Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz - “Tabacaria” - Álvaro de Campos
“Paulo Honório se senta para escrever um livro, o livro de sua vida: herança de suas lembranças deixada para ninguém... Talvez para o filho-órfão- de-mãe-suicida que dorme no quarto próximo à sala onde o ‘coronel’ insone lamenta o tempo perdido, enquanto rabisca as últimas passagens de sua tragédia: “Se ao menos a criança chorasse...Nem sequer tenho amizade ao meu filho. Que miséria!” Romance que desemboca numa solidão arrebatadora, São Bernardo é o testemunho de um homem vivendo num hiato de tempo e, simultaneamente, o resultado do olhar de um escritor às voltas com crises econômicas mundiais, com revoluções, com promessas de mudanças, com medo das permanências.
O destino de Paulo Honório, de seu filho, de seus amigos, que Graciliano Ramos finda por não traçar, é uma das indicações do forte caráter realista do romance. O Nordeste nascendo vê, confuso, um novo Brasil nascer. A dúvida, a esperança, a mudança, novos caminhos, velhas passadas, tudo está no ar e a especulação é risco. Assim como Graciliano não sabe do destino, Paulo Honório também não, apesar de este último apontar dificuldades para o futuro, mas acompanhadas de esperanças. Ambos escrevem o São Bernardo, enquanto descrevem a São Bernardo – metáfora espacial e social da realidade nordestina. Um, com a autoridade de quem nela viveu durante a infância e conviveu com seu poder na esfera política; o outro, com autoridade de quem nela habitou a vida quase toda, nela trabalhou, conquistou-a, melhorou-a e nela se transformou. Ambos tentam, através dela, em cada hoje, olhar para trás e nela encontrar respostas, aplacar inquietações, tentar dormir. Assim, o tempo da obra é o tempo na obra, visto que a escrita é feita num duplo presente que lembra um duplo passado. Desta forma, Graciliano dirige seu olhar para a realidade através dos olhos do proprietário de terras que ele tão bem conhece, e ao narrar dessa maneira, oferece-nos um outro ângulo, um outro caminho para observar a realidade naquele espaço e tempo em que o tempo social transita com igual ou maior importância que o tempo cronológico.
Tanto o São Bernardo de Paulo Honório, quanto o de Graciliano, são escritos nos arredores de 1930, com uma pequena diferença de dois anos entre eles. Paulo Honório escreve a história de sua vida durante o ano de 1930/31, no calor da hora do golpe e nas primeiras duras conseqüências da crise econômica de 1929:
“Um dia o Azevedo Gondim trouxe boatos de revolução. O sul revoltado, o centro revoltado, o nordeste revoltado” (...) Entrei nesse ano com o pé esquerdo. Vários fregueses que sempre tinham procedido bem quebraram de repente. Houve fugas, suicídios, o Diário Oficial se emprenhou com falências e concordatas. Tive de aceitar liquidações péssimas.”
Graciliano escreve a história da escrita da história de Paulo Honório em 1932, durante a Revolução Constitucionalista:
“Continuo a consertar as cercas do São Bernardo. Creio que está ficando uma propriedade muito bonita. E se Deus não mandar o contrário, qualquer dia terei de apresentá-la ao respeitável público. O último capítulo, com algumas emendas que fiz, parece que está bom.
Não temos aqui nenhuma notícia certa da revolução. O rádio desapareceu, os jornais não dizem nada, até os boatos são escassos. De sorte que estamos como presos, ignorando tudo o que se passa além dos montes que nos cercam.”
Graciliano ainda põe na história de São Bernardo, uma expectativa quanto a São Paulo e sua revolta diante do governo dos tenentes. É nas palavras de Azevedo Gondim, que vem a esperança na retomada da “ordem” através dos liberais paulistas: “São Paulo havia de se erguer, intrépido;
É interessante ver a expectativa de Graciliano por informações sobre a revolução liberal dos paulistas. Necessitava ele de elementos para compor o final do romance, enquadrar melhor o seu “anti-herói” num painel que se adequasse a um futuro recente que o aguardaria. Nesse jogo com as temporalidades, Graciliano, tal como fez para nos apresentar Paulo Honório – como veremos adiante – nos deixa uma imprecisão no ar quanto à formação e o destino das coisas. Ao contrário da precisão naturalista e de um certo descomprometimento que ainda habitavam em Caetés (escrito entre 1925-1928), no realismo as coisas não cabem numa única data, as pessoas não se enquadram num único adjetivo, os começos e os fins não podem ser precisos, a própria vida não o é.
É esse o grande problema de Paulo Honório: quem ele é de fato? a qual tempo pertence? qual o seu lugar na sociedade? é burguês? é senhor, aos moldes feudais? é um empreendedor com fins conservadores? é uma caricatura de liberal? é um coronel remanescente do Império? ... Principia ele a falar de sua trajetória assim:
“Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinqüenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor.”
Perfeitamente localizado no seu hoje (1930), o narrador ainda informa dados específicos sobre o corpo de um homem grande (89 quilos) que lhe rende consideração. Já seu passado traz um mistério: Paulo Honório não sabe de onde vem, não sabe quem foram seus pais, e ao contrário da exatidão do peso, não informa com precisão sua data de nascimento (lá pelo São Pedro – 29 de junho):
“Para falar com franqueza, o número de anos assim positivo e a data de São Pedro são convencionais: adoto-os porque estão no livro de assentamentos de batizados da freguesia. Possuo a certidão que menciona padrinhos, mas não menciona pai nem mãe. Provavelmente eles tinham motivo para não desejarem ser conhecidos. Não posso, portanto, festejar com exatidão o meu aniversário. Em todo caso, se houver diferença, não deve ser grande: mês a mais ou mês a menos. Isto não vale nada: acontecimentos importantes estão nas mesmas condições.”
Ao mesmo tempo que esse fato lhe causa alguma dor, também lhe provoca um certo orgulho e alívio. Não ter família, ser o marco-zero é, aliás, sinal de autonomia, um rompimento com algum passado desgraçado, um forte traço de individualismo, uma característica liberal.
“Sou pois o iniciador de uma família, o que, se por um lado me causa alguma decepção, por outro lado me livra da maçada de suportar parentes pobres, indivíduos que de ordinário escorregam com uma sem-vegonheza da peste na intimidade dos que vão trepando.”
Paulo Honório não quer ninguém a aproveitar-lhe o vácuo. Como trabalhou desde pequeno, orgulha-se do sucesso que ele à unha arrancou da vida dura que teve. E prossegue, numa linguagem quase oficial de relatório, mais precisamente, um balancete contábil – no qual o ativo financeiro ao final de sua jornada de investimentos fecha em positivo, e o passivo emocional ao final de sua tragédia sentimental é inversamente proporcional, fechando em negativo –, na listagem das ocupações que tivera desde menino até a conquista do seu pódio: a propriedade São Bernardo. Quando moleque, Paulo Honório foi guia de um cego que lhe “puxava as orelhas”; “vendia doces” que a velha Margarida fazia e ajudava limpar o tacho; trabalhou na enxada nas terras da São Bernardo para o Salustiano Padilha até os dezoito anos “ganhando cinco tostões por doze horas de serviço” – nessa época, passa “três anos, nove meses e quinze dias na cadeia” por conta de uma “sentinela que acabou em furdunço”, envolvendo Paulo Honório, a “cabritinha sarará danadamente assanhada” Germana e o João Fagundes, que findou esfaqueado; aprendeu a ler na cadeia com o João Sapateiro “que tinha uma bíblia miúda, dos protestantes” e quando saiu, já não pensava na Germana, “pensava em ganhar dinheiro”. A partir daí começa a fase dos negócios: primeiro tira o título de eleitor; depois, pede empréstimo a seu Pereira, “agiota e chefe político” – que mais tarde, por conta de fracassos nas eleições se verá em posição inversa diante de Paulo Honório, o qual estuda “aritmética para não ser roubado além da conveniência” e mete-se no sertão vendendo de tudo: “redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas” – numa delas, envolvendo uma boiada, efetua a transação de “armas engatinhadas”. Nessa época traz um capanga para se proteger: Casimiro Lopes. E cansado daquela vida, Paulo Honório retorna a Viçosa – aqui se completa sua perfeita localização: 1930 (período da escrita do seu livro), município de Viçosa-AL – onde resolve ser dono da São Bernardo, que estava, à época, nas mãos do Luís Padilha, filho do velho Salustiano, já finado. Após comprar a fazenda de um Luís Padilha desorientado, bêbado e confuso, o protagonista começa a organizar a estrutura física da propriedade, rumo ao progresso, e a estrutura político-administrativa do município, para não só manter a fazenda bem como para, a partir dela, cavar seu lugar de destaque no poder local. Sempre ao lado do capanga Casimiro Lopes, que lhe tem “fidelidade de cão”, Paulo Honório ainda contratará o seu Ribeiro – um velho, ex-militar que na época do Império gozava de prestígio em sua localidade – para cuidar da contabilidade; o João Nogueira, advogado; construirá laços de mútua dependência com o Azevedo Gondim, redator do periódico local, Cruzeiro; contratará o Luís Padilha para ser o professor da escola que o governador havia exigido, em importantíssima visita à São Bernardo, numa “data que ficou célebre”; e terá Madalena, sua própria esposa, como secretária.
A trajetória de Paulo Honório revela o poder de transformação que há nas relações sociais e econômicas via capitalismo liberal, no qual o indivíduo depende de sua própria iniciativa: “Eu Não sou preguiçoso. Fui feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna a ser-me favorável nas seguintes”. Ele não é a figura do coronel tradicionalmente puro, ou seja, não possui uma “linhagem”, não conta com símbolos ou brasões de família nobre, não traz nas costas herança de terras ou de títulos enferrujados que datam do Império. No entanto, a organização política e econômica que compreende a “lactente” República permite-lhe desenvoltura análoga à dos velhos coronéis no desfile de uma sociedade que com ele vive em liame e parece estar sempre à soleira da porta.
Na ascensão social de Paulo Honório, Graciliano vem, conforme Carlos Nelson Coutinho, captar “os traços essenciais do capitalismo nascente: o crescimento da mobilidade social, o rompimento com as barreiras coaguladas do pré-capitalismo.” Mas rompimento é um termo muito forte para se explicar as diferentes “fases” que viveu o Brasil desde a chegada de D. João VI até os dias de hoje. Se há uma possibilidade de maior mobilidade social, o que é notório, os meios usados para que essa mobilidade se realize não ganharam modificações bruscas nesses últimos séculos.
Graciliano, decerto, percebeu a mudança dos tempos que se dava, no entanto, mais por uma corrente de discurso – cujos elos se encaixavam com uma certa harmonia, mas não isentos de conflitos – do que mesmo pela verificação na prática das esferas política e econômica.
O alcance que o coronel ainda tinha, principalmente nas decisões locais, revelava a acomodação aprendida no lidar com uma série de fatores, como a Política dos Governadores, por exemplo: uma bizarra estrutura – nova apenas se confrontada com o discurso modernizante – na qual o poder público se relacionava com o privado de modo tal que fazia da República um aleijão, uma distorção no tempo. Na análise de Sérgio Buarque de Holanda, temos a visão preocupada de quem vê uma permanência parasitária corroendo a fachada de uma mudança que, no fundo, se não era fantasiosa, se processava com lentidão e não sem recuos:
“O trágico da situação está justamente em que o quadro formado pela Monarquia ainda guarda um prestígio, tendo perdido sua razão, e trata de manter-se como pode, não sem grande artifício. O estado brasileiro preserva como relíquias respeitáveis algumas das formas exteriores do sistema tradicional, depois de desaparecida a base que o sustentava: uma periferia sem centro. A maturidade precoce, o estranho requinte do nosso aparelho de Estado, é uma das conseqüências de tal situação.”
Foi assim que as elites nordestinas sustentaram uma prática herdada desde o Império, ratificando uma relação interdependente que, se outrora evidenciava um “fortalecimento do poder público centralizador e uma subordinação paulatina do poder privado a este”, na recente República, além de não deixar de trazer tal caráter, essa relação ainda evidenciava o fortalecimento de uma prática que, a princípio, deveria ser erradicada do processo de renovação política pelo qual, teoricamente, haveria de ter passado o país.
Pode-se dizer que esse conflito entre discurso e prática gera uma situação a princípio anacrônica – se tomarmos por base os projetos de progresso que deveriam atingir todas as esferas da vida do país, varrendo todo o modo de viver “pré-capitalista” – situação que se alimenta e alimenta proprietários de terra como Paulo Honório. Mesmo após o Golpe de 1930 e uma visível reformulação da estrutura político-administrativa do país, vinda do topo, verifica-se que o rio principal não seria perene se não o fossem seus afluentes, ou seja, foram municípios como os de Viçosa, pequenos córregos de uma rede fluvial de poder baseada na produção agrícola – maior fonte de renda do país e na qual estava a maioria da população ativa, portanto, a maioria do eleitorado – e na conivência com mandonismos locais, foram tais municípios que possibilitaram aos rios maiores – os Estados – a manutenção de um curso relativamente calmo rumo ao grande rio federal.
É este quadro que mostra Graciliano, quando da visita do governador do Estado a São Bernardo. Paulo Honório ciceroneia o visitante pela propriedade, numa demonstração da chegada da modernidade ao campo, transformando a “antiga” fazenda numa empresa mais complexa, diversificada e estruturada: “(...) E fui mostrar ao ilustre hóspede a serraria, o descaroçador e o estábulo. Expliquei em resumo a prensa, o dínamo, as serras e o banheiro carrapaticida.” Mas os tempos não eram exatamente os mesmos. Algumas exigências acabam pegando Paulo Honório de assalto:
“O governador gostou do pomar, das galinhas Orpington, do algodão e da mamona, achou conveniente o gado limosino, pediu-me fotografias e perguntou onde ficava a escola. Respondi que não focava em parte nenhuma. (...)
Escola! Que me importava que os outros soubessem ler ou fossem analfabetos?
– Esses homens do governo têm um parafuso frouxo. Metam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver a colheita.
(...) De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador para certos favores que eu tencionava solicitar.
– Pois sim senhor. Quando V. excia. vier aqui outra vez, encontrará essa gente aprendendo cartilha.”
A efetivação do novo – construir e bancar a escola – estava a serviço do velho – certos favores a solicitar – porque o privado estava exercendo função do público. Mas isso não se restringia aos limites da propriedade. A relação com o poder público local extrapola os limites da fazenda e ganha uma visibilidade municipal. Reparem como, numa única página, Graciliano condensa as características do patrimonialismo e aponta os tentáculos do coronel em ação, nesse misto de sociedade em mudança e de sociedade em permanência – talvez a própria história –, no qual as coisas ora se resolvem por meios jurídicos – não necessariamente idôneos – ou via imprensa – não necessariamente ética – ou pela violência mesmo, que era, segundo Victor Nunes Leal, a última das alternativas, mas nunca aquela a ser descartada.
“Efetuei transações arriscadas, endividei-me, importei mecanismos e não prestei atenção aos que me censuravam por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei a pomicultura e a avicultura. Para levar os meus produtos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim compôs sobre ela doisartigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro Gouveia. Costa Brito também publicou uma nota na Gazeta, elogiando-me e elogiando o chefe político local. Em conseqüência mordeu-me cem mil-réis.
Não obstante essa propaganda, as dificuldades surgiram. Enquanto estive esburacando S. Bernardo, tudo andou bem; mas quando varei quatro ou cinco propriedades, caiu-me em cima uma nuvem de maribondos. Perdi dois caboclos e levei um tiro de emboscada. Ferimento leve, tenho a cicatriz no ombro. Exasperado, mandei mais cem mil-réis ao Costa Brito e procurei João Nogueira e Gondim:
– Desorientem essas cavalgaduras. Olhem que eu estou fazendo obra pública e não cobro imposto. É uma vergonha. O município devia auxiliar-me. Fale com o prefeito, dr. Nogueira. Vê se ele me arranja umas barricas de cimento para os mata-burros.”
As melhorias que o proprietário faz são de um empreendedor conectado às exigências do mercado, à política do aumento da produção e até às relações de trabalho:
“Devagarinho, foram clareando as lâmpadas da iluminação elétrica. Luzes também nas casas dos moradores. Se aqueles desgraçados lá embaixo, ao pé das cercas de Bom-Sucesso, tinham pensado em alumiar-se com eletricidade! Luz até meia-noite. Conforto! E eu pretendia instalar telefones.”
Paulo Honório se gaba da sua condição de provedor do conforto para aqueles “desgraçados” que são hoje o que ele foi ontem. Essa condição tem uma dupla importância. Trazer essas “benfeitorias” aos trabalhadores da São Bernardo ao mesmo tempo que evidencia ser o seu proprietário um homem de visão, de “planos volumosos”, projetos arrojados e modernos, rumo ao futuro, realça também a diferença que havia entre Paulo Honório e eles. O primeiro mudou, rompeu a placenta de chumbo que separa os homem que têm dos homens que não têm, ou que só têm quando lhes dão: Se aqueles desgraçados lá embaixo tinham pensado em alumiar-se com eletricidade! Conforto! [Dou-lhes o que eu não tive quando era eles. Agora tenho e tenho para ‘dar’. A ‘falha’ na placenta provavelmente só tinha espaço para a passagem de um, eu.] O caráter burguês, individualista, que habita o senhor de São Bernardo revela o mesmo caráter da burguesia ascendente do século XIX, na Europa e Estados Unidos. Se comparada àquela burguesia, poderíamos dizer que a burguesia agrária do Brasil nos 1930 evidenciava um capitalismo retardatário, tardio. Creio que era (ou ainda é) apenas o nosso capitalismo, com as peculiaridades que a “arte de explorar” encontrou nas terras e na gente daqui – assim como não preciso da fórmula dura das datas, também não necessito da fórmula das formas.
O coronel de Graciliano é esse novo-velho coronel que encontrou habitat favorável para desenvolvimento de suas raízes atrofiadas e que logo conheceram a robustez permitida por um regime novo que trazia muito do velho. No entanto, não estamos falando aqui de uma obra como Coronelismo, Enxada e Voto, na qual os fatores objetivos – econômicos e políticos – são os únicos a serem levados
“Amanheci um dia pensando
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinária. Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que eu sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.”
Depois de nascido o herdeiro, já em meio a confusão doentia de ter ciúme de tudo, o pai vê na criança, ou seja, no seu futuro, no futuro do seu nome, um triste prognóstico: “aquela mãe desnaturada e que não merecia confiança” gerara-lhe a ruína, a feiúra, o abandono. A “pureza” de São Bernardo estava comprometida para sempre e o futuro – que em sua óptica estaria encharcado de tradicionalismo – não se realizaria. O presente, uma desgraça:
“E o pequeno continuava a arrastar-se, caindo, chorando, feio como os pecados. As perninhas e os bracinhos eram finos que faziam dó. Gritava dia e noite, gritava como um condenado e a ama vivia meio doida de sono. Às vezes ficava roxo de berrar, e receei que estivesse morrendo quando padre Silvestre lhe molhou a cabeça. Com a dentição encheu-se de tumores, cobriram-no de esparadrapos: direitinho uma rês casteada. Ninguém se interessava por ele. D. Glória [tia de Madalena] lia. Madalena andava pelos cantos, com as pálpebras vermelhas e suspirando. Eu dizia comigo:
– Se ela não quer bem ao filho!
E o filho chorava, chorava continuadamente. Casimiro Lopes era a única pessoa que lhe tinha amizade. Levava-o para o alpendre e lá se punha a papaguear com ele, dizendo histórias de onças, cantando para o embalar as cantigas do sertão. O menino trepava- lhe às pernas, puxava-lhe a barba, e ele continuava:
Eu nasci de sete meses,
Fui ciado sem mamar.
Bebi leite de cem vacas
Na porteira do curral.
Quando Madalena morre, escapando mais entre os dedos de Paulo Honório do que da própria vida, o proprietário da São Bernardo percebe que não pode ser o transformador da vida de todos que estão sob o que julga ser sua guarda. Percebe que de fato nunca havia transformado a si mesmo. E percebe que nunca se transformará. O fracasso da sociedade capitalista em formação no Brasil é diagnosticado por Graciliano
“...estou certo de que a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária, que forneceram a essência da minha instrução, não me tornaram melhor do que eu era quando arrastava a peroba.
(...)
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
(...)
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.”
Quando Paulo Honório então resolve escrever o livro de sua vida, é porque a história não poderia seguir mais adiante. E seguiria, só que o futuro não lhe pertenceria mais. Restaria contar o passado, caminhar pela dor de revê-lo, desejá-lo e nele se encontrar, promover um novo traçado, no qual os erros não se repetiriam. Graciliano aponta Paulo Honório como o “emblema contraditório do capitalismo nascente em nosso país”, olhando para a frente e ao mesmo tempo vivendo do para trás, inseguro em relação ao controle do seu próprio tempo. Então o desfile de recordações, e mais, o desejo de mudança sobre um passado que não pode ser mais mudado se inicia. Além disso, toda uma carga de um passado não necessariamente vivido, mas ouvido e, de certo modo, sentido – como é o caso das histórias que ouvira de seu Ribeiro – toda uma dose de passado ajuda Paulo Honório a compor um tempo que Graciliano flagra naqueles arredores de 1930, tomando a São Bernardo como emblema para a realidade nordestina: O “tempo imaginário” entra em conflito com o “tempo identitário” e o calendário passa a ser um problema. Esse imaginário social que se arrasta desde o Brasil-Colônia e ainda habita a identidade de Paulo Honório – e quem sabe a dos coronéis-médicos, coronéis-advogados, coronéis-padres que “orientam” a vida política e social das células do país nos dias de hoje e que surgiram ainda nesse período da Primeira República, quando do próprio arranjo exigido diante das movimentações/ acomodações da história, como o letramento e a especialização, a gradual perda da condição da terra como elemento principal e, às vezes, único da economia.
Paulo Honório vai terminando seu livro, espremendo cada gota do “se”, ao mesmo tempo amarga e nutritiva.
“Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela teríamos uma existência quieta. Falaríamospouco, pensaríamos pouco, e à noite na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na Graça de Deus. Se não tivesse ferido o João Fagundes, se tivesse casado com a Germana, possuiria meia dúzias de cavalos, um pequeno cercado de capim, encerados cangalhas, seria um bom almocreve. Penso no povoado onde seu Ribeiro morou, há meio século.
Seu Ribeiro acumulava, sem dúvida, mas não acumulava para ele. Tinha uma casa grande, sempre cheia, o jerimum caboclo apodrecia na roça – e por aquelas beiradas ninguém tinha fome. Imagino-me vivendo no tempo da monarquia, à sombra de seu Ribeiro. Não sei ler, não conheço iluminação elétrica nem telefone. Para me exprimir recorro a muita parífrase e muita gesticulação. Tenho, como todo mundo, uma candeia de azeite, que não serve para nada, porque à noite a gente dorme. Podem rebentar centenas de revoluções. Não receberei notícias delas. Provavelmente sou um sujeito feliz.”
À medida que recorda as possibilidades que cada ‘fase’ no seu passado teria de um futuro melhor que seu presente, Paulo Honório traz um distanciamento de si mesmo. De rezas africanas na convivência com uma velha doceira a festas ao pé de um provedor menos acumulador, como o major Ribeiro, Graciliano expõe Paulo Honório não como o retrato do presente que não presta, e não faz das recordações do seu ‘herói’ uma apologia a um passado que mesmo injusto ainda era melhor do que o presente. Não vejo assim. Paulo Honório é o ser duplo que coaduna o pior do passado com o pior do presente, este último, trazendo elementos mais eficazes de explorar, manusear e corromper, unidos a práticas e símbolos (não menos práticos) experimentados do passado, conjugando uma realidade mais cruel.
A solidão de Paulo Honório, fantasma que vaga pela sede da fazenda, é revelada pela fuga dos outros da São Bernardo – aqui Graciliano aponta a possibilidade de fuga – e pela distância irreconciliável que se estabeleceu entre Paulo Honório e os empregados da fazenda – numa flagrante alusão à separação e à luta entre classes. Madalena suicidou-se; D. Glória, após a morte da sobrinha, não tem motivos para ficar ali; seu Ribeiro vai para a capital; e, com relação aos moradores da fazenda, as próprias palavras de Paulo Honório resumem aquilo que Graciliano quer mostrar neste romance social de um escritor que “deseja a morte do capitalismo”: Declara Paulo Honório: “Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou”.
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Fonte:
Francisco Fabiano de Freitas Mendes: “Ponto de Fuga: Tempo, Fome, Fala e Poder em ‘Vidas Secas’ e ‘São Bernardo’. (Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de mestre
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Paulo Honório: o Nordeste nascendo confuso
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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