fundamentado na subjetividade romântica e na razão iluminista . No entanto, largos eram os limites da ciência e da tecnologia e estreitos eram os espaços para a literatura nas décadas seguintes.

A década de 1960 marcará a emergência de uma série de movimentos, entre os quais o ecológico. Como considerou Gonçalves (2001, p. 12), o movimento ecológico teve raízes na Revolução Cultural, ambiente em que se questionam os modos de produção e as condições de vida das popula es. Sob a chancela do movimento ecológico, veremos o desenvolvimento de lutas em torno de questões as mais diversas, tais como a

extinção das espécies, desmatamento, uso de agrotóxicos, urbanização desenfreada, explosão demográfica, poluição do ar e da água, contaminação de alimentos, erosão dos solos, diminuição das terras agricultáveis pela construção de grandes barragens, ameaça nuclear, guerra bacteriológica, corrida armamentista, tecnologias que afirmam a concentração do poder, entre outras.

Conforme a publicação A História da ecologia humana (1999), o chamado Clube de Roma (1960) foi a primeira discussão internacional sobre a adoção de políticas envolvendo aspectos ambientais, com a avaliação dos critérios de uso dos recursos hídricos superficiais que, até então, eram utilizados sem nenhum tipo de regra.

No Brasil, o movimento ecológico irá emergir dez anos mais tarde e em um contexto muito específico: do regime da ditadura com suas amarras para o desenvolvimento de uma política ambientalista. Somente no final da década de 1970, com a anistia, exilados políticos que haviam vivenciado movimentos ambientalistas europeus, retornam ao Brasil trazendo o cabedal necessário para a defesa de teses ecologistas (GONÇALVES, 2001, p. 13-15).

Observa-se que, bem antes disso, Guimarães Rosa empreende uma viagem de reconhecimento e lança dois livros revolucionários: Corpo de baile e Grande sertão: veredas. Do ponto de vista ecológico, no que se refere ao perigo de extinção de espécies animais, Campo geral , sem d vida, exemplar, um poderoso alerta sobre as ameaças, que Guimarães Rosa, com clareza, percebia pesar sobre o futuro do ecossistema do cerrado.

Em 26 de maio de 2003, o Ministério do Meio Ambiente, através da Instrução Normativa nº 003, reconheceu como Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção , aquelas constantes de uma lista de cerca de quatrocentos nomes. O confronto da listagem com Campo geral evidencia a exatidão documental e o selo de autenticidade tão caros a Guimarães Rosa. Entre eles, destacamos os que foram repassados pelo entendimento aberto e elevado , pelo espelho vivo de Miguilim:

Nome científico, autor e data - Nome popular
Priodontes maximus (Kerr, 1792) - Tatu-canastra

Mais que matavam eram os tatus, tanto tatu lá, por tudo. [...] Tão gordotes, tão espertos e estavam assim só para morrer, o povo ia acabar com todos? O tatu correndo sopressado dos cachorros, fazia aquele barulhinho com o casculho dele, as chapas arrepiadas, pobrezinho quase um assovio. Ecô! – os cachorros mascaravam de um demônio.Tatu corria com o rabozinho levantado abre que abria, cavouca o buraco e empruma suas escamas de uma só vez, entrando lá, tão depressa, tão depressa e Miguilim ansiava para ver quando o tatu conseguia fugir a salvo
(ROSA, 1984, p. 27).

Myrmecophaga tridactyla Linnaeus, 1758 - Tamanduá-bandeira

E ali
nem tinha tamanduá nenhum, tamanduá reside nas grotas, gostam de lugar onde tem taboca, tamanduá arranha muito a casca das árvores. A bem que estúrdio ele tamanduá é, tem um ronco que é um arquejo, parece de porco barrão, um arquejo soluçado. Miguilim não tinha medo nenhum, nenhum, não devia de. Miguilim saía do mato, destemido (ROSA, 1984, p. 68).
Depois o Dito aprovou que o tempo-do-ruim era mesmo verdade, quando no dia-de-domingo tamanduá estraçalhou o cachorro Julim. Notícia tão triste, a gente não acreditava [...]. Foi na caçada de anta. Pai não querendo contar: o tamanduá-bandeira se abraçou com Julim, primeiro estapeava com a mão na cara dele, como tamanduá dá sopapos como pessoa. Daí rolaram no chão, aquela unha enorme do tamanduá rasgou a barriga dele, o Julim abraçado sangrando, não desabotoou o abraço [...]. Zerró não pôde ajudar, nem os outros. Pai matou o bandeira, mas teve que pedir a um companheiro caçador que acabasse de matar o Julim, mò de não sofrer. Nem não deviam de ter ido! Não eram cachorros para isso [...] (ROSA, 1984, p. 95-96).

Platyrrrhinus recifinus
(Thomas, 1901) - Morcego

A ver, e de repente, no céu, por cima dos matos, uma coisa preta disforme se estendendo, batia para ele os braços: ia ecar, para ele, Miguilim, algum recado desigual? São os morcegos?. Se fossem só os morcegos?!...
(ROSA, 1984, p. 61-62).

Cebus robustus
(Kuhl, 1820) - Macaco-prego

Ei, Miguilim, isto é p´ra você, você carece de saber das coisas: primeiro, foi num mato, onde eu achei uns macacos dormindo, acordaram e conversaram comigo...(
ROSA, 1984, p. 66).
Capela de macacos! Miguilim entendia, juntou as pernas e baixou a cara, Pai agora o ia matar, por ter perdido o caráter, botado fora o almoço. Mas Pai, se rindo com o outro homem, disse, sem soltura de palavras, sem zanga verdadeira nenhuma: Miguilim, você é minhas vergonhas! Mono macaco pôde mais do que você, eles tomaram a comida de suas mãos... E não quiseram matar macacos nenhum.

Chrysocyon brachyurus
(Illiger, 1815) - Lobo-guará

Sem os cachorros, como que a gente ia poder viver aqui? o pai sempre falava. Eles tomavam conta das criações. Se não, vinham de noite as raposas, gambá, a irarinha muito raivosa, até onça de se tremer, até lobos, lobo guará dos Gerais, que vinham, de manhã deixavam fios de pêlo e catinga deles que os cachorros reconheciam nos esteios da cerca, nas porteiras, uns deles até mijavam sangue.

Puma concolor
(Nelson & Goldman, 1931) - Onça-parda, suçuarana, puma, onça-vermelha

O vaqueiro Jé disse para não deixarem os meninos sair de perto de casa, porque tinha aparecido uma onça muito grande nos matos do Mutum, que era pintada, onça comedeira, que rondeava de noite por muitas veredas; e o rastro dela estava estando em toda parte
(ROSA, 1984, p. 128).

Taoniscus nanus
(Temminck, 1815) - Inhambú-carapé

O Dito sabia ajoelhar melhor? De dentro, para enfeitar os santos do oratório, tinha um colarzinho de ovos de nhambu e pássaro-preto, enfiados com linha, era entremeado, doutro e dum um de nhambu, um de pássaro-preto, depois outro de nhambu, outro de pássaro-preto...; o de pássaro-preto era azul-claro se descorando para verde, o de nhambu era uma cor-de-chocolate clareado...
(ROSA, 1984, p. 31-32).

Leucopternis lacermulata
(Temminck, 1827) - Gavião-pombo-pequeno

Miguilim, por si, passeava. Descia maneiro à estrada do Tipã, via o capim dar flor. Um qualquer dia ia pedir para ir até na Vereda, visitar seo Aristeu. Zerró e Seu-Nome corriam adiante e voltavam, brincando de rastrear o incerto. Um gavião gritava empinho, perto.

Amazona vinacea
(Kuhl, 1820) - Papagaio-de-peito-roxo
Anodorhynchus hyacinthinus (Latham, 1790) - Arara-azul-grande

E o caminhozinho descia, beirava a grota. Põe os olhos pra adiante, Miguilim! Em ia contente, levava um brio, levava destino, se ria do grosso grito dos papagaios voantes, nem esbarrou para merecer uma grande arara azul, pousada comendo grelos de árvore [...]
(ROSA, 1984, p. 68).

Coryphaspiza melanotis
(Temminck, 1822) - Tico-tico-do-campo

E o casal de tico-ticos, o viajadinho repulado que ele vai, nas léguas em três palmos de chão. E o gaturamo, que era de todos o mais menorzim, e que escolhia o espaço de água mais clara [...]. Tudo tão caprichado lindo! Ele Miguilim havia de achar um jeito de sarar com Deus
(ROSA, 1984, p. 47-48).

Celeus torquatus tinnunculus
(Wagler, 1829) - Pica-pau-de-coleira-do-sudeste

Atitava um assovio de perdiz, na borda-do-campo. Voando quem passava era a marreca-cabocla, um pica-pau pensoso, casais de araras. O gaviãozinho, a gavião-pardo do cerrado, o gaviãozinho pintado. A gente sabia esses todos vivendo de ir s embora, se despedidos
(ROSA, 1984, p. 61).

Thoropa lutzi Cochran,
1938 - Rãzinha

O pio das rolinhas mansas, no tarde-cai, o ar manchado de preto. Daí davam as cigarras, e outras. A rã rapa-cuia. O soumbo dos sapos. Aquele lugar do Mutum era triste, era feio. O morro, mato escuro, com todos os maus bichos esperando, para lá essas urubu-guáias.

Oyclopyge roscius iphimedia
(Plötz, 1886) - Borboleta
Arawacus aethesa (Hewitson, 1867) - Borboleta
Nirodia belphegor Westwood, 1851 - Borboleta

Em quando refrescava o dia, o ar dos matos se retrasava bom, trespassada. Algum passarinho cantando: apeou naquele galho. Como um ramo de folha menor se desenha para baixo. As borboletas.

Xylocopa (Diaxylocopa) truxali
Hurd & Moure - Abelha

Seo Aristeu criava em roda de casa a abelha-do-reino e aquelas abelhinhas bravas do mato, ele era a única pessoa capaz dessa inteligência
(ROSA, 1984, p. 45).
E as abelhas, como vão, seo Aristeu? De mel e mel, bem e mal, Nhô Berno, mas sempre elas diligenceiam, me respeitam como rei delas, elas sabem que eu sou o Rei-Bemol!... (ROSA, 1984, p. 65).

Em 1960, o livro O Brasil e suas riquezas, de Waldomiro Potsch obteve sua 30ª.edição alcançando a cifra de quatrocentos mil exemplares publicados, desde o seu lançamento em 1921, pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.

Referindo-se à motivação da primeira publicação, conta o autor que, tendo percorrido a biblioteca do Serviço de Informações do Ministério da Agricultura e as livrarias, convenceu-se de que não existia no país nenhum livro que se ocupasse com os animais, os vegetais e os minerais sob o ponto de vista nacional, e apontasse aos brasileiros os imensos recursos naturais cuja exploração nos daria proeminente posição entre as maiores e as mais poderosas potências do mundo (POTSCH, 1960, p. 17). Considerada obra pioneira da divulgação, em conjunto, dos dados sobre a Natureza brasileira, a leitura p tria ou brasiologia foi levada das escolas até as tropas do Exército. De acordo com elogiosos depoimentos de autoridades e intelectuais, a obra teria passado pelos olhos de milhares de brasileiros necessitados de educação em leitura fácil e atraente (GOMES apud POTSCH, p. 326). Nas primeiras páginas da edição de 1960, o Professor Anísio Teixeira, Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos recomenda que se ofereça o livro a todas as crianças alfabetizadas no Brasil e que o mesmo fosse lido por todos os que desejassem conhecer o extraordinário e surpreendente desenvolvimento do país.

É interessante registrar nota constante na mesma edição, expedida pelo Correio Aéreo Militar, a respeito dos feitos da gloriosa corporação , com relação divulgação do livro desde a sua primeira edição:

Um dos brasileiros de que mais se ufana nosso País, o Brigadeiro Eduardo Gomes, naquele tempo, Coronel do Exército, foi dos primeiros a reconhecer a utilidade do O Brasil e suas riquezas . Criador do Correio Aéreo Militar, mandou adquirir algumas centenas de exemplares e os seus aviões levaram os livros aos pontos mais distantes e insulados do nosso território. Nas pequenas povoações do Brasil central o livro, distribuído pelo Coronel Eduardo Gomes, deve ter andado de mão em mão, fazendo vibrar a alma simples dos nossos compatriotas que esperam a Pátria os chame à comunhão nacional, tirando-os do abandono em que têm eles vivido
(POTSCH, p. 325).

Triste Coronel! Em sua alta patente e potente desconhecimento sobre o interior do Brasil, não sabia que era a leitura dos sinais do céu que fazia vibrar a alma simples de um sertanejo e não os duvidosos papéis trazidos por seus aviões pelos céus.

Melancólico Coronel! É provável que não tenha conhecido Miguilim, que sob a inspiração da Natureza, já possuía a alma em constante vibração. Se tivesse o Coronel distribuído nas cidades o brado poético de Guimarães Rosa, certamente o Brasil não teria perdido, no último século, tantas espécies nativas de sua fauna e flora.

Há de se ressaltar que a Comissão Rondon , projeto inédito de colonização do interior do Mato Grosso ao Amazonas, que se intensificou a partir de 1900, tinha como objetivo a tomada de posse do sertão e a promoção da ocupação do território explorado ou o aproveitamento das riquezas nele descobertas (MURARI, 2009, p. 305). Conforme Murari (p. 304), para seu comandante, engenheiro militar e positivista ortodoxo, fazia-se mister quebrar o encanto dos sertões:

Desbravar esses sertões, torná-los produtivos, submetê-los à nossa atividade, aproximá-los de nós, ligar os extremos por eles interceptados, aproveitar a sua feracidade e as suas riquezas, estender até os mais recôndidos confins dessa terra enorme, a ação civilizadora do homem eis a elevada meta de uma política sadia e diligente [...]
(RONDON 1916, apud MURARI, 2009, p. 305).

Conforme ressaltou Murari (2009, p. 314), no contexto brasileiro da época, a ação transformadora do homem expressou-se frequentemente em depredação do patrimônio natural e sacrifícios humanos . Mas a visão realista de alguns intelectuais brasileiros ironizariam os utopistas do progresso, como o fez Augusto de Lima apontando o contraste entre os vislumbres transformadores, desprovidos de base material e política, e a passividade da natureza, que seguia seu ritmo, indiferente às pretensões humanas, ainda que suscetível à sua for a destruidora (MURARI, 2009, p. 314).

Seguindo o ritmo da Natureza, Guimarães Rosa continuará sua viagem ficcional pela paisagem do sertão, ultrapassando o Mutum de Miguilim e indo ao encontro de outros olhares e outras paisagens Gerais : o Pinhém de Lélio e Lina, o Ão e o Andrequicé de Doralda e Soropita, o Buriti Bom de Iô Liodoro."

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Fonte:
TERESINHA GEMA LINS BRANDÃO CHAVES: "Fala Natureza! Teu intérprete te escuta! (Literatura e meio ambiente em Guimarães Rosa)". (Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do Título de Doutora em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Marli de Oliveira Fantini Scarpelli). São Paulo, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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