Canudos: um locus palimpséstico

Canudos: um locus palimpséstico

Canudos, ao longo do tempo, tornou-se um locus palimpséstico porque representa um espaço sobre o qual diversos escritores brasileiros, ou não, revisitam a tragédia sertaneja sempre tomando como ponto de partida Os sertões, de Euclides da Cunha que, mesmo não sendo o primeiro a escrever sobre Canudos, é o mais conhecido. Antes dele, escreveram Afonso Arinos, em 1898 e Manuel Benício, em 1899.

Afonso Arinos, de forma romanceada, mostra uma dupla tragédia: a do andarilho sertanejo perseguido pelos soldados republicanos porque criticava as leis impostas pelo novo sistema de governo e também pelos prejuízos impostos aos fazendeiros que viam sua mão de obra barata, os sertanejos, abandonarem tudo para seguir o “Messias do sertão”; e a segunda, a do boiadeiro Luís Pachola que, sem querer, vê-se envolvido em uma confusão por conta do ciúme de um vaqueiro, Gabriel, que investe contra o boiadeiro e termina atingindo a jovem Conceição que morre, entristecendo todos. Com forte sentimento de culpa pela tragédia da qual involuntariamente foi culpado, Pachola resolve acompanhar o Conselheiro. Então, a tragédia amorosa dá lugar à ação bélica propriamente dita.

Manuel Benício, ao contrário, capitão reformado, lutou em Canudos e era correspondente do Jornal do Comércio, cujas reportagens sobre a luta no sertão baiano são as mais ponderadas, segundo Galvão (1994b), porque ele não se deixa intimidar e relata também os erros do lado republicano, o que termina acarretando o seu retorno forçado ao Rio de Janeiro por ordem do comandante da 4ª expedição, general Arthur Oscar Guimarães. Na interpretação de Benício, Canudos é um espaço de corrupção comandado por João Abade (rei dos jagunços) e Antônio Vilanova.

João Felício dos Santos no romance João Abade (1958), traz à tona, pela primeira vez, a questão do romance escrito, a partir da leitura de cartas e anotações deixadas pelo sobrevivente de Canudos Julius Cesare Ruy de Cavalcanti, o Arlequim, a cujos textos o autor teve acesso. Além disso, João Felício conversou com outro sobrevivente, Humberto, valente e destemido jagunço que lutava sozinho sempre na companhia de seu cachorro Valoroso. Segundo o autor em foco, “Canudos não se rendeu, acabou” (conforme prefácio (paratexto) de João Felício dos Santos, 1958). Desse modo, o romance João Abade destaca o mundo do jagunço e sua gente.

Nos dois primeiros textos, predomina o relato histórico sobre a guerra de Canudos, entretanto cada um deles aborda o tema, Canudos, segundo a visão de mundo de cada autor. A do monarquista Afonso Arinos evita a crítica aos sertanejos porque em artigo ao jornal monarquista O Comércio de São Paulo, em 1897, já afirmava que “só eram brasileiros os habitantes das grandes cidades cosmopolitas do litoral, ao passo que o Brasil central era ignorado, bem como a população nos sertões que, para o governo inexistia” (In: Os jagunços, 1985. p. 19). Então, esse posicionamento crítico acerca do fenômeno Canudos e uma versão do Conselheiro menos caricaturesca e mais exaltadora de sua qualidade de guia espiritual leva-nos a acreditar que, como não viajou a Canudos, a sua fonte de informações estava nos jornais de onde colheu subsídios para a escritura de seu romance, mas indo sempre além da posição favorável à República defendida pela maior parte da imprensa da época.

Ao praticamente trabalharem com as mesmas fontes, Afonso Arinos e Euclides da Cunha apresentam um diálogo intertextual, porém com finalidades diferentes: enquanto aquele critica os republicanos porque utilizam manobras restauracionistas para justificar a violência contra os sertanejos, este recorre ao isolamento do sertanejo para justificar o seu atraso. Segundo Galvão (1976, p. 78), isso ocorreria porque “Ou Euclides se utilizou de Os jagunços como uma das muitas fontes em que baseia seu trabalho, sem citá-lo, ou tanto Euclides como Arinos se serviram de uma outra fonte que deixou nas obras de ambos uma mesma e inconfundível marca”. Evidentemente que esse diálogo intertextual se dá no âmbito das reportagens nos jornais ou no que se refere a Canudos: Diário de uma expedição, ambos de 1897, ou seja, anteriores à publicação de Os jagunços que ocorreu em 1898.

No que tange ao texto de Manuel Benício, percebemos desde o título a para textualidade, uma vez que seguindo o título Rei dos Jagunços, há o subtítulo crônica histórica e de costumes sobre os acontecimentos de Canudos em que o autor comenta sob forma de notas os fatos mais relevantes de alguns capítulos. Tais comentários indicam também a metatextualidade porque têm em vista as reportagens publicadas pelo Jornal do Comércio à época. Em outro paratexto, denominado “prenoção”, Benício explica a origem de algumas informações que subsidiaram a escritura de sua crônica sobre Canudos.

Com relação ao romance João Abade (1958), o autor João Felício dos Santos baseia sua história no drama da gente de Canudos, graças aos documentos e depoimentos colhidos junto aos sobreviventes. Em sua versão, o fato histórico é a própria história, o que conforme Carpeaux (2005, p. 449), ressuscita os vencidos, dando uma voz aos que a História silenciou. Justamente na parte apoiada em notas daquela personagem, acredita Carpeaux (2005, p. 451), “a obra parece pesada, mais inspirada por conjecturas de probalidades históricas do que pelas probalidades do romance, que são as certezas de vida e de morte”. Com isso, o texto de João Felício fica preso “à camisa de força do elemento documental” e só consegue realmente enveredar pelo caminho do texto literário, quando passa a escrever seguindo a própria intuição e criando de acordo com a sua visão dos acontecimentos:

[...] como em Babilônia, não ficará pedra sobre pedra no arraial que outrora se chamou Canudos.
Precisamente assim, termina, em meio, o último caderno dos que foram ter a Salvador, em 1903, levados pelo tio do cônego, padre também em suas andanças pelo interior. (João Abade, 1974, p. 187).

Então, a partir do fragmento acima citado, João Felício dos Santos dá continuidade ao seu romance sem prender-se mais ao texto de Arlequim, apenas seguindo a sua imaginação, totalmente livre das “muletas de documento”, conforme afirmação de Carpeaux (2005).

Euclides da Cunha afirma em Os sertões que “a História não iria até ali” (p. 734), logo, ao sugirem tantas interpretações, estudos sobre Canudos, os quais são relidos, revisitados, reinterpretados, com cada autor modificando-o de uma maneira particular, para provar que, ao contrário do que escrevera Euclides, a História chegou até o sertão baiano e saiu dele através de romances, relatos históricos, crônicas, entre outros gêneros como um manuscrito que, independente do tempo e lugar, está sempre a reescrever-se.

Segundo Genette (1982), para que ocorra a hipertextualidade, é preciso que o hipertexto não cite explicitamente o texto do qual proveio o modelo, o hipotexto, porque aquele não existe sem este. La guerra del fin del mundo (1981) e A casca da serpente (1989) não existiriam sem Os sertões (1902), uma vez que a epígrafe enaltecedora do peruano ao escritor brasileiro já evidencia a principal fonte para a escritura do romance de Vargas Llosa. Do mesmo modo, o escritor goiano, ao criar um artifício para enganar os republicanos, afirmando que o Conselheiro não morreu, também foi buscar no livro vingador o principal estratagema para escrever a sua história sobre Canudos, centrada no universo popular e no imaginário sertanejos em que lendas, sonhos, misturam-se a projetos, visando à construção da Nova Canudos.

Nesse momento, as relações entre as obras também abrangem outros níveis de trans textualidade porque resultam das alusões, comentários e da co-presença de um texto em outro como ocorre no texto de J. J. Veiga que remete a Vargas Llosa, configurando um diálogo entre as obras no que Kristeva (2005) denomina “mosaico de citações em que um texto é conseqüência da absorção e transformação de outro”, no caso, o de Euclides da Cunha, que estabelece uma ligação com o texto de Vargas Llosa e J. J. Veiga. Por sua vez, estes partem daquele para mostrar que são aceitáveis outras leituras sobre o fenômeno canudense, até como resposta à análise da cunhana.

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Fonte:
DJAIR TEOFILO DO REGO: “POLIFONIA, DIALOGISMO E PROCEDIMENTOS TRANSTEXTUAIS NA LEITURA DO ROMANCE LA GUERRA DEL FIN DEL MUNDO, DE MARIO VARGAS LLOSA: Pródromos e Epígonos”. (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras na área de Literatura e Cultura. Orientadora: Profª. Drª Zélia Monteiro Bora). João Pessoa – PB, 2008.

Nota
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