A recepção da obra de João Guimarães Rosa



“A gramática internalizada refere-se a hipóteses sobre os conhecimentos que habilitam o falante a produzir frases ou seqüências de palavras de maneira que sejam compreensíveis e reconhecidas como pertencentes a uma língua (POSSENTI, 1996, p.69). Essa noção, fundante na gramática gerativa, supõe que o homem seja dotado da capacidade da fala desde o momento do nascimento. Assim, a capacidade de linguagem estaria inscrita no código genético da natureza humana. De acordo com Chomsky, “a faculdade de linguagem pode razoavelmente ser considerada como ‘um órgão lingüístico’ no mesmo sentido em que na ciência se fala, como órgãos do corpo, em sistema visual ou sistema imunológico ou sistema circulatório” (1997, p.50).

Nos últimos anos, houve muita controvérsia entre os lingüistas em relação a essa idéia. Não eram raras discussões em congressos opondo aqueles que acreditavam no inatismo aos que preferiam as teorias que pregavam o meio como responsável pela aquisição de linguagem. Ultimamente, ambas as partes têm seu quinhão assegurado: os gramáticos gerativos, ditos formalistas, estão preocupados com o chamado “estado inicial” de linguagem, enquanto os estudiosos da aquisição de linguagem trabalham a partir do momento em que o meio começa a agir.

É preciso destacar que concordar ou não com a hipótese da gramática internalizada vai desencadear visões bastante distintas em relação à linguagem. Na verdade, a importância de Chomsky não deve ser subestimada: todos os que estudam esta área tendem a se posicionar em relação às idéias do autor. Maria Helena de Moura Neves, por exemplo, ao abordar a história da gramática, comenta: “Deus não foi tão avaro com os homens a ponto de dotá-los de voz articulável e deixar para Chomsky o fazê-los possuidores de uma gramática implícita” (NEVES, 2002, p.18). Ao explicitar a linha de análise que adota, a autora realça que “não explicamos determinações do sistema, isto é, não estamos no domínio do “computacional”, porque consideramos que deva ser avaliada a operacionalização das estruturas” (idem, p.93). Sua análise inscreve-se, portanto, numa linha funcionalista.

Os gerativistas estão numa situação bastante peculiar: o principal formulador de suas teorias, Noam Chomsky, periodicamente apresenta um quadro teórico à comunidade científica, a qual o estuda e faz críticas. Estas são incorporadas, e surge então um novo quadro teórico. A conseqüência mais perceptível dessa dinâmica é uma constante renovação na abordagem dos gerativistas em relação a seu objeto de estudo.

Num primeiro momento, a teoria gerativa apresentou um arcabouço que buscava descrever a língua sobretudo sintática e morfologicamente. No Brasil, o resultado desta linha pode ser encontrado na obra de Ingedore Koch e Maria Cecília Peres, Lingüística aplicada ao Português: sintaxe (1983), em que apresentavam, de maneira bastante clara, os primeiros princípios desta gramática.

Este arcabouço teórico é considerado hoje, paradoxalmente, fundamental e ultrapassado. Isso porque é um modelo tão importante que alguns de seus conceitos foram incorporados inclusive por aqueles que não seguem a linha formalista. Noções como determinante e modulador podem ser encontrados entre vários estudiosos. Entretanto, Chomsky já apresentou um outro modelo teórico conhecido como “Princípios e Parâmetros”, em que os conceitos anteriores funcionam como pressupostos, quase instrumentos operacionais, mas o que se busca agora são os princípios gerais da faculdade de linguagem. É a tentativa de se mostrar que todas as línguas são “variações sobre um mesmo tema”, registrando suas propriedades de som e sentido, as quais são superficialmente diversas.

Mesmo com todo este desenvolvimento, a idéia de uma gramática presente na mente de cada falante ainda é válida. Ela se manifesta através de regras mentais, deduzidas a partir de uma pequena amostra da língua. É por isso que ocorrências consideradas erro pela gramática normativa são plenamente compreensíveis e justificáveis para a gramática internalizada. Por exemplo, uma expressão como “eu fazi xixi” ocorre porque o falante já tem internalizada a regra que indica que verbos de 2ª. conjugação fazem o pretérito perfeito para a 1ª. pessoa excluindo do tema o morfema –e e adicionado o morfema –i, como em
beber->bebi. Portanto, para que este falante, provavelmente uma criança, assimile a exceção – fazer -> fiz - , será preciso que um outro o ensine, já que esta forma contraria o que seu sistema mental formalizou. Nesta fase infantil, vão-se consolidando as formações que serão cristalizadas às vezes para o resto da vida, podendo, inclusive, gerar estranhamento na velhice.

No conto “A menina de lá”, Nhinhinha, a protagonista, de quatro anos, pergunta para o narrador:
“Ele te xurugou?” (PE, p. 19). É um neologismo, de difícil solução, no entanto respeita as regras do português: o pretérito perfeito de 3ª. pessoa de verbos de 1ª. conjugação é feito partindo-se do tema, excluindo o morfema –a, acrescentando-se o morfema –ou. Percebe-se que esta regra já foi introjetada por Nhinhinha.

Na verdade, o aspecto social da linguagem vai-nos como que aprisionar em uma “camisa-de-força” lingüística. Edward Lopes, ao descrever a teoria de Saussure, explica:

Por ser um bem social, um contrato coletivo, a língua preexiste e subsiste a cada um de seus falantes individualmente considerados: cada um de nós encontra, ao nascer, formada e em pleno funcionamento, a língua que deverá falar. A sociedade nos impõe a sua língua como um código do qual nos devemos servir obrigatoriamente se desejamos que as mensagens que emitimos sejam compreendidas. (
LOPES, 1993, p.77).

Após algum tempo, deixaremos de agir tão livremente em relação à língua como quando estávamos em sua fase inicial. Um exemplo bastante elucidativo é a atitude com relação aos neologismos: depois que assimilamos quais morfemas “servem” para tal vocábulo, raramente aceitamos que um mesmo significado seja expresso de outra maneira. Se o habitual é dizer
chuvoso , ao ouvirmos chuvento , tendemos ao estranhamento, ainda que, “pelo simples fato de que se compreenda um complexo lingüístico, [..] tal seqüência de termos constitui a expressão adequada do pensamento” (BENVENISTE, 1995, p.162).

Um artigo da Revista Leitura, editada no Rio de Janeiro, com o curioso título “Escritores que não conseguem ler ‘Grande Sertão – Veredas’”, é uma das poucas demonstrações públicas por escrito desta dificuldade e, como se sabe, “a palavra impressa tem a maior eficácia”, segundo Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz (LORENZ, 1983, p.63). A publicação é de 1958, época em que, aparentemente, o autor ainda não era tão famoso. O texto começa com a seguinte introdução:

Recebemos, constantemente, cartas de
leitores queixando-se de que não conseguem ler, ou ir até o fim na leitura das obras do escritor Guimarães Rosa, sobretudo os livros “Grande Sertão: Veredas” e “Corpo de Baile”. Comunicando o fato a vários bons escritores, também eles têm-nos declarado que encontraram a mesma dificuldade em suas infrutíferas tentativas para ler o ficcionista de “Sagarana” livro que consideram, quase todos, de leitura mais acessível. Assim, se, por um lado, há escritores como Cavalcanti Proença, Oswaldino Marques, Tristão de Ataíde e da Costa e Silva, que tecem os maiores encômios à obra de Guimarães Rosa; se há outros que embora lhe façam pessoal e reservadamente as maiores restrições, contudo, de público, não hesitam em enaltecer-lhe os méritos renegados; se há também os que tendo outrora discordado, por esse ou aquêle motivo, passaram a elogiá-lo de tal maneira que até já se esqueceram de que e por que a combatiam; há no entanto bons escritores , senão anti-“Sagarana”, mas anti-“Grande Sertão: veredas”, anti-“Corpo de Baile”, desde a primeira hora e sempre dispostos a anunciar suas decepções. São opiniões de tais escritores que aqui passamos a divulgar, apenas com o propósito de mostrar aos nossos leitores, que nos escrevem com o mesmo problema, que também aqueles não lêem ou não podem ler “Grandes Sertões – Vereda”.(p.50-A)

Antes de apresentarmos os depoimentos dos escritores, voltemos à introdução do artigo. O suposto jornalista, uma vez que a matéria não está assinada, tem total liberdade de justificar sua abordagem por meio de uma suposta necessidade dos leitores. Existe, subentendida, uma cumplicidade entre as inúmeras pessoas que não conseguem ler certas obras de Guimarães Rosa.

O texto foi mantido
ipsis litteris para que se pudessem notar as várias maneiras com que o autor grafou Grande Sertão: Veredas. Se Guimarães Rosa, um dedicado revisor de seus próprios livros, leu o artigo, certamente terá dado boas risadas ao constatar as inconsistências editoriais.

No total, a matéria apresenta depoimentos. Destacaremos os mais relevantes, dois deles de escritores conhecidos em nossos dias e um de um romancista hoje pouco conhecido:

BARBOSA LIMA SOBRINHO
- “Grande Sertão – Veredas” é uma imitação de ULYSSES, de Joyce, e sofre, conseqüentemente, dos males de toda imitação. Para nós, não podemos deixar de considerá-lo como uma literatura artificial, porque mal consegue comunicar aos outros o pensamento do seu autor. É possível que aquêles vocábulos raros existam, inclusive que a sua maioria seja usada no linguajar daquela região, mas, tal fato, não invalida o que afirmei sobre a falta de receptividade por parte dos leitores. – Em favor do autor de “Grande Sertão – Veredas” pode-se aduzir o desejo de enriquecer a nossa língua com a introdução de certos vocábulos. Porém só o tempo poderá dar razão ao autor, caso venha a incorporar à nossa língua tais expressões usadas na sua obra de ficção (idem).

O jornalista Barbosa Lima Sobrinho começa seu texto de maneira bastante intempestiva, mas depois apresenta reflexões mais pertinentes. Sua afirmação de que Guimarães Rosa imita o irlandês James Joyce será vista como afinidade pelos concretistas, que vão colocar ambos os escritores na mesma escola estética.

Embora critique a linguagem de Guimarães por ser artificial e justifique suas palavras pela falta de comunicação com o leitor, ao referir-se ao léxico, Barbosa Lima Sobrinho demonstra uma boa percepção do trabalho do escritor. Intui que alguns vocábulos são raros, outros regionais, e não os considera todos neologismos, como costuma acontecer com leitores menos afeitos aos processos de formação de palavras. Membro da Academia Brasileiras de Letras, à época já tinha publicado o livro
A Língua Portuguesa e a unidade nacional, o que confirma sua dedicação ao assunto.

FERREIRA GULLAR
Ferreira Gullar, o jovem poeta concretista, crítico de artes plásticas do suplemento dominical do Jornal do Brasil , declarou: - Li 70 páginas do Grande Sertão: Veredas . Não pude ir adiante. À essa altura, o livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os lingüistas. Parei, mas sempre fui um péssimo leitor de ficção (ibidem).

O escritor, à época considerado um jovem poeta concretista, em seu depoimento reduz o romance de Guimarães Rosa a uma história de cangaço. Certamente, hoje em dia se manifestaria de outra forma, mas sua observação coincide, ainda hoje, com comentários daqueles que conheceram sua obra através de resumos da Internet.

PERMÍNIO ÁSFORA
- Tenho pelo Sr. Guimarães Rosa a simpatia pessoal que ele me merece pelo nosso pequeno mas caloroso conhecimento, além do respeito que me inspira pela sua audácia em pretender criar alguma coisa nova em nossa literatura o que até certo ponto conseguiu, se considerarmos a repercussão alcançada por seus livros. Diante dos seus famosos “Corpo de Baile” e “Grande Sertão: Veredas” sinto-me um analfabeto. Várias vezes tenho-me preparado para gozar as delícias desse novo mundo, mas me engancho miseràvelmente oito ou dez páginas adiante. Quer me parecer - sem que isto implique em desconsideração à obra – que o número dos eleitos é bem pequeno. Até hoje não encontrei um leitor comum que conseguisse traduzir a linguagem desse poderoso escritor mineiro. Todos se queixam da mesma dificuldade; todos acham que a língua é estranha e extravagante a sintaxe (idem, p.58-A).

Durante a pesquisa, encontramos também os depoimentos de dois escritores contemporâneos, muito diferentes entre si. Pedro Bial, jornalista e autor do filme
Outras estórias e do documentário Os nomes do Rosa, em entrevista a Marcos Cesana, da Revista Cult , afirmou:

- Quanto mais o Guimarães Rosa for lido, melhor. Ele é um autor sensacional [...] As pessoas têm de parar com essa impressão de que o Rosa é um autor dif ícil. Ele é um prazer
(CESANA, 1999, p.9).

Já o escritor Cristóvão Tezza, professor na Universidade Federal do Paraná, em entrevista publicada em O Estado de São Paulo revela: “Jamais consegui gostar de Guimarães Rosa. Carrego até hoje o peso dessa vergonha” (TEZZA, 2006, p.D14). Esta afirmação sugere que, afinal, é embaraçoso confessar a dificuldade de ler e de gostar das obras do autor, pelo menos publicamente.

A seguir, apresentamos alguns conceitos teóricos que serão necessários para as análises dos contos de
Primeiras Estórias . Já que, algumas vezes, os textos sugeriam dois momentos de análise – um morfológico e outro sintático -, optamos por manter esta divisão na fundamentação teórica, lembrando que ela é artificial, uma vez que, durante o estudo da língua, trabalhamos em um terreno morfossintático, em um constante movimento de vai-e-vem. O processo é semelhante ao movimento descrito por Flávia Carone a respeito da descrição das línguas, a qual

deve conduzir à sistematização e à classificação de todos os seus aspectos, inclusive dos recursos gramaticais de que o sistema dispõe, que lhe possibilitam entrar em processo. Como se vê, esse trabalho vai e volta: parte da observação do processo para chegar ao conhecimento do sistema: Esse conhecimento, por sua vez, permitirá a compreensão do processo em todo o seu dinamismo
(1991, p.17).

Assim também os fenômenos morfológicos aliam-se aos sintáticos e uns permitem compreender os outros. E, em nossa análise, é preciso não esquecer do leitor que, olhando para os fatos morfossintáticos, terá acesso facilitado ao sentido do texto."

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Fonte:
MARIA BEATRIZ PACCA: “LINGUAGEM E INVENÇÃO EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, para obtenção do título de Doutor em Letras (Área de concentração: Filologia e Lingüística Portuguesa). Orientadora: Profa. Dra. Jeane Mari Sant´Ana Spera). Assis, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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