A Mente na Doutrina Cartesiana



“É no Discurso do Método, obra publicada em 1637, que Descartes trata pela primeira vez a respeito da alma – assunto que será retomado na obra Meditações, de 1641, e o faz tendo percorrido um caminho argumentativo que, resumidamente, é o seguinte: convencido de que os ensinamentos que havia recebido da tradição filosófica até então não poderiam ser tomados como seguros, visto terem disseminado falsas opiniões como se fossem verdadeiras, Descartes propõe colocar sob dúvida todas as crenças, inclusive a de que havia um mundo que o cercava, de que tinha um corpo e, enfim, até mesmo das coisas que tinha por mais certas e verdadeiras. O método da dúvida se estende primeiramente aos sentidos por sua história de enganos perceptivos. Por exemplo: quando vemos uma torre distante, ela nos parece redonda, mas quando chegamos perto, a percebemos quadrada. Por uma série de outras situações em que os sentidos nos enganaram, a doutrina cartesiana coloca a questão: o que os sentidos nos informam sobre o mundo pode ser confiável? Aquilo que uma vez nos enganou deve ser colocado em dúvida. Descartes está questionando a percepção sensível como fundamento do conhecimento seguro. Além disso, o método levanta o questionamento sobre a impossibilidade de distinguir o sono da vigília, visto que muitas vezes nos parece difícil discernir quando estamos dormindo e quando estamos acordados. Será que o que acreditamos ver, existe realmente, ou é apenas uma imagem do meu sonho? Escreve Descartes:

[...] Porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos.
(DESCARTES, 1987b [1637], p.46).

A dúvida, para além de radical, no sentido de que atinge todas as certezas antigas, atinge um grau extremo ou hiperbólico, ou seja, a dúvida é estendida a todas as representações, inclusive as matemáticas. Da matemática, não temos as mesmas razões de duvidar como temos dos sentidos, que ela possui um grau de certeza maior do que as percepções sensíveis. As representações matemáticas se limitam aos domínios da razão, não necessitando ser adequadas à realidade exterior ao pensamento. Os objetos matemáticos não são percebidos sensivelmente, mas apenas intelectualmente, daí seu maior grau de certeza racional. Desta forma, somente a hipótese metafísica de um deus enganador pode colocar em dúvida o conhecimento engendrado pela matemática, pois naturalmente não temos motivos para duvidar das suas certezas. Esta hipótese consiste em supor que haja um gênio maligno capaz de nos enganar o todo tempo, fazendo-nos crer numa suposta verdade das representações matemáticas, quando, de fato, elas não teriam certeza alguma. Isto significa supor que haveria um deus capaz de nos fazer crer, por exemplo, que 2 + 2 = 4, quando na verdade 2 + 2 = 5. Esta hipótese aparece na “II Meditação”:

Suporei, pois, que não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse sentimento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo
. (DESCARTES, 1988c [1641], p.20-21).

Mas a radicalização e a generalização do método da dúvida a todas as coisas não tinha por objetivo provar que não poderíamos adquirir nenhum conhecimento sobre o que quer que fosse, mas, pelo contrário, almejava encontrar algo que pudesse escapar da dúvida, que fosse, portanto, indubitável. A procura cartesiana era, deste modo, por algo absolutamente certo, capaz de fundar o verdadeiro conhecimento.

O exercício da dúvida permite suspender a crença sobre todas as coisas, mas algo parece resistir: o pensamento. Neste caminho, Descartes percebe que o pensamento irrompe como um fato diante do qual a dúvida tem que se interromper: por mais que duvidasse de todas as coisas, não havia dúvida de que estava duvidando, ou seja, pensando. Como afirma Silva (1993, p.51-54), quando eu que duvido me dou conta de que a dúvida é um determinado exercício do pensamento, percebo ao mesmo tempo que a dúvida atingiu o seu ponto-limite. O limite da dúvida é a descoberta do pensamento. Mais do que isso, enquanto assim procedo, eu mesmo, enquanto pensamento, me afirmo como tal no próprio exercício da dúvida. Se, neste processo não há dúvida de que a dúvida existe, então o pensamento, do qual a dúvida é uma modalidade, existe, e eu mesmo, que duvido que penso, portanto existo necessariamente, ao menos como ser pensante. Ao encontrarmos o pensamento, descobrimos que somos, que existimos no ato de pensar, pois para pensar, é preciso existir. Descobrimo-nos existindo enquanto pensamos; descobrimo-nos no ato do eu penso. O pensamento revela a existência daquele que pensa no ato de pensar. É neste sentido que Descartes afirma: “Penso, logo existo” (cogito ergo sum), o Cogito, como é freqüentemente conhecido. Na “II Meditação”, ele diz:

Eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador muito poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito
. (DESCARTES, 1988c [1641], p.24).

Desta forma, pensando, descobrimos que somos. “Penso, logo existo” pode ser entendido como “sou enquanto penso”. Cottingham sugere que entendamos: “eu estou pensando, portanto eu existo”. (COTTINGHAM, 1999, p.24). O cogito é a intuição primeira de que eu sou, pois o próprio fato de duvidar de minha existência confirma que, “enquanto realizo tais reflexões, eu, de fato, existo”. (COTTINGHAM, 1995, p.38). O sujeito, enquanto pensa, não pode separar do seu ato de pensar a constatação imediata de que é sujeito deste ato. (GUIMARÃES, 2003, p. 37). Porém, isto apenas consiste em dizer que “eu sou, eu existo enquanto estou pensando”; esta intuição afirma que eu sou, mas não ainda o que eu sou.

Descartes põe-se, então, a questionar sobre o que é esse “eu”, uma vez que está certo de que é alguma coisa. Um animal racional? Ele recusa como resposta, pois, será necessário saber o que é animal e o que é racional, e assim cairá numa infinita e embaraçosa pesquisa sobre outras questões, distanciando-se da pergunta “o que eu sou enquanto estou pensando?”. A seguir, considera a idéia de ser provido de um corpo, mas a recusa também, já que a hipótese de ter um corpo foi anteriormente posta em dúvida. Considerando a alma, relembra a noção comumente difundida da sua época de ser algo extremamente sutil e raro, como um vento, uma flama ou um ar muito tênue, infiltrado no corpo. Rejeita também esta noção, posto que também podemos duvidar da sua existência concebida dessa forma. (DESCARTES, 1988c [1641], p.24-25). O “eu”, portanto, não diz respeito a nada material, posto que, supondo não ter um corpo, nem existir quaisquer coisas no mundo, ainda assim, não deixo de estar seguro de ser alguma coisa. Neste sentido, “eu” não significa o homem concreto que cotidianamente vivenciamos; nem mesmo diz respeito ao ser humano como um todo que Descartes mais tarde irá apresentar. E o que é esse “eu”, então?

Examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria qualquer razão de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material
. (DESCARTES, 1987b [1637], p.46- 47).

Segundo a perspectiva cartesiana, a existência do eu pensante é indubitável, mesmo que tudo o mais não exista. A respeito disso, Silva comenta: pode ser que tenhamos outras propriedades, como ser extenso, por exemplo. Ainda não o sabemos. temos a certeza de que o pensamento existe e não é corporal, pois vemos que o corpo não é necessário para pensar, ou seja, mesmo que o corpo não exista, ainda assim o pensamento pode ser atingido com certeza. (SILVA, 1993, p.55). Reafirma Descartes nas Meditações: “Nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão. [...] Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa.” (DESCARTES, 1988c [1641], p.26). Portanto, “eu” significa uma coisa que pensa. O “eu”, ou seja, o “eu pensante” é a alma, a mente humana tão somente. Na doutrina cartesiana, os termos “alma” (lat. animus), “espírito” (lat. spiritus) e “mente” (lat. mens) são considerados sinônimos5; são designações para a res cogitans a coisa pensante. O que Descartes tinha em consideração a respeito da coisa pensante era o âmbito da atividade mental consciente (COTTINGHAM 1986, p.151). Neste contexto, a alma é uma substância especialmente criada e colocada em nós por Deus, e, portanto, não é algo produzido ou uma função de qualquer parte física de nosso corpo, nem mesmo do cérebro. “Alma” é o termo para a substância cuja natureza consiste apenas em pensar, como afirma Descartes. (1987b [1641], p.47).

Na perspectiva cartesiana, uma substância é “uma coisa que existe de tal maneira que tem necessidade de si própria para existir”. (DESCARTES, [s/d] [1647], p.45). Neste sentido, somente Deus pode ser considerado uma substância (a res infinita), pois somente ele não necessita de nada para ser ou existir. Assim, Deus é a substância por excelência. Contudo, Descartes admite um sentido secundário para substância: aquilo que não necessita de qualquer outra coisa para existir, a não ser Deus. Deste modo, dentre as coisas criadas pela intervenção divina, a alma (res cogitans) e o corpo (res extensa) também são substâncias. De acordo com Landim, substância é uma entidade que permanece idêntica a si mesma na diversidade de suas afecções e atribuições, e ela é percebida através de um atributo que constitui a sua essência. (LANDIM, 1992, p.42-43). Assim, para que saibamos da existência de uma substância, é necessário determinar algum atributo, propriedade ou qualidade. Descoberto um atributo, podemos concluir que ele é o atributo de alguma substância, e que tal substância existe, pois ao nada não é possível atribuir qualquer coisa. (DESCARTES, [s/d] [1647], p.46). E o pensamento, como vimos, é o atributo que primeiramente encontramos, e ele deve pertencer a alguma substância.

Se bem que cada atributo seja suficiente para conhecermos a substância, no entanto em cada uma um atributo que constitui a sua natureza e a sua essência e do qual todos os outros atributos dependem. [...] Todas as propriedades que encontramos na coisa pensante são diferentes maneiras de pensar.
(DESCARTES, [s/d] [1647], p.46).

A distinção que fazemos entre substância e atributo é, entretanto, apenas uma distinção de razão, ou seja, uma distinção por via do pensamento: distinguimos conceitualmente o pensamento e a substância, mas as substâncias não podem existir separadas de seus atributos, pois isto seria afirmar a existência de um atributo sem uma substância à qual ele é uma propriedade atribuída. Assim, embora se faça uma abstração mental, uma substância não pode ser conhecida sem seu atributo definidor. (DESCARTES, [s/d] [1647], p.50). “Somente o pensamento não pode ser separado de mim”, diz Descartes nas Meditações. A res cogitans, como afirma a doutrina cartesiana, é a coisa cuja essência consiste apenas em pensar. A alma é, portanto, a substância cujo atributo principal é o pensamento, isto é, segundo o cartesianismo, pensar é a característica definidora da mente.

Toda coisa em que reside imediatamente como em seu sujeito, ou pela qual existe algo que concebemos, isto é, qualquer propriedade, qualidade, ou atributo, de que temos em nós real idéia, chama-se substância. [...] A substância, em que reside imediatamente o pensamento, é aqui chamada espírito.
(DESCARTES, 1988d [1641], p.102).

Descartes segue em sua investigação sobre a coisa pensante, o que lhe permite fazer um inventário dos modos do pensamento. Ele se pergunta:

Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente.[...] Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não é necessário nada acrescentar aqui para explicá-lo. E tenho também certamente o poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer (como supus anteriormente) que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento. Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar
. (DESCARTES, 1988c [1641], p.27).

Duvidar, conceber, afirmar, negar, desejar, imaginar e sentir são, portanto, formas de pensar. São os vários modos em que o pensamento pode se apresentar à alma. Neste sentido, vemos que nem todas as formas de pensamento são necessariamente atividades mentais intelectivas. Por exemplo, imaginar e sentir são maneiras de pensar que têm uma relação com algo heterogêneo à mente, já que a imaginação e a sensação não produzem idéias a partir da própria alma. Mesmo assim, todas essas operações são pensamentos, na medida em que são percebidas pelo sujeito pensante. Sentir é um pensamento, pois, para Descartes, quando ouvimos um ruído, ou sentimos frio, o que temos é uma percepção do som, uma sensação de frio, e estas são experiências ou eventos que não têm existência fora da mente. Por pensamento, a doutrina cartesiana define: “Tudo o que está de tal modo em nós que somos imediatamente seus conhecedores. Assim, todas as operações da vontade, do entendimento, da imaginação e dos sentidos são pensamentos.” (DESCARTES, 1988d [1641], p.101).

Desta forma, no sistema cartesiano, “pensamento” pode ser compreendido basicamente em dois sentidos: como atributo definidor da res cogitans e como ato de consciência. No sentido de atributo principal, pensamento significa a característica sem a qual a substância pensante não pode ser concebida. Como vimos, o pensamento é o atributo definidor da coisa pensante, confundindo-se com a natureza da própria coisa que pensa, pois pensar constitui a natureza do sujeito pensante. Podemos dizer que, como atributo principal, o pensamento é a qualidade necessária à substância chamada mente (lat. mens). Nesta perspectiva, “pensamento” é a noção comum que abarca todos os atos mentais, pois unifica a diversidade dos modos da mente como modos de pensar.

Este sentido de “pensamento” – aquele que fora encontrado no processo da dúvida – é uma noção evidente por si mesma, ou seja, a descoberta do pensamento é feita intuitivamente. Isto significa que não é por um desencadeamento de raciocínios que concluímos a existência do pensamento. Trata-se, não de uma conclusão, mas de uma intuição que fora apreendida pelo sujeito pensante. É a percepção imediata de uma noção, e, segundo Descartes, toda tentativa de explicá-la apenas a tornaria mais obscuras. (SILVA, 1993, p.52). Intuição é “o conceito da mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos”. (DESCARTES, 1985 [1628], p.20). Desta forma, o pensamento, enquanto atributo, é uma noção fruto da luz da razão, isto é, é apreendido diretamente pelo intelecto. Pensamento, neste sentido, diz respeito a uma intelecção pura. Portanto, o sentimento não pode ser definidor da coisa pensante, isto é, não é o atributo principal da res cogitans, pois mesmo sendo uma maneira de pensar, ele não diz respeito a uma intelecção pura. Sentimentos, sensações, imaginações, embora se beneficiem da certeza do pensamento, não são intuídos diretamente pela razão. Veremos nos próximos capítulos que estes modos de pensar dependem do corpo, e, portanto, não são concebidos claramente pelo entendimento, pois todas as percepções de gênese corporal são obscuras do ponto de vista do entendimento. Elas podem sempre ser postas em dúvida no que diz respeito ao conhecimento que se pode ter a partir delas. O que define a coisa pensante é pensamento enquanto atributo, não enquanto modo, pois os modos não acrescentam algo àquilo que já os engloba: o próprio pensamento. Como afirma Kenny: “Pensamento é a essência da mente no sentido de que cada mente deve sempre estar pensando algum pensamento ou outro, mas pensamentos particulares vêm e vão e nenhum deles é essencial.” (KENNY, 1995, p.67, tradução nossa). Não são os modos de pensar em particular que definem a natureza da alma, mas o pensamento enquanto aquilo que é condição de todos os atos da mente. Ou seja, “as faculdades de pensar e de sentir não podem ser concebidas sem uma substância inteligente à qual estejam ligadas, pois elas encerram alguma espécie de intelecção”, afirma Descartes. (1988c [1641], p.66). Em outras palavras, a imaginação e o sentimento dependem da coisa pensante pois envolvem a noção de pensamento. Isto significa que o sentir, por exemplo, não pode existir separado da res cogitans e, sendo a essência da coisa pensante o pensamento, tudo o que existe na alma, existe como modo do pensamento. Segundo Kenny:

Pensamentos particulares são propriedades variáveis da substância que é a mente. A mente deve sempre estar pensando; mas ela não precisa sempre estar julgando ou desejando ou imaginando. Pensamento é a propriedade principal da substância mental, a qual constitui sua natureza e essência e pela qual todas a outras dependem.
(KENNY, 1995, p.70, tradução nossa).

Em termos mais cartesianos, “os modos da res cogitans não podem ser, nem ser concebidos, sem o seu atributo principal, enquanto o atributo principal independe de cada um dos seus modos.” (LANDIM, 1992, p.38). Assim, mesmo o sentir é inteligido, é percebido como ato de consciência, pois todos os modos do pensamento têm a característica comum de serem conteúdos da consciência. O pensamento é, portanto, a razão comum que liga todos os modos da alma. Como diz Descartes:

Existem outros atos que nós chamamos de pensamentos como entender, querer, imaginar ou sentir, etc., e todos concordam entre si pela razão comum [de serem atos] de pensamento, de percepção ou de consciência, e a substância na qual residem se chama coisa pensante ou espiritual.
(DESCARTES, 1996b [1641], p.176).

Segundo Landim, os termos “pensamento” e “consciência” são freqüentemente usados como sinônimos na obra cartesiana. Os atos de pensamento são unificados pelo fato de todos envolverem uma intelecção ou percepção, isto é, pelo fato de serem conscientes. Esta é a “razão comum” que os unifica. (LANDIM, 1992, p.50). A imediaticidade dos conteúdos da mente diz respeito ao estado consciente destes conteúdos – “tudo o que está de tal modo em nós que somos imediatamente seus conhecedores” 8. (DESCARTES, 1988d [1641], p.101). Ou seja, o pensamento é imediatamente dado a conhecer para a mente, isto é, é consciente. Como afirma Guimarães: “... Pensamento e consciência estão intimamente relacionados. Esta relação se à medida que podemos afirmar, de todo ato de pensamento, que é um ato de consciência. Isto é assim porque pensamento é tudo aquilo do qual temos consciência de forma imediata.” (GUIMARÃES, 2003, p.53).

Como ato de consciência, o pensamento significa o conjunto de atividades mentais, envolvendo, portanto, diferentes formas de pensamento. Quando Descartes se pergunta: “O que é uma coisa que pensa?”, sua resposta explicita diferentes tipos de atos da mente: “É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente.” (DESCARTES, 1988c [1641], p.27). Os diferentes modos de pensar são as diferentes funções da coisa pensante. Assim, do ponto de vista da diversidade dos atos de consciência, existem diferentes modos do pensamento. As várias modificações do pensamento são consideradas “modos” de pensar. De acordo com Silva:

Podemos afirmar que o pensamento nada mais é que o conjunto dos conteúdos da consciência – e é requisito essencial o estado consciente desses conteúdos. Não existe, portanto, uma distinção entre os fatos internos, pela qual uns seriam pensamentos e outros não. [...] Não é preciso fazer uma distinção em termos de gênero entre o pensamento e o sentimento. [...] Como estado de consciência, interessa a Descartes ver nesse estado primeiramente a consciência do sentimento, o que equivale a pensamento.
(SILVA, 1993, p.53).

Desta forma, os modos do pensamento não constituem faculdades autônomas. Sentir e imaginar dizem respeito a outras maneiras de representar, mas envolvem sempre alguma intelecção ou percepção; estão ligadas à coisa pensante e àquilo que às engloba: o próprio pensamento. Assim, mesmo com o inventário dos modos de pensar, permanecemos com o que tínhamos no início, sem que a unidade do pensamento seja afetada, pois o pensamento é a condição de qualquer um de seus modos representativos. (SILVA, 1993, p.56). Assim, sentir e imaginar são antes de tudo atos do pensamento ou atos de consciência. Sentir, como veremos no próximo capítulo, não é ter propriamente uma afecção ou movimentos do corpo; é perceber ou ter consciência de uma afecção. Quando ouvimos um ruído, ou sentimos frio, o que temos é uma percepção do som, uma sensação de frio, e isto nada mais é do que uma forma de pensar. Isto é, mesmo que não haja quaisquer coisas no mundo, ainda assim imaginar e sentir existem como modos do pensamento.

Tenho certamente o poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer [...] que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento. [Ver, ouvir, me aquecer são maneiras de pensar, pois] é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar.
(DESCARTES, 1988c [1641], p.27).

Segundo Descartes, os modos do pensamento podem ser agrupados em dois gêneros: as percepções do entendimento e a ações da vontade, como ele escreve nos Princípios da Filosofia:

Todas as maneiras de pensar que experimentamos em nós podem reduzir-se a duas gerais: uma consiste em apreender pelo entendimento e a outra em determinar-se pela vontade. Assim, sentir, imaginar e mesmo conceber coisas puramente inteligíveis são formas diferentes de apreender; mas desejar, ter aversão, confirmar, negar e duvidar são formas diferentes de querer.
(DESCARTES, [s/d] [1647], p.39).

As percepções podem ser, portanto: puramente intelectuais, sensíveis e imaginativas. Todas essas faculdades produzem idéias, sendo que a característica das idéias puramente inteligíveis é a clareza e distinção, uma vez que são apreendidas imediatamente pela luz da razão. as idéias produzidas pela sensibilidade e imaginação têm por característica a obscuridade e confusão, visto que na produção de idéias envolvem o corpo, ou seja, não são apreendidas ou percebidas no domínio puro do intelecto. Os modos da vontade, além de produzirem idéias, envolvem ações, juízos sobre as percepções de modo geral. De acordo com Kenny, “a vontade é a habilidade de aceitar ou rejeitar, e em particular a habilidade de afirmar e negar, de fazer juízos positivos e negativos.” (KENNY, 1995, p.173-174, tradução nossa). Podemos dizer, como elucida Guimarães, que pelo entendimento percebemos representações; pela vontade emitimos juízos sobre as representações, e não somente sobre as percepções que constituem representações intelectivas, como também sobre as percepções que são dadas a perceber pela imaginação e pelos sentidos. (GUIMARÃES, 2003, p.40). Deste modo, a mente, ou a alma, possui a capacidade de ter todos os tipos de pensamento, incluindo as emoções e percepções sensíveis.

A compreensão dos modos de pensamento, bem como do pensamento enquanto a característica definidora do espírito, levam-nos a conhecer a estrutura e a natureza da alma. Do ponto de vista cartesiano, tudo o que diz respeito a nossa mente são capacidades e processos que não são de natureza física. Ou seja, a mente e os pensamentos, sentimentos, sensações, desejos, intenções e imaginações são eventos de natureza imaterial e por isso não ocupam lugar no espaço; por sua imaterialidade, não podem ser mensurados ou quantificados e, portanto, não podem ser explicados da mesma forma que explicamos os eventos no mundo físico. O pensamento é o único atributo que não pode ser separado do espírito, muito embora tudo o que diga respeito às coisas físicas possa ser colocado em dúvida. Isto mostra que a natureza do pensamento é livre de qualquer constituição física, material. Como o pensamento pode ser descoberto sem que a existência do corpo seja provada ou conhecida, segue-se que a natureza do espírito é exclusiva de todo elemento corporal.

Contudo, a imaginação e a sensibilidade parecem nos indicar uma ligação ao físico; parecem mostrar que seus conteúdos, ou seja, suas idéias, sejam provocadas por algo diferente do próprio espírito. Não estariam elas atreladas ao corpo para serem capazes de exercer suas funções?

De fato, a doutrina cartesiana virá definir a imaginação como a “aplicação da faculdade que conhece o corpo que lhe é intimamente presente”. (DESCARTES, 1988c [1641], p.61). Reconhece-se isto quando consideramos como é realizada a ação de imaginar: quando imaginamos criamos uma figura presente aos olhos da mente, o que não é preciso na pura intelecção ou concepção. Um exemplo de Descartes para ilustrar a diferença entre imaginação e intelecção é o de um triângulo: quando apenas o concebemos, pensamos nele como uma figura composta por três linhas. Quando o imaginamos, consideramos essas três linhas como presentes pela aplicação interior do espírito. Vemos o triângulo presente aos olhos da alma. A imaginação forma imagens, elabora figuras e pode aplicar a atenção a cada um dos lados do triângulo. Quando concebemos, não precisamos do auxílio da imaginação para pensar a figura. Um quiliógono (uma figura de mil lados), um outro exemplo de Descartes, pode ser concebido, mas não podemos imaginar os mil lados, da mesma forma como imaginamos os lados do triângulo. Assim, segundo o raciocínio cartesiano, para imaginar é preciso uma particular contenção do espírito, da qual não necessitamos para apenas conceber, e isto mostra a diferença entre a imaginação e a concepção pura. E porque podemos conceber sem imaginar, segue-se que a imaginação não é uma faculdade necessária à natureza do espírito, pois, afirma a doutrina cartesiana, “ainda que [eu, isto é, a alma] não a possuísse, de modo algum está fora de dúvida que eu permaneceria sempre o mesmo que sou atualmente: donde parece que ela [a imaginação] depende de algo que difere de meu espírito”. (DESCARTES, 1988c [1641], p.62).

Quanto à sensibilidade, Descartes também reconhece que “uma certa faculdade passiva de sentir, isto é, de receber e conhecer as idéias das coisas sensíveis” (DESCARTES, 1988c [1641], p.67), pois, várias idéias se apresentam a nosso espírito sem nosso consentimento e mesmo mal grado nosso. Como exemplifica a doutrina cartesiana, nossas afecções e apetites se apresentam à alma mesmo quando não as desejamos: sentimos dor mesmo sem escolhermos; sentimos fome embora não desejemos; sentimos calor do fogo quando nos aproximamos dele; enfim, todas essas idéias – já que sentir é uma forma de pensar – aparecem à mente, mesmo contra nossa vontade. Elas indicam, portanto, algo heterogêneo ao espírito, isto é, algo físico, como sua causa. Neste sentido, a sensibilidade também é uma faculdade voltada ao corpo.12 (DESCARTES, 1988c [1641], p.64 e 67).

Imaginação e sensibilidade são, portando, faculdades da alma conectadas a uma substância pensante; porém, envolvem uma referência ao corpo. Elas não realizam processos independentes na alma, tanto no sentido de que dependem de uma substância inteligente, envolvendo intelecção, pois são percebidas pela alma como pensamentos, quanto no sentido de implicarem alguma relação com algo diferente do próprio pensamento. Deste modo, imaginar e sentir são formas de pensar que não podem ser consideradas puramente intelectuais. Por este motivo, estas faculdades não são consideradas essenciais à alma, pois podendo ser o pensamento concebido sem referência a propriedades corporais, as faculdades que indicam um envolvimento com o corpo, como é o caso da imaginação e da sensibilidade, não são necessárias para o sujeito conceber a si mesmo como coisa pensante. Em outras palavras, todas as faculdades, por estarem ligadas ao pensamento como atributo, são formas do pensamento, mas nem todas são necessárias para o sujeito reconhecer-se como pensante. Assim, a imaginação e o sentir são faculdades que pertencem ao espírito, mas apenas contingentemente.

Encontro em mim faculdades de pensar totalmente particulares e distintas de mim, as faculdades de imaginar e de sentir, sem as quais posso de fato conceber-me clara e distintamente por inteiro, mas que não podem ser concebida sem mim, isto é, sem uma substância inteligente à qual estejam ligadas
. (DESCARTES, 1988c [1641], p.66).

No entanto, embora não sejam faculdades essenciais ao eu pensante, pelo fato de não produzirem cognições puramente intelectuais, mas modos do pensamento com referência ao corpo, a imaginação e a sensibilidade apresentam modos do pensamento cuja característica é obscuridade e confusão. Elas apresentam, portanto, que o ser humano não é apenas uma alma, mas um composto mente-corpo. A este respeito, Cottingham comenta:

O imaginar e ter experiências sensoriais não são faculdades de cognição transparentemente clara de um ser pensante: possuem uma qualidade inerentemente confusa, indefinível e subjetiva uma qualidade que trai o fato de que o que está implicado não é pura atividade mental de um espírito incorpóreo, mas a atividade de uma unidade híbrida, o ser humano.
(COTTINGHAM, 1986, p.171).

Enquanto a faculdade do entendimento nos apresenta um modelo de mente espelhado numa concepção de uma mente divina, capaz de uma compreensão puramente objetiva da realidade, a imaginação e a sensação anunciam que o homem não é penas uma substância pensante."

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Fonte:
Juliana da Silveira Pinheiro: “Paixões na Doutrina Cartesiana". (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Filosofia, do Departamento de Filosofia, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Luiz Henrique Dutra). Florianópolis, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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