Seria o cogito uma representação?



“Como afirmado anteriormente, a interpretação do cogito como representação, apesar de ser defendida mais incisivamente por Heidegger, não é uma tese exclusivamente heideggeriana. As referências à relação de si a si entendida como uma relação representativa em Descartes é encontrada com certa naturalidade na literatura crítica desse filósofo. É comum que historiadores e pensadores da filosofia se refiram ao cogito como representação. Assim, se é comum que entendam que, em Descartes, o ego se representa na relação primeira que tem consigo mesmo, significa que pode haver indícios na obra do filósofo francês que possibilitem ou, ao menos, incitem essa interpretação. Nas Meditações não há muitas passagens que podem levar a tal interpretação. Na Meditação Terceira, no desenvolvimento de sua teoria das ideias, Descartes se refere a uma ideia “que me representa a mim mesmo”:

Ora, entre essas idéias,
além daquela que me representa a mim mesmo, sobre a qual não pode haver nenhuma dificuldade, há uma outra que me representa um Deus, outras as coisas corporais e inanimadas, outras os anjos, outras os animais, outras enfim que me representam homens semelhantes a mim. (AT IX, p. 34; DESCARTES, 1991, p. 187 – grifo nosso).

Esse ponto dá início ao parágrafo dezenove da Meditação Terceira, em que Descartes discorre sobre as ideias que podem ter sido produzidas pelo próprio
ego e, com isso, não precisam de uma causa externa. Aqui o filósofo menciona os diferentes tipos de seres pensados: o ego; o ser infinito (Deus); as coisas corporais inanimadas, como as pedras, cadeiras etc.; os anjos; os animais; e outros homens. Todos esses seres estão presentes no ego através de suas ideias, uma vez que é próprio das idéias representar coisas. Além de se referir a ideias que representam outras coisas, o filósofo menciona a ideia “que me representa a mim mesmo”. Não há dúvida de que aqui se encontra uma clara referência de que o ego pode se representar, pois coloca o pensamento sobre si ao lado do pensamento sobre as outras coisas e, principalmente, porque se refere ao pensamento do ego sobre si como representação, assim como o pensamento sobre os outros seres, sobre os outros objetos de pensamento. Esse trecho citado é da edição em francês, traduzida do latim por Luynes, que emprega o termo “representa”, não encontrado no texto em latim. Apesar de o texto escrito em latim por Descartes não empregar o termo “representa” para se referir ao pensamento sobre si, é importante ressaltar que, tanto no texto latino quanto no francês, há uma referência a uma ideia de si mesmo, o que faz que ainda haja indício para a tese de um ego representativo, uma vez que as ideias são modos representativos de pensar. Além disso, o texto francês foi autorizado por Descartes, o que mostra que o filósofo não viu problemas em referir-se a uma ideia que representa o ego.

Além dessa passagem, no parágrafo trinta e oito da Meditação Terceira há outra referência à “[...] idéia de mim mesmo [...]”
(AT IX, p. 41. DESCARTES, 1991, p. 194), assim como no parágrafo dois da Meditação Quarta, onde Descartes menciona “[...] a idéia que tenho do espírito humano, enquanto é uma coisa pensante e não extensa [...]” (AT, IX, p. 42; DESCARTES, 1991, p. 197). E nesses casos não há diferença entre o texto em latim e a tradução em francês. No parágrafo trinta e oito da Meditação Terceira, onde Descartes se dedica à segunda prova da existência de Deus, ele se refere a uma “idéia de mim mesmo” para dizer que, assim como essa ideia, a ideia de Deus “[...] nasceu e foi produzida comigo desde o momento em que fui criado (AT IX, p. 41; DESCARTES, 1991, p. 194). Já no segundo parágrafo da Meditação Quarta, Descartes está fazendo uma recapitulação do que foi tratado nas meditações anteriores para, então, começar a discutir sobre o problema do verdadeiro e do falso. Por isso se refere à ideia do espírito humano para enfatizar que tal ideia “[...] não participa de nada que pertence ao corpo, é incomparavelmente mais distinta do que a idéia de qualquer coisa corporal” (AT IX, p. 42; DESCARTES, 1991, p. 1997).

Seriam essas passagens suficientes para sustentar a interpretação do
cogito como representação? Elas garantem que, no cogito, o ego se perceba através da representação de si mesmo? É evidente que, embora sejam apenas três discretas passagens a se referir a uma ideia de si mesmo, elas autorizam que seja possível conceber que o ego se representa. Principalmente a passagem do parágrafo dezenove que, além de mencionar uma ideia que o ego tem de si, afirma que há uma ideia “que me representa a mim mesmo”. Entretanto, o que é colocado em questão neste trabalho é se, no quarto parágrafo da Meditação Segunda (no artigo sete da primeira parte dos Princípios e na Quarta parte do Discurso), ou seja, se a primeira relação do ego consigo mesmo – o cogito – é uma relação de representação. A questão é se o ego se representa em sua constatação primeira que ocorre no cogito. Cabe, então, perguntar: Como pode o cogito, que é o pensamento do ego sobre si, não ser uma representação se há passagens que se referem à ideia que me representa? O fato de a relação primeira do ego consigo mesmo não ser uma representação, esse fato não impede que o ego possa se pensar como uma ideia, não impede que o ego possa se representar.

De outro modo: Se o
cogito é a relação primeira que o ego tem consigo mesmo, se é no cogito que o ego pensa em si somente, como é possível que o ego se represente se o cogito não for uma representação? É importante ressaltar que o ego, ao pensar em si no cogito do modo como aparece no parágrafo quarto da Meditação Segunda, está num contexto diferente do contexto das Meditações Terceira e Quarta, onde se encontram as passagens que autorizariam a interpretação do cogito como representação. Na Meditação Segunda, o contexto predominante é único, algo que não ocorre em qualquer outra situação das Meditações: trata-se do contexto em que se tem o predomínio absoluto da dúvida. Como já foi abordado no capítulo precedente, o cogito aparece numa situação em que a dúvida exerce o seu papel de modo mais incisivo. Com isso, ao se constatar, na Meditação Segunda, o ego tem uma relação singular consigo mesmo. E a questão é se, nesse contexto da Meditação Segunda, o ego se representa ao se constatar, é se essa relação singular de si a si é uma representação.

O
cogito não é a conclusão de um silogismo. Esta afirmação não consiste em uma tese de algum comentador da filosofia cartesiana, mas é do próprio Descartes, que, nas Segundas Respostas, deixa isso claro:

[...] quando alguém diz: ‘Eu penso, logo eu sou, ou existo’, ele não conclui sua existência de seu pensamento como pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si; ele a vê por uma simples inspeção do espírito.
(AT IX, p. 110; DESCARTES, 1991, p. 240).

Nessa passagem, Descartes está comentando o seu
cogito para refutar uma objeção que tenta criticar a tese cartesiana de que o “penso, logo existo” é conhecido antes de qualquer outra coisa. Tal refutação considera o cogito como a conclusão de um silogismo e, se é assim, não pode ser conhecido antes de suas premissas. A essa objeção, Descartes a ela responde que o cogito não traz o conhecimento da minha existência como pensamento através de um silogismo, pois é “uma coisa conhecida por si” percebida através de “uma simples inspeção do espírito”. O cogito envolve um conhecimento imediato, em que basta ao ego pensar para ser consciente de sua existência. Enéias Forlin enfatiza a necessidade de diferenciar percepção e juízo na leitura das Meditações de Descartes, pois a confusão entre essas duas coisas pode levar ao equivocado entendimento de que o cogito é a conclusão de um silogismo.

Segundo Forlin, “O que ocorre na autopercepção do pensamento é um voltar-se sobre si mesmo que, ao se perceber, percebe-se simultaneamente como existente” (FORLIN, 2005, p. 106). Não é a elaboração de um silogismo o que faz que se constate a existência de si, mas “simplesmente” a autopercepção do pensamento, o que depende tão somente da manifestação da “coisa que pensa”: o pensar. Além disso, o
cogito não é extraído de um silogismo porque, se o fosse, seria necessário considerar como premissa maior a proposição “Tudo o que pensa é”, que seria conhecida antes da conclusão “penso, logo existo” ou “eu sou, eu existo”. Entretanto, um silogismo que contenha essas proposições não é inválido. Não há problemas em formular um silogismo que contenha esses termos:

Tudo o que pensa é,
Eu penso,
Logo, eu sou, eu existo”.

Trata-se de um silogismo que pode ser feito, e a conclusão “eu sou, eu existo” pode ser extraída, sem problemas, de um silogismo. Ou seja, o
cogito pode ser considerado como a conclusão de um silogismo inequivocamente. Entretanto, de acordo com a ordem estabelecida e seguida nas Meditações, o cogito não pode ser considerado a conclusão de um silogismo, pois a premissa maior “Tudo o que pensa é” não é o que leva ao conhecimento de que “penso, logo existo”, “Mas, ao contrário, esta [tudo o que pensa é] lhe é ensinada por ele sentir em si próprio que não pode se dar que ele pense, caso não exista” (AT IX, p. 110-111; DESCARTES, 1991, p. 240). Se o cogito fosse a conclusão de um silogismo, seria necessário que a premissa maior “Tudo o que pensa é” fosse conhecida antes do cogito, e essa premissa seria a condição do conhecimento do cogito. Porém, segundo Descartes, o cogito é conhecido primeiramente, e é a condição para o conhecimento da proposição “Tudo o que pensa é”, visto que “[...] é próprio de nosso espírito formar as proposições gerais pelo conhecimento das particulares” (AT IX, p. 111; DESCARTES, 1991, p. 240). No cogito, o ego “sente em si próprio” que é impossível que ele pense caso não exista, trata-se de um conhecimento necessário que ocorre através de uma autopercepção, através de um “sentir em si próprio”, um sentir imediato, que não é outra coisa senão pensar. Assim como o cogito não é a conclusão de um silogismo, apesar de ser possível formular um silogismo válido com o cogito como conclusão, entendemos que o cogito não é uma representação, apesar de ser possível ao ego pensar em si representando-se. Ou seja, é possível que o ego se represente, que tenha uma idéia de si mesmo, entretanto, na constatação primeira do ego – o cogito –, como aparece no parágrafo quatro da Segunda Meditação (de acordo com a ordem estabelecida por Descartes) não há uma representação, pois, no contexto em que o cogito aparece, toda a representação é desconsiderada, toda a relação representativa está impossibilitada pela ação da dúvida. Como a representação envolve representante e representado, e como a dúvida isola o representante do representado, não é possível que o cogito seja uma representação, pois o representante é impedido de relacionar-se com qualquer representado, o que o faz relacionar-se consigo mesmo, isolado e separado de qualquer representado.

Ainda assim, não há nenhum texto de Descartes que diga explicitamente que o
cogito não é uma representação. Ao contrário, há um texto que diz não ser a conclusão de um silogismo, porém Descartes somente argumenta contra a interpretação do cogito como a conclusão de um silogismo porque essa questão lhe foi levantada nas Objeções feitas às suas Meditações; nenhum objetor se referiu ao cogito como uma representação e apontou o problema de considerá-lo dessa maneira, como foi feito sobre o cogito como um silogismo. Como, portanto, sustentar que, nas Meditações, o cogito não é uma representação, se nesse texto não há passagens em que o filósofo diga isso de modo explícito? Através do conceito de representação. Apesar de não haver um texto de Descartes onde ele refute explicitamente a interpretação do cogito como representação, há passagens em que o filósofo deixa claro que a representação designa o que tem uma existência tão somente de modo objetivo, entendendo-se objetivo por um ser que somente existe enquanto pensado. É claro que, no cogito, o ego é pensado, mas considerá-lo como representação, como Heidegger faz com tanta ênfase, tira o caráter ontológico do que é constatado no cogito: a própria coisa que se manifesta, não uma mera representação de uma coisa. O cogito não é somente uma representação por ser a própria manifestação da res cogitans, da coisa que pensa tanto nas outras coisas que, por serem outras, existem para o ego somente como representações, como seres objetivos; e em si próprio, separada e isoladamente das outras coisas, ou seja, das representações. E é exatamente por serem meras representações, que as ideias das outras coisas podem ser isoladas do ego no processo da dúvida, por poderem, ao menos, ser consideradas dubitáveis. Ao pensar sobre si, o que o ego pensa não pode ser isolado ou separado de si, não pode ser considerado dubitável, o que diferencia o cogito – a relação primeira de si a si – de todos os outros pensamentos, de todas as representações; o que faz que a “coisa” constatada com o cogito tenha, de certa forma, uma existência privilegiada. Aceitar que o cogito é simplesmente uma representação é aceitar que o ego, na relação primeira que tem consigo mesmo, se refere a algo que existe somente de modo objetivo, se refere a algo que tem um estatuto ontológico “inferior”. Aceitar que o cogito é uma mera representação é aceitar que o ponto de partida da filosofia cartesiana não é uma realidade formal, é aceitar que a relação primeira de si a si em Descartes não se refere a uma realidade efetiva. Aceitar a interpretação do cogito como representação é aceitar que o cogito se refere ao pensamento de uma existência, e não à existência de um pensamento."

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Fonte:
MARCOS ALEXANDRE BORGES: “SOBRE O COGITO COMO REPRESENTAÇÃO A RELAÇÃO DE SI A SI NA FILOSOFIA PRIMEIRA DE DESCARTES”. (Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, para a banca examinadora, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia, área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea, Linha de Pesquisa: Metafísica e Conhecimento, sob a orientação do professor Dr. César Augusto Battisti). Toledo, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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