Alencar e o seu tempo



“OBJETO DO OLHAR” E “MODO DE VER”: ALENCAR E O SEU TEMPO

O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento. (Alfredo Bosi).

No livro O enigma do olhar, Alfredo Bosi examina a obra de Machado de Assis. Seu objetivo é entender o olhar machadiano, sua perspectiva e o foco narrativo, na tentativa de preencher um hiato que, segundo Bosi, ainda perdura entre os conceitos impressos na extensa fortuna crítica do escritor e as figuras do texto-fonte. Para tanto, foi necessário, primeiro, encontrar a distinção entre objeto e olhar. Isso porque, como o próprio crítico afirma, é sempre o modo de ver que dá forma e sentido ao objeto do olhar, mesmo porque, “a historicidade em que se inscreve uma obra de ficção traz em si dimensões da imaginação, da memória e do juízo crítico do seu criador” (BOSI, 1999, p.12). Dessa forma, os valores culturais, bem como os estilos de pensar, que caracterizam a visão de mundo do romancista, serão os norteadores da sua arte. Mas o que mais importa em tudo isso é que, além de serem vários os objetos do olhar narrativo, também não são poucas as maneiras de encará-los, principalmente devido a uma característica que é inerente ao olhar: a sua mobilidade. Daí a importância de estar sempre atento às indicações do ponto de vista da narrativa, acompanhando “cada uma das suas visadas”.

Dar início a mais um estudo da obra de Alencar, seja qual for a proposta, também não pode ser diferente. Investigar o “objeto do olhar” e o “modo de ver” do autor é o primeiro caminho para o sucesso de uma pesquisa.

Assim como Machado de Assis, José de Alencar possui uma extensa produção literária e, como não poderia ser diferente, esta conta com uma ampla e díspar bibliografia de intérpretes e críticos já bastante conceituados no meio acadêmico. O juízo crítico de alguns apontou para um escritor conservador e até contraditório, ou mesmo um adaptador dos grandes romances europeus. Outros souberam reconhecer com justiça a importância das narrativas de Alencar para a formação da cultura brasileira.

Já nas primeiras publicações, Alencar experimentou os desafios de quem abre um caminho até então restrito aos literatos portugueses e à literatura importada. De fato, construir e organizar a história cultural de uma nação não foi tarefa fácil. Principalmente porque era preciso criar um modelo literário brasileiro, mas a única referência que tínhamos na época eram os modelos de romances europeus e a transferência deste para a realidade brasileira resultaria, para alguns críticos, dentre os quais Roberto Schwarz seria o porta-voz, numa literatura “mal-resolvida”.(Schwarz,2000, p.33-79)

Mas é o próprio Alencar quem pode nos ajudar na identificação de suas “visadas”. Em Como e porque sou romancista, autobiografia datada em 1873, mas publicada originalmente apenas no ano de 1893, o escritor revela a influência de alguns escritores europeus, como Voltaire, Balzac, Dumas e Chateaubriand em sua formação intelectual, mas garante que seu mestre maior foi a natureza de sua pátria. Em “Benção paterna”, prefácio de Sonhos d’ouro, romance de 1872, ele confessa que a intenção e objetivo primordial de seu projeto era a luta pela real independência literária e lingüística do Brasil. Aliás, o escritor sempre fez questão de expor suas reflexões críticas sobre a própria obra, seja em prefácios ou posfácios escritos para suas criações, seja em crônicas jornalísticas, ou mesmo em sua autobiografia, criando um verdadeiro documento das suas formas de pensar e ver a literatura nacional. Como faz ao interrogar acerca mesmo do estatuto da literatura brasileira:

A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros povos e ao influxo da civilização? (ALENCAR, 1872, prefácio).

Fixando com atenção um Brasil que luta pela real independência e a necessidade de alimentar o imaginário cultural brasileiro, o escritor assume o propósito de recontar a história da civilização através de um discurso de fundação adequado a uma nação em formação de um lado, com os romances indianistas e, noutro, introduzir a sociedade carioca já em seu estágio mais evoluído.

Alencar teve o seu olhar voltado para diferentes épocas e paisagens que configuram o objeto de seu olhar narrativo. Das matas para a metrópole, da selva para a casa, da “origem do nacional” para o “tamanho fluminense”, enfim de Peri e Iracema, representantes da cultura autóctone, para Emília, Amália e Aurélia, damas da sociedade carioca; nada escapou ao olhar observador e crítico do escritor que merece ser interpretado tendo como alicerces a sua época e as suas reflexões e “visadas” sobre a sociedade e a literatura, objetos do seu olhar.

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Fonte:
DEBORA REIS DA SILVA: “DE OLHAR E OLHARES: a ficção urbana de Alencar e as tramas sociais”. (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: Estudos de Literatura. Orientador: Profª Drª LUCIA HELENA). Niterói, 2007.

Nota
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