“Quanto à representação feminina, peça fundamental nesta e noutras obras de Graciliano Ramos, vale destacar elementos como a sexualidade e a maternidade, tão intrinsecamente ligadas ao papel feminino. Causa a princípio estranhamento a maneira através da qual o narrador de Infância refere-se à mãe - sem nenhum traço de nostalgia ou mistificação. Descreve-a como seca, feia e má. Incapaz de receber ou dar manifestações de carinho.
Em Angústia, retomando o tratamento desmistificador dado à maternidade e à gravidez, a mãe não é citada. Quando a tratar da maternidade e da gravidez, refere-se às negras que pariam nas esteiras e ao encontro marcante e fortuito com a mulher grávida, a quem Luís da Silva fere o olho acidentalmente. As associações e fantasias desencadeadas pela manifestação de ódio da mulher grávida dirigidas a Luís da Silva são duplamente, p. 127. transgressoras. Primeiro pela representação do corpo da mulher grávida, descrito como uma deformidade, do mesmo modo deformador com que o menino Graciliano descreve sua mãe em Infância:
Era uma mulher gorda, amarela, mal-vestida, com uma barriga monstruosa. A saia, esticada na frente, levantava-se exibindo pernas sujas e inchadas. Os pés sujos e inchados, cresciam demais dentro dos sapatos cheio de buracos. (Angústia, p.160)
Segundo, por desmistificar a maternidade, geralmente associada a sentimentos de ternura. Não é com ternura que Paulo Honório se refere à velha Margarida:
A velha Margarida mora aqui
A gravidez indesejada de Marina, igualmente, provoca sensações de asco em Luís da Silva:
Estava ali, enojada, cuspindo, apalpando a barriga e os peitos intumescidos. (p.140) Todo o corpo era um instrumento de desgosto. O pé da barriga endurecido, uma coisa apertando-lhe a cabeça como esses aparelhos de suplício que se usam no sertão. Eu sentia raiva, aborrecimento, piedade e nojo. E cuspia, como Marina. (p. 168)
Em relação à representação feminina, mais uma vez nossa memória de leitura não pode se furtar em estabelecer uma ponte entre Marina (enquanto signo, já analisado pelo próprio narrador) e Capitu. Ambas estão associadas semanticamente à água. A primeira, ao caráter angustioso e mortífero deste elemento, a segunda ao caráter sedutor e traiçoeiro – os “olhos de ressaca”. A primeira em relação ao caráter erótico e desencaeador da agressividade de Luís da Silva (Marina: arma e ira). A segunda, Capitu, é enigmática (ao caráter simplório de Bentinho) e ama os “holofotes” sociais, à semelhança de Marina.
As personagens que representam a figura materna, a saber: Sinhá Vitória (Angústia), a velha Margarida (São Bernardo), e as pretas que eram assediadas pelo patriarca Trajano Pereira de Aquino Cavalcante (avô de Luís da Silva) são criaturas que estão distantes da imagem de ternura que a maternidade poderia evocar. Esta quebra da leitura convencional de determinados tipos humanos obriga o leitor a abandonar suas disposições habituais. Há um “choque” entre imagens pré-concebidas e as imagens provocadas pela representação literária. A leitura de textos como estes não permite a fruição desinteressada, nem uma aceitação passiva do julgamento alheio. Antes obriga o leitor a uma tomada de posição.
Eis o caráter de prazer desencadeado por textos como esses."
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Fonte:
Maria Núbia da Franca Macedo: “O leitor e a experiência estética
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
A representação feminina em Graciliano Ramos
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TESES E DISSERTAÇÕES
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