Alencar e a construção do conceito de nação

A estética romântica, como sabemos, originária das literaturas inglesa e alemã, na metade segunda do século XVIII, irradiou-se, depois, pela Europa, e, na primeira metade do século XIX, permeia as literaturas americanas. No Brasil, especificamente, proclama-se o Romantismo em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades – de Gonçalves de Magalhães, estendendo-se durante a segunda metade do século XIX.

No Brasil, como de resto em toda América Latina, o Romantismo são antecedidos por um período em que se desenvolveram vários movimentos visando à independência. Assim, a idéia de nação é concebida através da noção de pátria que , conforme Mariza Veloso e Angélica Madeira, “se materializa em uma territorialidade e se define pelas repetidas representações de uma identidade contidas na natureza incomensurável e selvagem dos trópicos”. A literatura produzida pelo Romantismo nesse momento, é pois, a expressão do já recém Estado nacional, ou melhor, os artistas românticos estão comprometidos com a construção da nacionalidade.

No dizer de Antonio Cândido, “o romantismo concebe de maneira nova o papel do artista e o sentido da obra de arte”. A nova maneira a que se refere, o emérito Professor, é o impulso de que ora é tomado o artista - a cor local atrai o escritor e é absorvida por ele - é uma disposição nova e consciente em que o escritor destaca o indivíduo, o senso da história e, sobremaneira, o sentimento relativo à terra natal.

Numa visão esquemática, observando-se em conjunto a produção do movimento do romantismo brasileiro, é-nos possível considerar a existência de três grupos, mais ou menos identificados às sucessivas gerações de escritores vinculados a essa escola literária.

Esses grupos, também denominados de gerações românticas, independentemente do estilo individual, gênero ou momentos vivenciados por seus respectivos partícipes, estão interligados por traços que, advindos de uma disposição e impulso similares, tornam- nos unificados, uníssonos. No entanto, o maior elo é a missão de que se incumbe cada escritor romântico. Ouçamos, palavras de Antônio Cândido: “A contribuição típica do Romantismo para a caracterização literária do escritor é o conceito de missão. […] missão puramente espiritual, para uns, missão social, para outros”.

José de Alencar, como já ressaltado neste trabalho, reconhece tal missão, o que fica claro ao afirmar em “Bênção Paterna”: “ […] a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo”. Pois, para o escritor cearense éramos, até então, “uma nação oca”, sem “poesia nativa” e sem próprio perfume.

Por isso, o autor de Iracema procurará desenvolver um labor literário que supra à nação aquilo de que ela carece. Esse trabalho de Alencar dentro do Romantismo, torna-o incontestavelmente o expoente maior desse movimento.

O autor contribui de forma decisiva para a formação de um público ledor e oferece-lhe um texto que se pretende genuinamente brasileiro, porque a cor local faz-se presente, despontando em cada página, seja do romance da crônica ou do teatro, os nossos costumes urbanos e regionais, nossa gente, enfim a vida da nação.

Ainda nos bancos da Faculdade de Direito, Alencar publicou, na Revista Ensaios Literários, artigos referentes à crítica literária (questões de estilo) e a história (sobre o índio Camarão). Na Faculdade, em 1848, escreve Os contrabandistas, romance infelizmente não publicado, uma vez que se perderam os seus originais. Nesse mesmo ano, inicia a escritura de Alma de Lázaro e o Ermitão da Glória- romances históricos.

Mas as idéias alencarianas, a priori, vieram à lume por meio do jornalismo. Aos 21 anos, já advogado, Alencar envia seus primeiros artigos, como colaborador, ao Correio Mercantil, para o qual fora levado pelo amigo de Faculdade, poeta e político, Francisco Otaviano. Ali, Alencar escrevia sobre Economia Política, Gramática, Literatura... sobre o que apresentasse relevo para o Brasil. Em 1854, estréia em uma nova secção de folhetim daquele jornal. Assina Ao correr da pena – Crônicas - que rende ao jornalista José de Alencar sucesso imediato, tamanha foi a aceitação do público leitor.

O folhetim, uma combinação de literatura e jornalismo, era o gosto do público da época, e Alencar elaborava suas crônicas folhetinescas com engenho, elegância e talento. Cedo brota o traço distintivo do trabalho alencariano: a consciência. Como indica Araripe Júnior:

José de Alencar não foi um poeta inconsciente, e esta única proposição será suficiente para explicar toda sua vida literária. Obedeceu precocemente a uma vocação, sentiu-se forte, dirigiu suas faculdades e tornou-se um artista consumado. À obra antecedeu um pensamento a natureza exterior não veio a ele, não o coagiu. Foi ele que correu ao seu encontro, abriu-lhe os sacrários e tomou-lhe as cores com que havia de dar formar ao vago de suas inspirações.

Alencar, através do jornalismo, treina o exercício do escrever consciente. Mostra a cultura e o conhecimento amplo e eclético advindos dos estudos e do arguto senso observador. Ensaia os primeiros passos do destro manejar da pena, que suscitaria um cânone para as letras nacionais.

O autor deixa prenunciar nessas crônicas os laivos que se farão presentes em seu ulterior trabalho literário. Como por exemplo, a preocupação com uma linguagem nacional e a retratação de elementos que são considerados por ele como a essência da alma da nação. Tais crônicas são o espaço propiciado a Alencar, para que ele amalgamasse seu próprio estilo. É-nos possível extrair, por exemplo, em Ao correr da pena inclinações e gênese do fazer literário que mais tarde se materializariam, principalmente nos romances alencarianos.

Leiamos, à guisa de ilustração, o trecho duma crônica escrita no Correio Mercantil de 8 de julho de 18:

Vi ao longe os mares que se alisavam, as montanhas que se erguiam as florestas virgens que se balouçavam ao sôpro da aragem, sob o céu límpido e sereno, a obra de deus não tinha ainda sido tocada pela mão dos homens. Apenas a piroga do índio cortava as ondas e a cabana selvagem suspendia- se na escarpa da montanha.

O excerto, acima, parece desvelar a origem dos romances indianistas de Alencar. Também é possível identificar-se no trecho a seguir elementos que mais tarde comporão o binômio campo versus cidade, tema por demais explorado pelo autor em sua obra.

Aí se eleva a espaços pela abas das montanhas ou pelas margens de algum rio a fazenda do agricultor, onde se vive a verdadeira vida do campo, onde as horas correm isentas de cuidados e atribuições, no doce remanso de uma existência simples e tranqüila.

A carreira jornalística de Alencar, já cristalizada com o sucesso de suas crônicas, toma maior força quando o escritor transfere-se para outro jornal desempenhando as funções de gerente e redator-chefe.

Alencar dá continuidade à produção de suas crônicas de folhetins no Diário do Rio de Janeiro. Em 1856, Gonçalves de Magalhães, poeta consagrado, publica a Confederação dos Tamoios, obra produzida, sob a encomenda e à custa de Dom Pedro II, para ser o protótipo da poesia nacional. Essa obra de Magalhães suscita a célebre polêmica em que Alencar, através do Diário do Rio de Janeiro e sob o pseudônimo de Ig, publica uma série de críticas ferrenhas ao poema gonçalvino.

Segundo Aderaldo Castelo, o objetivo de Alencar ao polemizar era, senão outro, conduzir “os críticos escritores da época a uma tomada de posição em face do romantismo brasileiro, particularmente do indianismo que o caracterizava tão bem”. Objetivo atingido. Várias pessoas tomam posição, inclusive também em defesa do poeta. Entre os defensores de Gonçalves de Magalhães, destaque-se o “outro amigo do poeta”, pseudônimo utilizado por Dom Pedro II. Gera-se, assim, o primeiro de uma série de conflitos entre José de Alencar e o detentor da coroa do Império Brasileiro.

Em momento ulterior deste trabalho, abordaremos alguns dos conceitos e posições que constituíram a polêmica sobre A Confederação dos Tamoios que serviu, também, para expor a doutrina literária de Alencar, por meio da qual se pode ver o autor se definindo como escritor. No mesmo ano de 1856, Alencar, jornalista e advogado, escreveu a Biografia do Marquês de Paraná, A constituinte perante a História e traz à luz, seu primeiro romance, Cinco Minutos.

A partir dessas publicações, o processo da escritura alencariana amplia-se. A atividade literária torna-se uma incumbência, o labor literário será expressão do autor consciente do seu tempo e do papel que cabia a sua pena. Indubitavelmente, é no Alencar jornalista que encontramos os traços definidores do estilo, da individualidade do autor de Cinco Minutos. Estilo cuja procedência encontra abrigo na extraordinária capacidade de criação, de invenção do autor. E em seu espírito atento a todas as imagens da vida, da vida nacional em particular.

Por isso, também, a profusa criação de Alencar laureia as letras nacionais, e a nós todos, com vasta produção que emoldura sua vida nas áreas mais distintas: crônicas, romance, teatro, direito, jornalismo, política, crítica e ensaios literários, artigos vários em jornais e revistas, discursos, pareceres jurídicos. Toda essa produção surge graças a uma assombrosa disposição de trabalho, em apenas, pouco mais de duas décadas.

Sua estréia literária, em 1856, foi marcada por enorme aceitação dos leitores que, assinantes do Diário do Rio, receberam Cinco Minutos como brinde de fim de ano, no dizer do próprio autor, “mimo de festa”. Motivado pela recepção dessa obra junto ao público, no ano seguinte, Alencar lança os primeiros capítulos, também em forma de folhetim, de A Viuvinha - obra, em parte, vítima da prematura e acidental publicação por Leonel, irmão de Alencar -. Por esse motivo, o escritor interrompe a escritura dessa obra propositadamente, concluindo-a três anos depois.

Ainda, no mesmo 1857, o novo e animado escritor, num exercício prático do que teoriza sobre a literatura nacional e sobre o índio, quando de suas cartas sobre A Confederação dos Tamoios, o escritor publica, inicialmente em folhetins, O Guarani. O impacto causado por O Guarani pode ser mensurado ao ouvirmos Visconde de Taunay:

[…] e ainda vivamente me recordo do entusiasmo que despertou verdadeira novidade emocional, desconhecida nessa cidade tão entregue às exclusivas preocupações do comércio e da bolsa, entusiasmo particularmente acentuado nos círculos femininos da sociedade fina e no seio da mocidade […] o Rio de Janeiro em peso, para assim dizer, lia O Guarani e seguiacomovido e enleado os amores tão puros e discretos de Ceci e Peri e com estremecida acompanhava, no meio dos perigos e ardis dos bugres selvagens, a sorte varia e periclitante dos principais personagens do cativante romance […] quando a São Paulo chegava o correio com muitos dias de intervalos, então, reuniam-se muitos estudantes numa República em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do Rio, para ouvirem, absortos e sacudidos, de vez em quando, por elétrico frêmito a leitura feita em voz alta por alguns deles, que tivessem órgão mais forte. E o jornal era depois disputado com impaciência e, pelas ruas, se viram agrupamentos em torno dos fumegantes lampiões […] - ainda ouvintes a cercarem, ávidos, qualquer improvisado leitor.

Essa elevada receptividade do público ledor a O Guarani rende ao seu criador, de súbito, grande notoriedade. O Alencar romancista ascende repentinamente no gosto e na preferência dos leitores. Isso lhe confere o lugar supremo de nossas letras, superando, inclusive, o autor de A Moreninha, o respeitadíssimo Joaquim Manuel de Macedo, que se encontrava no auge de sua carreira literária, sendo, aliás, lido e exaltado por Alencar.

Todavia, a acolhida a O Guarani não se deu de igual modo junto à imprensa, que fingia não perceber o fulgor do jovem escritor. Alencar lamenta, em mais de uma ocasião, o fato de o romance não merecer qualquer elogio, crítica ou notícia nos jornais.

Naquela época, os jornais – e seus folhetins – dedicavam espaço irrestrito ao teatro. O romance, porém gênero recém inaugurado entre nós, não recebia igual atenção. Parece que isso explica, adicionado ao fato de ter granjeado admiração e afago das gentes brasileiras, a inclinação de Alencar por produzir em jorro, e tentar o mesmo sucesso, no gênero dramático. E coube-lhe dar o tom de brasilidade de cuja falta se ressentia o nosso teatro. Desviando-se, momentaneamente, do romance, Alencar parece querer atender à solicitação do público ao enveredar-se pela produção teatral. Seu espírito dado à polêmica, ao desafio, à luta e à alma sedenta de reconhecimento conduzem o poeta ao palco.

Datam também de 1857, a opereta Noite de São João, as comédias Verso e Reverso, O Crédito e o Demônio Familiar. E, do ano seguinte, o drama As asas de um anjo.

A estréia de Alencar foi alvissareira e prenunciou um traço novo para o teatro da época. O caráter social de seus textos leva à reflexão e, segundo Machado de Assis, inspira profundas lições:

A primeira representação foi anunciada sem o nome do autor, e os aplausos com que foi recebida a obra animaram-lhe a vocação dramática; daí para cá escreveu o autor uma série de composições que lhe criaram uma reputação verdadeiramente sólida. Verso e Reverso foi o prenúncio; Não é de certo uma composição de longo fôlego, é uma simples miniatura, fina e elegante,uma coleção de episódios copiados da vida comum; ligados todos a uma verdadeira idéia de poeta. [...] Vero e Reverso não se recomenda só por essas qualidades, mas também pela fiel pintura de alguns hábitos e tipos da época; alguns deles tendem a desaparecer, outros desapareceram e arrastariam consigo a obra do poeta, se ela não contivesse os elementos que guardam a vida, mesmo através das mudanças do tempo.

Machado de Assis, ao tecer análise de O Demônio Familiar, encontra nessa peça uma denúncia contra a escravidão:

Não supomos que o Sr. Alencar dê às suas comédias um caráter de demonstração, o é o destino da arte; mas a verdade é que as conclusões do Demônio Familiar, como as conclusões de Mãe,têm um caráter social que consolam a consciência; ambas as peças, sem saírem das condições de arte, mas pela própria pintura dos sentimentos e dos fatos, são um protesto contra a instituição do cativeiro.

Percebem-se que os elementos advindos de leitura, a alma sensível do autor, aberta e atenta às questões sociais, sempre a captar as imagens da cor local, o espírito inventivo são predicativos decisivos para a abundante criação alencariana nas mais diferentes áreas em que ele atuou. Assim, ainda que o viço da fantasia poética esmaecesse ante os palcos, não foi diferente em relação ao teatro, para o qual produziu entusiasticamente. A ponto de Alencar, temporariamente, esquecer a escritura de romances.

No ano de 1860, há alguns eventos que marcam a vida de José de Alencar. Podemos evidenciar o falecimento, no dia 15 de março, do senador José Martiniano, o pai do escritor. Em novembro, Alencar viaja à terra natal para, em pleito, conquistar uma cadeira de deputado. A viagem a Fortaleza merece relevo ainda por dois outros motivos. O primeiro é que o contato com a terra que lhe servira de berço proporciona a Alencar o reencontro com as paisagens que adornaram sua infância, suscitam-lhe as reminiscências. Os mares bravios, a serra, os carnaubais, o sertão, lembranças do menino de outrora - preciosas imagens - afloram à mente do autor. É o princípio da gênese da monumental obra Iracema, que depois viria à luz. A Mecejana, berço natalício, o Alagadiço Novo conferem a Alencar renovadas forças. O outro motivo, também importante, porque repercutirá no futuro, faria que, nessa viagem, aquele que se tornaria da chamada geração de 70, ao nosso entender, o maior dentre os críticos da constelação do século XIX, que inclui Sílvio Romero e José Veríssimo, aquele que escreveria sobre a vida e obra de Alencar, o melhor e mais justo trabalho, Tristão de Alencar Araripe Júnior então com 11 anos, conhecesse contemplativo, o famoso tio de quem lera em êxtase O Guarani. Mais tarde Araripe Júnior afirmaria:

Considero essa data como um acontecimento em minha vida. Na minha ingenuidade de criança, julguei-o mais do que um homem; e porque o Guarani, o primeiro romance que li, já grandes sulcos traçara em meu tenro espírito, pensei que o autor de coisas tão bonitas mal poderia roçar a terra com os pés. Esta circunstância influiu de um modo decisivo sobre a minha vida futura. […] José de Alencar viveu na minha alma, durante essa época, com um vigor indizível; povoava-a inteiramente. A sua imagem absorvia-me, os seus livros roubavam- me as horas mais preciosas; e, pensamento que não viesse vazado pelos moldes que lhe eram peculiares, repelia-o meu espírito como ao amargo a boca. Era que o seu estilo fluente e suavíssimo embriagava-me como sutil veneno; minha alma estava de todo saturada.

Alencar volta à Corte, como deputado, e a Câmara emudece, por algum tempo, a pena do escritor. O homem político furta-lhe o ser literário. A tribuna da Assembléia Geral nas sessões que se estenderam de 1860 a 1863, parece não fazer bem ao verbo e a imaginação do autor, embora tenha conseguido impor-se como um dos oradores mais respeitados, o brilho não é o mesmo, não é espontâneo.

Mesmo à época em que esteve dedicado à prática política, como deputado e, posteriormente, Ministro da Justiça, Alencar jamais abandonou a arte literária. Nesse período registra-se, talvez, a maior frustração do escritor. Almejando o senado, teve seu nome preterido pelo Imperador Pedro II. O fato levou Alencar a afastar-se do cenário político. A família e a literatura são contempladas, a partir de então, com exclusiva dedicação.

A curta vida (1829- 1877) de José de Alencar, e sua vasta obra, pela ótica da história, situam-se, como vimos antes, quase totalmente em período de relevância extrema para o Brasil. O país experimentava intenso e movimentado desenvolvimento, o qual aparece admiravelmente bem retratado na obra alencariana, notadamente em seus romances, espécie de documentário da vida brasileira naquele ínterim.

Destarte, em pouco mais de dois decênios (os de 60 e 70) Alencar erigiu, ambientada na estética do Romantismo, sua monumental obra, um legado para a cultura da nação cujos contornos ele ajudara na fundação e definição. Na sua obra evidencia-se a sociedade burguesa da corte do Segundo Reinado, a natureza brasileira, a sociedade rural e a sociedade fidalga dos tempos coloniais. Esses elementos integram o cenário, através do qual se pode dividir, consoante o próprio autor, no prefácio dos Sonhos D'Ouro, a sua obra de ficção em quatro linhas: romance urbano, romance indianista, romance nacionalista e romance histórico.

Não julgamos necessário abordar cada uma dessas linhas do romance alencariano, embora tenha cabido ao autor de O Guarani estabelecer essa espécie do gênero narrativo entre nós, contributo essencial ao Romantismo no Brasil. É bem verdade que Joaquim Manuel de Macedo lançou os fundamentos da ficção brasileira, enquanto Alencar deu a ela maturidade, mesmo estabeleceu-a, elevou-a à categoria de arte. É por meio de Alencar que o romance nacional, ao tempo que ultrapassa o modelo do improviso e do diletantismo, concomitantemente vai firmando um estilo nacional mediante aproveitamento dos modismos lexicais e sintáticos da língua falada pelo povo. Sem sombra de dúvida o Romantismo Brasileiro teve como amálgama a obra alencariana.

Todavia, é necessário asseverar que por meio dessas distintas tendências, sobre as quais se assenta a obra de ficção do autor, é que Alencar fotografa a nação com cores que imitam a realidade sócio-político-econômica do Brasil. Também podemos afirmar que a linha do Romance Indianista, em conseqüência da relevância que apresenta para a construção e afirmação da idéia de nacionalidade, mesmo que a possamos enquadrá-la dentro de uma perspectiva histórica, essa linha reclama para si distinção. Nessa modalidade de romance, Alencar tem a preocupação de fixar, assegurar e exaltar o nosso passado nacional, definir nossas origens históricas e étnicas. As personagens autóctones, embora produto da capacidade criadora e da imaginação do autor, representam, ou expressam as nossas raízes mais profundas. É que nesses romances indianistas Alencar focaliza os primeiros habitantes de nossa terra e seus contatos com o europeu colonizador. Simbolicamente Alencar reconstitui o surgimento do povo brasileiro através da miscigenação, da união (pacto entre duas etnias) do branco colonizador (Europa) com o nativo (América). Aqui as personagens (indígenas) são transfiguradas pela imaginação de autor. A paisagem é-nos apresentada com vivos e fortes traços poéticos; nossa floresta é refúgio de maravilhas e de salvação. Dela Alencar extrai fartamente os fulgores e ritmos que fariam desse escritor não só o precursor, mas a figura central da literatura romântica nacional.

O indianismo foi o instrumento conscientemente utilizado por Alencar para que fosse criada uma independência mental em nossa pátria que, livre das amarras políticas de Portugal, ainda se encontrava refém dos padrões lusitanos, no plano da expressão cultural. O enredo dos romances indianistas alencarianos gira em torno do amor e da aventura; ingredientes próprios do Romantismo, encontrados em O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1864). O Guarani (primeiro grande sucesso literário) exibia como subtítulo “Romance Brasileiro”, abordando a tem tica indigenista. É a obra nacional, que conforme Alencar, não poderia ser epopéia – gênero literário alheio à nossa realidade -. Sobre O Guarani, diz o próprio autor: “N'O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça.”

O romance indianista alencariano revela bem um dos traços do Romantismo nacional: a introdução e valorização, por meio da literatura, de elementos típicos das terras brasileiras, onde se evidenciam nossa fauna e flora. Revela também traços de nacionalismo através da linguagem, que trabalhada, adredemente, distancia-se do lusitanismo corrente. Observemos, à maneira de ilustração, o fragmento extraído do capítulo IV de O Guarani, intitulado “A caçada”, por meio do qual pode-se constatar o que se afirmou acima:

Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, aí se passava uma sena curiosa. Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade. Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até o meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem. Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência.

Desse modo e tendo em mente a construção do nacional, o autor lança mão de elementos como a figura do índio, a valorização da natureza brasileira, a preocupação com a cor local e com a atribuição de cunho brasileiro à língua portuguesa, por exemplo. Esses elementos que, conscientemente são elaborados por Alencar, percorrem não só extrato que nos serviu para ilustração, mas toda a textura de O Guarani. Pode-se asseverar: Alencar intenta mesmo a criação de um mito brasileiro, o qual atendesse a sua ideologia nacionalizante de que o autor é precursor e difusor, objetivando o estabelecimento de uma consciência nacional, uma autoconsciência dos brasileiros como nação.

Notadamente em O Guarani e Iracema, já que falamos de tópico indigenista, Alencar revela cuidadoso esmero com o estilo e a expressão. Conhecedor exímio da língua portuguesa clássica, soube, com maestria, aproximá-la do falar nacional, conferindo-lhe estilo próprio do brasileiro, através da criação de formas novas de expressão, imagens, palavras e símbolos que dariam identidade a nossa pátria.

Muitas vezes a crítica nacional considerou a obra indianista de Alencar tão somente fruto da imaginação. Entretanto, os estudos, pesquisas bibliográficas e, sobretudo, a opção de Alencar por um estilo e expressão novos, próprios do jeito de ser nacional, fazem-nos crer contrariamente àquela crítica.

Os romances que Alencar escreveu buscam interpretar a formação histórica da nacionalidade brasileira numa visão lírica de nossa paisagem, de nossa gente e do nosso meio. Destarte, “foi o grande construtor, no imaginário nacional, da identidade brasileira que nossos intelectuais e políticos intentavam criar desde o tempo da independência[...].”

Firmados também nesse mesmo pensamento, acreditamos indubitavelmente que o autor de O Guarani fixou, em suas inesquecíveis e ricas obras, um mural colorido da vida brasileira dos temos coloniais aos tempos do segundo império. A idéia fundamental de Alencar era a criação de uma literatura caracteristicamente nacional, alicerçada na vida genuinamente brasileira.

Assim, nossa literatura, durante o Romantismo. Encontrou em Alencar seu escultor mor, inquestionavelmente, não só pelo conjunto artístico de sua obra – extensa, de feição múltipla, dos mais variados gêneros – mas também pela recepção e aceitação popular, que granjeia até hoje, tempo em que os letrados e outros críticos fazem um juízo novo de sua obra, reconhecendo sua popularidade.

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Fonte:
ANTONIO MARCOS CABRAL DE SOUSA: “ALENCAR: a nação em cartas”. (Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, sob a orientação da Professora Drª. Angela Maria Rossas Mota de Gutiérrez). Fortaleza - CE, 2010.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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