Graciliano e a representação do sertão



“O primeiro momento em que o autor de Caetés tematizou de maneira clara e efetiva a desconstrução da imagem que, rotineiramente, fazia-se sobre o sertão, nos relatos românticos, foi na crônica “Sertanejos”, publicada no primeiro número da revista alagoana Novidade, em abril de 1931. Neste texto, Graciliano contrapõe a imagem do interiorano, difundida nas cidades litorâneas por jornalistas e literatos “que nunca estiveram no interior”, àquela que seria a verdadeira representação do matuto, “sem nenhum pitoresco”, dada por ele. Para construir tal retrato supostamente fiel, o narrador invoca suas origens sertanejas, reforçando o efeito de real. Trataria de criaturas comuns e se distanciaria do “produto literário”, estereotipado e ficcionalizado, construído na capital:

Essa mistura de retirante, beato e cangaceiro, enfeitada com patuá, duas alpercatas e muitas figuras de retórica, torna-se rara. Os homens de minha terra podem ter por dentro a cartucheira e os molambos, mas exteriormente são criaturas vulgares sem nenhum pitoresco.

O seu relato, portanto, pretende afirmar-se quase como um documento em contraposição ao conhecimento “falso” que se produzia sobre o sertão e que era veiculado em livros e jornais. Para tanto, sem abdicar da ironia e do deboche, adota certa perspectiva sociológica que procura enquadrar e tipificar os habitantes daquele espaço. Inicialmente, retoma de maneira breve e genérica o passado destes para, em seguida, deter-se em imagens e situações que transmitiam a sensação de contemporaneidade:

Os sertanejos dos campos estiveram no Amazonas, em São Paulo e no Espírito Santo; tiraram borracha, plantaram café, voltaram com maços de notas e dispostos a esbanjá-las depressa. Alguns, incapazes de exercícios pesados, meteram-se no exército e na marinha, e os que haviam ido à cadeia e levado pancada, entraram na polícia e vingaram-se.
Todos esses sujeitos regressaram muito sabidos, estranhando tudo, falando difícil, desconhecendo os amigos, ignorando os nomes dos objetos mais corriqueiros, confundindo bode com onça. Naturalmente não quiseram mais criar bodes. Tornaram-se negociantes ambulantes ou adquiriram um pedaço de terra e foram explorar o trabalho dos outros.

Se ao apresentar os sertanejos como seres vulgares, figuras existentes em qualquer lugar, Graciliano procurava retirar-lhes as camadas discursivas de “pitoresco” que os recobriam e, indiretamente, aproximá-los dos habitantes do litoral, em sentido oposto, não deixa também de se reportar a eles mediante um viés crítico e depreciativo:

Falam demais não ganham quase nada e começam a sentir necessidades exorbitantes. Têm rodovias, estradas de ferro, luz elétrica, cinema, praças com jardins, filarmônicas, máquinas de escrever e pianos. Só faltam escolas e hospitais. Por isso os sertanejos andam carregados de muita verminose e muita ignorância.

Dessa maneira, o articulista parece orientar-se por certa perspectiva da escola realista européia (seu maior modelo seria Eça de Queirós), acreditando que apenas certo viés “pessimista” de representação do mundo seria autêntico. Daí privilegiar certas tópicas de desacerto como índices de aderência a uma suposta representação “verdadeira” do real. Por essa lógica, ao mesmo tempo em que valorizava a experiência “concreta”, deveria adotar uma postura crítica, caso quisesse conferir verossimilhança artística a seu texto e distanciar-se do produto literário, aludido anteriormente. Para tanto, detêm-se, principalmente, na exposição da incongruência de uma prática comum no sertão (e também nas capitais litorâneas): a adoção de hábitos e modos importados por seus moradores que, por sua vez, seriam incompatíveis com o meio precário e atrasado em que viviam. Diagnostica que seria melhor abandonar os estrangeirismos, o progresso ilusório propagado pelas fitas americanas, e retornar às práticas e costumes regionais, os quais melhor se ajustariam à conjuntura pobre e tacanha retratada. No que diz respeito a esse último o aspecto, Graciliano parece distanciar-se dos posicionamentos estéticos de Távora. Por mais que promovesse a observação, em detrimento da imaginação e do gênio criativo, o autor de O matuto ainda apresentava uma visão idealizada do belo literário, como pode ser observado no trecho abaixo:

Segundo penso, meu amigo, e me parece recomendar a estética, o artista não tem o direito de perder de vista o belo ou o ideal, posto que combinando-o sempre com a natureza (...) Li um precioso livro, intitulado – A ciência do belo – por Lévêque (...) Nunca mais me esqueci de um pedacito que lá vem, concebido nestes termos: “Se o artista não é senão o arrolador da vida de todos os dias, quero antes a vida em si mesma, que é viva, e onde não me demorarei com a vista senão sobre o que me interessar”.

Portanto, ao mesmo tempo em que crítica, de maneira metonímica, certos pilares do Romantismo, presentes nas obras de Alencar, ainda estaria influenciado pela crítica romântica e por certa visada oriunda da filosofia idealista."

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Fonte:
Thiago Mio Salla: “O FIO DA NAVALHA: Graciliano Ramos e a revista Cultura Política” - Volume I (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Ciências da Comunicação, Área de Concentração “Teoria e Pesquisa em Comunicação”, Linha de Pesquisa “Estética e História da Comunicação”, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Ivan Prado Teixeira). São Paulo, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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