Ação Educativa da Kathársis

Talvez a tragédia anuncie o primeiro esboço de um novo homem, esboço que a cidade e a filosofia cuidarão de bem desenhar. (GAZOLLA, 2003, p.16)

A função ética da mímesis trágica

Em sua Filosofia
da forma literária e em Gramática dos motivos, Kenneth Burke apresenta as designações tradicionais da estrutura da tragédia, a saber: Poiema, Pathema e Mathema. Analisadas filologicamente as palavras trazem em si uma carga semântica significativa para a articulação do estudo proposto. Poiema deriva de poiéu que pode ser entendido como fazer, fabricar, produzir, enfim, agir em benefício de fazer algo; Pathema deriva de páthos que deve ser entendido como um estado agitado da alma, ou seja, como paixão e, por fim, Mathema que significa estudo, conhecimento.

Percebe-se que os três momentos que compõem o ritmo de construção da tragédia podem ser traduzidos, portanto, como Intencionalidade, Passionalidade e Compreensão. De fato, o que se pode inferir dessa análise é a influência significativa que as argumentações de Sófocles sobre a tragédia humana tiveram sobre o pensamento ético do filósofo de Estagira.

É evidente que Aristóteles nutria por Sófocles grande admiração, pois sua Poetica não nos deixa qualquer dúvida sobre o que se afirma. A questão que se coloca é até que ponto Aristóteles pode ter utilizado o arquétipo edípico proposto por Sófocles para construir seu pensamento ético-político?

Para responder a essa pergunta cremos ser necessário compreender o sentido da mímesis e o lugar da poética enquanto gênero de ciência na perspectiva aristotélica.

A poética, para Aristóteles, está enquadrada na categoria de ciência produtiva. Como acima apresentado, poiéu (fabricar, produzir, fazer algo) dá origem à palavra poiema, que é a primeira parte da peça trágica, na qual o tragediógrafo apresenta ao público sua intencionalidade, ou seja, expõe a “fabricação” de todo o enredo. Esta palavra também dá origem ao termo poesia, que, para além do que pode ser compreendido, consoante acepção moderna não designa apenas uma modalidade de texto. De fato, o termo poiésis indica que essas ciências “ensinam a fazer e a produzir coisas, objetos, segundo regras e conhecimentos precisos”. Assim, a tragédia, enquadrada no campo da poética é definida por Aristóteles como uma arte (techné) e, sendo arte também é imitação (mímesis).

A imitação pensada pelo filósofo do Liceu deve ser entendida como crítica e superação à idéia de mímesis proposta por seu professor, Platão. Na República, livros II, III e X, Platão afirma que o poeta é simplesmente um imitador. Para o autor de O Banquete, todos os homens têm, em si, uma tendência, uma inclinação própria da alma; os poetas copiam as inclinações de todos, sem desenvolver nenhuma delas; assim o poeta não cria nem produz nenhuma arte, mas apenas copia as várias artes. É, pois, um imitador e, como tal, um falseador da realidade.

A poesia para Platão, portanto, é entendida como representação ilusória do real. Os poetas (e os trágicos, em especial) deveriam ser banidos da cidade idealizada pelo filósofo. Assim, confirmando o que asseveramos, damos a seguinte passagem do diálogo platônico em que Sócrates diz:

Quanto a esses versos e todos os semelhantes, pediremos que Homero e os outros não nos queiram mal por eliminá-los, não porque não sejam poéticos e o povo goste de ouvi-los, mas por que, quanto mais poéticos forem, menos deverão ouvi-los crianças e homens que devem ser livres e temer mais a escravidão que a morte. [...] Ainda pediremos a Homero e aos outros poetas que, em seus poemas, não apresentem Aquiles, filho de uma deusa, ora deitado sobre o flanco, ora de costas, ora de borco, ora pondo-se de pé, fora de si, errando pela margem do mar imenso com as duas mãos, nem pegando a cinza escura e esparzindo-a sobre a cabeça, nem chorando e gemendo [...] Mais que isso! Nós lhe pediremos que não apresentem deuses a chorar e a dizer: Ai, Pobre de mim, pobre de mim, infeliz mãe de um herói![...] Se lamentos como esses, caro Adimanto, nossos jovens ouvissem com seriedade, e não rissem deles como de palavras ditas de maneira inadequada, dificilmente um deles se julgaria, homem que é, indigno deles e não se censuraria, caso lhe ocorresse dizer algo semelhante. Ao contrário, sem sentir pudor e sem procurar conter-se, por pequenos que fossem seus sofrimentos, entoaria muitos trenos e lamentações.

Noutro momento do diálogo, novamente temos palavras atribuídas a Sócrates:

Dizer-vos (e não me denunciareis aos poetas trágicos e a todos os outros poetas imitadores...) que, ao que se vê, coisas desse tipo são uma violência contra a inteligência de quantos ouvintes não têm, como antídoto, conhecê-las tais quais são.

Essas situações presentes na República destoam exatamente da leitura que Aristóteles faz da funcionalidade das ciências poéticas e, em especial, da tragédia. Para o Estagirita:

a tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções.

Assim, o sentido dado à poesia por Aristóteles vem redefinir toda a tradição platônica, abrindo nova perspectiva para a poesia, agora “elevada” à condição de ciência e compreendida como modo interpretativo do real. Destarte, para o Estagirita, a poesia seria mesmo superior à História chegando aquele filósofo a afirmar que não é pela forma que se pode distinguir uma da outra, mas pelo grau filosófico presente em cada uma, como explicita em passagem assaz citada:

O historiador e o poeta não se distinguem por escrever em verso ou prosa; caso as obras de Herótodo fossem postas em metros, não deixariam de ser história; a diferença é que um relata os acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder. E é por esse motivo que a poesia contém mais filosofia e circunspecção do que a história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a segunda cuida do particular.

O que Aristóteles identifica na poesia como determinante para que esta tenha um grau filosófico maior que a história é o que Carmem Trueba apresenta como natureza idiossincrática da narração histórica. Para ela, essa característica do texto histórico dificulta “a identificação ou o envolvimento emocional do leitor com os acontecimentos e com as personagens”.

Dessa forma, na concepção do filósofo, a poesia, especialmente a trágica, tem seu valor justamente pela força reveladora intrínseca na tipologia de sua mímesis. Deve-se, contudo, clarificar o fato de que: “As ciências poéticas, em sua totalidade, somente de forma indireta interessam à filosofia. Constitui exceção as belas artes, que se diferenciam do todo das artes, seja na sua estrutura, seja no seu fim.”. Assim, para o Estagirita, algumas coisas que a natureza não realiza, a arte faz; outras, não sendo a arte capaz de fazer, imita da natureza.

A tragédia está, pois, na condição das artes que “‘imitam a própria natureza, reproduzindo e recriando alguns dos seus aspectos, com material plasmável, com cores, sons e palavras, e cujos fins não coincidem com os fins da mera utilidade pragmática.

Em artigo publicado em 1999, na Revista Catalã de Sociologia, Juan A. Roche Garcél diz:

Se a condição humana era característica da construção artística e do social, a tragédia vai ser responsável pelo aprofundamento no seu significado produzindo um sentido novo de homem; porque esta condição humana da qual fala a tragédia não é a cosmogônica presente no mito, nem a geométrica ou a harmônica da escultura ou da arquitetura, tampouco é unicamente a heróica da épica, nem exclusivamente a transcedental da filosofia platônica, mas sim uma condição mais dialética — e, portanto, mais real — do homem concebido, ao mesmo tempo, como um ser divino e um ser animal, dotado de uma grande dignidade e de uma grande insuficiência, como um ser ativo e um ser passivo.

Dessa forma a tragédia, em si mesma, oscilante em dois tempos distintos, envolve-se no processo de (re)construção do momento histórico da transição do mundo grego, agindo como elemento fundamentalmente crítico e espaço de discussão ético-político.

Ao recriar a realidade social da pólis, apresentando ao público questões universais sobre o agir humano, a tragédia radica-se, na perspectiva aristotélica, como meio funcional de educação. Uma educação pela purificação dos sentimentos de cada indivíduo frente ao problema de seu todo social. Porém, como bem lembra Gazol a, faz-se importante ter em mente que a tragédia, enquanto poesia está diretamente:

relacionada ao rito e ao mito, portanto à mimética sagrada; tem finalidades mítico–cívicas e não somente cívicas. Afinal, não podemos dizer que a pólis grega é essencialmente cívica (ou política) e não é mítica. Seria um anacronismo de nossa parte. O grego do século V a. C. tem o pensamento mítico, apesar de a estrutura das póleis já sinalizar em seus alicerces a possibilidade de um logos não mítico, como será o logos filosófico, posse de alguns poucos cidadãos.

Também essa é a perspectiva de Jean-Pierre Vernant e Vidal Naquet em Mito e Tragédia na Grécia Antiga livro no qual os autores afirmam não ser possível à tragédia “refletir uma realidade que, de alguma forma lhe fosse estranha”. Para ambos: “é ela própria quem elabora seu mundo espiritual”, uma vez que a “própria consciência trágica nasce e desenvolve-se com a tragédia”.

Dessa forma, ainda com Vernant e Naquet, tem-se:

O contexto [histórico], no sentido em que o entendemos, não se situa ao lado das obras, à margem da tragédia; está não tanto justaposto ao texto quanto subjacente a ele. Mais que um contexto, constitui um subtexto que uma leitura erudita deve decifrar na própria espessura da obra por um duplo movimento, uma caminhada alternada de idas e vindas. É preciso, em primeiro lugar, situar a obra, alargando o campo da pesquisa ao conjunto das condições sociais e espirituais que provocaram a aparição da consciência trágica. Mas é preciso, em seguida concentrá-lo exclusivamente na tragédia, nisto que constitui sua vocação própria: suas formas, seu objeto, seus problemas específicos. Com efeito, nenhuma referência a outros domínios da vida social [...] poderia ser pertinente, se também não se mostrar como, assimilando um elemento emprestado para integrá-lo à sua perspectiva, a tragédia o submeteu a uma verdadeira transmutação.

Dessa forma fica claro não estar, a tragédia, limitada às transformações que desempenha objetivamente como novidade tipológica daquilo classificado por Aristóteles como ciências produtivas. Para além, os modos trágicos (trópoi trágikoi) influenciam mesmo a própria realidade circundante, o convívio sócio-político dos assistentes das tragédias, levando-os a uma reflexão por meio da purificação das paixões, daquilo que deve ser universal ao bem da pólis.

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Fonte
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Tito Barros Leal de Pontes Medeiros: “MODOS TRÁGICOS: Édipo à luz das categorias da Ética a Nicômaco de Aristóteles”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de Pesquisa: Ética Fundamental Orientador: Prof. Dr. Jan Gerard Joseph ter Reegen). Fortaleza, 2009.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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