Papel do ceticismo na revisão das crenças



Apresentação do ceticismo em Descartes

Papel do ceticismo na revisão das crenças
“A Primeira Meditação é um texto que apresenta uma elaboração sistemática e convincente do ceticismo, que, no esquema proposto por Descartes, segue deliberadamente a intenção de desfazer as antigas opiniões e começar tudo de novo, desde os fundamentos, para uma nova constituição do “edifício do saber”. Descartes não deixa dúvida quanto ao papel do ceticismo na tarefa de revisão das antigas opiniões. Era preciso submeter à dúvida cética todo o antigo conhecimento, pois a certeza e a verdade clara e distinta somente poderiam ser estabelecidas mediante a resistência e à superação da dúvida, só então, finalmente, chegaríamos ao conhecimento de uma verdade efetivamente indubitável.

Descartes assimila e utiliza instrumentalmente o arsenal cético para fazê-lo de algum modo voltar-se contra o próprio ceticismo, minando nossas certezas comuns para ‘limpar o terreno’ e permitir que a certeza do Cogito venha a servir de fundamento para uma filosofia positiva e sistemática. Inaugurando um estilo de filosofar (...) que requer, como condição prévia para a constituição do saber filosófico, uma tábula rasa de nossas certezas comuns, em geral – e de nossas certezas sobre o mundo exterior, em particular.
(PORCHAT. 1993, p. 124).

Esse processo de revisão do conhecimento possível graças à utilização dos argumentos céticos é executado com tanta radicalidade que, para Descartes, “o menor motivo de dúvida que aí encontrar bastará para fazer-me rejeitar todas” as crenças. [2000 (1641), p. 30]. Parece evidente, na argumentação cartesiana, a exigência de uma ruptura crítica em relação às filosofias anteriores que fomentavam as estruturas do conhecimento até então, a saber, a filosofia escolástica que emerge do aristotelismo predominante no período medieval. No entanto, a grande inovação de Descartes para essa realização fica por conta do acréscimo da dúvida metódica, levada aqui a seu extremo. Fazendo predominar em sua filosofia o alcance teórico e hipotético da argumentação em detrimento de qualquer pretensão prática.

Papel do ceticismo na fundamentação de verdades
Esse uso metódico da dúvida para a revisão das crenças acaba por revelar papel do ceticismo na fundamentação de verdades na filosofia cartesiana, por mais contraditório que isso possa nos parecer. O ceticismo passou, com Descartes, a ocupar um lugar eminentemente metodológico e, por conseguinte, privilegiado na filosofia moderna. Transformando-se em terreno comum para as filosofias dogmáticas, uma vez que passou a ser entendido como uma ferramenta necessária à preparação de uma nova prática filosófica.

A “suspensão metodológica de juízo sobre o mundo exterior” tornou-se algo como o axioma básico e indiscutível da metodologia filosófica (...). E, desse modo, o ceticismo metodológico se fez um paradigma onipresente, por vezes um paradigma oculto, mas pelo menos pressuposto sempre
. (PORCHAT. 1993, p. 126).

A suposta verdade do cogito cartesiano é o melhor exemplo dos resultados obtidos com esse uso meramente instrumental do ceticismo. O sistema racionalista cartesiano encontra no fim do processo de radicalização da dúvida cética o cogito como verdade clara, distinta e indubitável da razão. “O próprio Descartes, aliás, descreveu-se como o primeiro dos homens a derrubar as dúvidas céticas.” (1993, p. 124). Entretanto, sua estratégia foi aquela de retomar a velha argumentação cética baseada nas ilusões dos sentidos e dos sonhos, contra nossa pretensão de conhecer a verdade sobre as coisas exteriores. Todavia, para chegar a esse objetivo, seria necessário exagerar a dúvida cética até seu extremo limite. Notemos a seguinte conclusão de Descartes na segunda meditação:

De sorte que, após ter pensado bem nisso e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, é preciso enfim concluir e ter por constante que esta proposição, Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito.
[2000 (1641), p. 43].

Depois de “ter cuidadosamente examinado” o percurso da dúvida cética, como aliás veremos mais adiante, Descartes pode finalmente pronunciar a primeira verdade indubitável, que deveria ser suficientemente firme, a tal ponto que poderia abrigar um método correto e seguro para o conhecimento. Essa verdade, no entanto, vem à tona com a retomada da prática cética de suspensão do juízo, realizada por Descartes ao aplicar aparentemente a dúvida universal e radical, “fazendo-a incidir expressamente sobre a própria existência das coisas exteriores; para finalmente manifestar a impotência do ceticismo ante a evidência irresistível do Cogito.” (1993, p. 124). Podemos, assim, explicitar o argumento utilizado por Descartes para superar a dúvida cética: se duvido, penso; e se penso, existo. O que vemos aqui é a própria razão produzindo uma verdade sobre a qual não podemos duvidar. Ou seja, um raciocínio puro, um procedimento racional claro, um pensamento lógico, é o que constituiria a força da argumentação cartesiana. Se a razão mostra-se capaz de produzir uma verdade certa e indubitável, ela mesma torna-se o fundamento necessário para o desenvolvimento de outras verdades. Só após a descoberta do cogito e de um mundo interior é que se poderá falar propriamente da questão da existência do mundo exterior. Para Descartes, percebe-se a verdade do eu pensante no momento em que a dúvida cética encontra seu limite numa evidência racional que emerge do próprio ato de duvidar. Vejamos como Descartes utiliza os principais argumentos da tradição cética para o desenvolvimento do processo metodológico ao qual ele submete a dúvida.”

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Fonte:
Joelson Pereira de Sousa: “O PAPEL DO PIRRONISMO NOS “PENSÉES” DE PASCAL: Um estudo acerca da leitura pascaliana do pirronismo em Descartes e Montaigne”. (Dissertação apresentada como parte das exigências para a obtenção do título de mestre, pela Universidade São Judas Tadeu - Programa de Pós-graduação em Filosofia. Orientador: prof. dr. Plínio Junqueira Smith). São Paulo, 2007.

Nota
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