Anhanguera, " o diabo velho"


O texto postado, a seguir, é de autoria de um pseudônimo denominado "Brasiliophilo", e foi escrito no remotíssimo ano de 1903, ou seja, há mais de 100 anos. O nome "Brasiliophilo", em si, já nos remete à ideia de nacionalismo, e ninguém melhor do que os velhos bandeirantes paulistas para representar esse sentimento que durante o século XX fora motivo de guerras e outras atrocidades, como no caso da Alemanha de Hitler.
Os bandeirantes foram tomados como símbolo dos ideais nacionalistas dos paulistas quando na luta contra o regime getulista, na chamada Revolução Constitucionalista de 1932. O texto trata especificamente da personagem
Bartolomeu Bueno da Silva, denominado pelos índios de "Anhanguera", por sua extrema crueldade. Os bandeirantes foram verdadeiros sanguinários, que assassinaram uma quantidade enorme de índios durante suas aventuras em busca de ouro.
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O bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, apelidado pelos índios de "Anhanguera"

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Anhanguera
Na vasta lista dos gloriosos e inolvidáveis batedores de bosques brasileiros, que a historia apelidou bandeirantes paulistas, que, em todos os sentidos, percorreram os imensos sertões da América Meridional, durante os séculos XVII e XVIII; merece especial menção Bartolomeu Bueno da Silva, o tipo mais bem acabado do verdadeiro explorador paulista.

Era filho legitimo de Francisco Bueno e de d. Felipa Vaz, ambos da mais preclara ascendência. Pelo lado paterno, era sobrinho de Amador Bueno, celebre pôr ter recusado o cetro de sua pátria, cetro que poderia perfeitamente sustentar se fosse homem de ação ou se tivesse uma parcela de ousadia e ambição, que constituíam o fundo de seu descendente Bartolomeu Bueno.

Nasceu este nosso ilustre explorador na vetusta vila de Parnaíba, onde residiam seus pães, e onde tiveram o berço muitos outros bandeirantes notáveis.

Bartolomeu Bueno da Silva, herdeiro de todo o gênio empreendedor e ardido de seus patrícios, era apaixonado de viagens aventurosas e fragueiras e atirou-se de corpo e alma és expedições, cujo fim, a principio, era capturar e escravizar selvagens, e depois descobrir minas de ouro e jazidas de pedras preciosas.

Dominado pela ambição e fascinado pelo brilho do ouro, abnegou-se de tudo, esqueceu se da família e da própria vida e atravessou uma existência toda cheia de perigos e aventuras romanescas, que o elevaram á categoria de herói de legendas.

Os selvagens horrorizavam-se só de ouvir pronunciar seu nome. Sua carreira temerária foi uma serie continua de atos de bravura, de valentia e, algumas vezes também, de crueldades, que ficaram memoráveis e que levaram 0s íncolas a denominá-lo — Anhanguera diabo velho, pois acreditavam que suas exterminadoras viagens eram inspiradas e sustentadas por Anhangá,, o gênio do mal.

Organizou muitas bandeiras, reunindo sob um estandarte sanguinolento, mas civilizador, muitos paulistas destemidos, que, em busca de escravos e de ouro, impávidos afrontaram as envenenadas setas dos indígenas, encarniçados ataques das feras e as desconhecidas enfermidades dos desertos. Sem respeitar-esses obstáculos e muitos outros, como a severidade dos climas e o rigor das estações, Anhanguera e seus companheiros passaram longos tempos, embrenhados no coração das maltas virgens: abrindo picadas, que se converteram em estradas de grande transito, transpondo caudalosos rios, em canoas fabricadas na ocasião e logo após abandonadas, descendo e subindo íngremes montanhas, vencendo acidentes de todas as sortes, em procura de terrenos auríferos, estabelecendo choças em lugares impossíveis á vida, dos quais alguns vingaram e se tornaram florescentes núcleos de população.

Mesmo abstraindo-se os imensos serviços prestados à civilização e integridade pátrias pelas bandeiras paulistas, são incontestáveis os efeitos práticos que se originaram de suas invasões pelo interior. Seus benéficos resultados foram sentidos não só pela terapêutica. que enriqueceu com o conhecimento de novos produtos de nossa flora, como pela historia natural, que se ilustrou com os espécimes indígenas. A etnografia, até o presente, ainda não classificou precisa e positivamente a raça. a que pertencem os primitivos habitantes do Brasil, e as informações mais exatas e minuciosas que essa ciência possui sobre seus usos e costumes, foram fornecidas pelos bandeirantes.

Os próprios jesuítas no segundo século da colonização, nada mais fizeram do que aproveitar os hercúleos esforços dos paulistas, que, únicos e sem fraquejar, se incumbiram da grande missão do desbravamento das florestas, e que, sem levar bagagens e nem rumo certo a não ser o acaso, foram desalojar os silvícolas de seus formidáveis baluartes no fundo das brenhas, substituindo a barbaria pela civilização. Anhanguera, sobre ser dotado de grande subtileza de espírito, era astucioso.

No percurso de suas demoradas viagens, nas solidões do interior, conviveu longos nos com varias tribos e tratou com os pagês, instruindo-se bastante nas virtudes medicinais das plantas silvestres e tornando-se muito versado na língua tupi, que até os meados do século passado ainda era muito corrente em S. Paulo. Todas suas empresas foram coroadas de brilhante sucesso. Descobriu grande numero de minas de ouro, pratas e outros metais, que então não eram explorado.

A vitória mostrou-se-lhe sempre propicia e benigna nos horrorosos combates, travados á sombra das selvas, combates desiguais e sanguinosos, que ele vencera mais pela intrepidez e tenacidade, do que pela força e numero dos soldados.

Conquistou vários países, assenhoreados de antropófagos e ferozes índios e reduziu milhares deles à escravidão. “Só de uma vez, diz um escritor, Bartolomeu Bueno trouxe tantos presos, quantos bastavam para povoar uma vila”. O incansável batedor de bosques constituiu, em 1682, uma das mais notáveis bandeiras, a que se incorporaram muitos aventureiros, aos quais estavam reservados mil incômodos e mil empecilhos sobre-humanos, que só poderiam ser superados pela vontade incomparável daqueles extraordinários sertanejos.

Seguindo viagem, ora dirigindo-se a um, ora a outro ponto cardeal, levou consigo um filho de doze anos de idade, o qual se mostrou digno de seu torrão natal e de seu pai, de quem tinha o nome e de quem havia de herdar a gloria das grandes descobertas, o honroso epíteto, pelo qual fora posteriormente conhecido, e também a energia - máscula e o desinteresse, com que servira á coroa portuguesa, em prejuízo de si próprio e de sua família.

Esta bandeira ultrapassou as margens do Rio Grande, deparou grande copia de ouro, nas adjacências do Rio Vermelho e, prosseguindo em suas explorações, tornou-se muito celebre por ter sido a primeira, que entrou no território de Goiás, onde Anhanguera encontrou os soberbos Guaicurus, Índios habitantes do Paraguai, que faziam suas correrias a cavalo e adornavam os arreios com Ouro.

Anhanguera. possuído de voraz cobiça, procurou com afagos, presentes, promessas, todos os recursos a seu alcance, ganhar a intimidade dos chefes, captar-lhes a simpatia, afim de arrancar-lhes o segredo de suas minas, segredo que obstinavam a guardar e de forma alguma queriam revelar. Vendo o inteligente bandeirante que tudo seria baldado, que perdia seu tempo e seu latim, recorreu á astúcia, e pode triunfar. Convocou os maiores da tribo, mandou esvaziar em uma bacia um barril de aguardente e, ameaçando de incendiai seus rios e lagos, lançou fogo ao álcool, que começou a arder em vasto ponche.

Os indígenas aterados, julgando ser realmente água que ardia, prostraram-se vencidos aos pés do ardiloso aventureiro, a quem atribuíram desde logo poderes sobre naturais e confessaram a situação das minas, para onde partiu toda a comitiva e minerou, com grande facilidade, abundante quantidade de ouro.

Voltou esta feliz e memorável bandeira a S. Paulo, conduzindo grande leva de escravos e boa porção do precioso metal. Estava descoberta uma vasta região do patrimônio nacional, que devia jazer nas trevas muitos anos, até que o filho do primeiro descobridor, aquele menino de doze anos, que seguira o velho Anhanguera, mais tarde lá voltasse e construísse uma povoação persistente, começando a lapidar uma das mais valiosas jóias da Confederação Brasileira.

Em Parnaíba, findou sua lendária vida o velho Anhanguera, em fins do século atrasado. A ele cabe a grande e honrosa celebridade de ser descobridor de considerável porção dos estados de S. Paulo e Goiás, abrindo a antiga estrada, á beira da qual se ergueram importantes localidades, cujos habitantes ainda não se lembraram de ligar seu nome a uma rua ou praça, e assim transmiti-lo á posteridade. Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, morreu pobre e obscuramente, como soia acontecer a todos os paulistas, que gastavam sua fortuna e seus mais belos dias de vida ao serviço de Portugal. Tornou-se um herói fantástico, quase ideal, a personificação viva do valor e da astúcia, na tradição dos sertanejos. Em volta de seu nome sobrepõem lendas, mais ou menos verdadeiras e extravagantes, que, infelizmente ainda não foram compendiadas. Muito pouco teria de engendrar e excelente material encontraria o publicista, que quisesse dotar a literatura pátria com uma interessante obra, que tivesse como protagonista este colossal paulista, que tanto concorrera para nossa civilização, de que foi imortal benemérito.

Colocado no numero das entidades miológicas do país, tomando parte no elemento sobrenatural, tão querido á imaginação popular, Anhanguera é o vulto mais imponente e curioso das tradições pátrias. Nas epopeias rústicas, ele figura, ora como fantasma pavoroso, que escorrega silencioso e oculto por entre intrincado sipoal, no mais dentro das florestas, para desbaratar e cativar as hordas indígenas, que aí viviam, ora como o gênio que perscruta, com o olhar inquisidor, o leito dos rios e o fundo das montanhas, adivinhado onde estão as ricas jazidas de pedrarias e minas de ouro, para extrair as enormes riquezas destinadas á metrópole, para torna-lo forte e poderosa, para que mais subjugasse sua terra natal e lhe arrebatasse os elementos de vida, que a pudessem constituir em nação. (BRASILIOPHILO)

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Fonte:
Almanak Historico-Litterario do Estado de S. Paulo. Para o anno de 1903. Monteiro, Oscar (org.), disponível digitalmente no site da biblioteca: Brasiliana - USP

Nota:
Para melhor compreensão do texto, a ortografia utilizada na época foi atualizada para os padrões atuais.
O título inicial e a imagem não se incluem no referido texto.

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