A mimesis poética



A MIMESIS POÉTICA

É
necessário agora considerar o modo no qual Aristóteles transforma a mimesis na característica definidora de um grupo particular de artes e, com especial referência, à poesia trágica.

Aristóteles
anuncia no primeiro parágrafo da Poética que tratará da exposição da arte poética em si mesma e das suas espécies. No contexto do tratado, a noção de mimesis sofre uma restrição no seu âmbito de aplicação. Ela passa a designar um caráter específico que pertence exclusivamente aos produtos de sua técnica. Apesar de pressupor a noção geral, ela é completamente distinta: apenas os produtos da arte poética são verdadeiramente miméticos nesse segundo sentido, pois a mimesis descreve sua natureza genérica. Isto quer dizer que apenas as obras da técnica artística têm um caráter simulativo ou representacional.

A
Poética toma a composição da intriga (mythos) como objeto de investigação. Aristóteles se dedica, nesse tratado, à análise da estrutura da intriga, ou seja, o seu objetivo é o de descrever os elementos que compõem o objeto representacional segundo o alvo visado pela arte poética. A composição da intriga só é examinada na medida em que ela constitui o objeto próprio do fazer poético, o que garante, deste modo, a sua especificidade, o fato de que ela possa se distinguir, principalmente, das demais técnicas. É somente a partir da pressuposição da existência de um objeto particular do fazer poético, introduzido no âmbito da atividade humana, que Aristóteles pode conceder a esta arte uma lógica, em certa medida, autônoma.

A noção de
mimesis é introduzida para designar o caráter comum de um certo conjunto de artes cuja lista nada tem de exaustivo ou mesmo de homogêneo. Como foi suficientemente observado, a noção de mimesis não é definida em nenhuma parte da Poética. Contudo, o silêncio de Aristóteles em torno desse termo parece estar plenamente justificado. Em primeiro lugar, como vimos, a relação entre natureza e técnica é de imitação, mas não no sentido de que a técnica imita a disposição real das coisas naturais; o que ela imita são os processos de geração da natureza, ou seja, a constituição imanente de um composto a partir da forma e da matéria, a aplicação de uma forma a uma matéria específica cujo resultado é a produção de algo que forma um todo e recebe uma nova descrição. Desse modo, o produto sempre pode ser dividido em sua parte formal e sua parte material. Em segundo lugar, a mimesis, enquanto gênero específico de um determinado conjunto de obras, indica o conteúdo representacional do artefato que é produto da técnica artística. Nesse sentido, é bom observar, junto com os tradutores franceses, que a mimesis possui como seus objetos imediatos aquilo que pertence ao âmbito propriamente humano.

Se há uma tese que Aristóteles retoma
de Platão, sem aparentemente discuti-la, é aquela que afirma que a essência da arte consiste em uma imitação (mimesis) da realidade. Certamente Aristóteles não tem necessidade, na Poética, de realizar uma crítica dessa noção de arte como imitação (ou simulação, ou, ainda, representação); a noção de mimesis, em Aristóteles, não tem as mesmas implicações ontológicas, epistemológicas ou mesmo éticas, nem desempenha uma função tão ampla como em Platão. Como se isso não bastasse, ainda que a arte continue a ser definida como a imitação da realidade, ela deixa de ter o sentido de cópia fiel da aparência das coisas sensíveis, ou, menos ainda, de produção de um objeto em um grau triplamente afastado da verdadeira realidade. Para Aristóteles, quando um pintor faz o quadro de uma cama, ele não realiza a produção de uma cama aparente, mas o que ele faz é a pintura de uma cama. Em outros termos, o que vemos não é uma cama aparente, a qual falta o saber e a realidade da cama real, mas o que vemos é a pintura de uma cama, estamos diante de um quadro tal como o visitante de um museu. Assim, sem dúvida nenhuma a mimesis é uma imitação da realidade, mas não tal qual ela é, pois dizer o modo como as coisas estão realmente dispostas não é função do artista, mas é tarefa exclusiva do logos epistêmico, do discurso científico cuja veracidade depende da sua adequação ao real.

Por essa razão, o que há de surpreendente nos comentários sobre a
mimesis aristotélica é o silêncio sobre esse seu significado básico que assegura uma dimensão própria ao artefato poético. Dessa maneira, ao tentar protegê-la da contaminação de um tal sentido, eles acabam tornando a técnica artística “imitativa” em um grau muito mais extremo e radical. Na tentativa de salvaguardar a mimesis de seu significado eminentemente imitativo ou representacional, eles terminam por determiná-la nos termos do discurso científico. A mimesis deixa, assim, de ter o sentido de imitação da realidade, para assumir o significado de uma imitação do princípio de atualidade das entidades concretas e, assim, passa a coincidir com o logos que tem por função descrever as coisas tais como elas realmente estão dispostas: a fórmula definicional do composto se caracteriza justamente por separar a forma da substância sensível. Portanto, o problema não é que a mimesis aristotélica seja caracterizada como a imitação ou simulação da realidade, mas o modo como ela é uma tal imitação ao mesmo tempo em que é a produção de um objeto original, pois é evidente que ela não se identifica ao discurso científico, nem sua natureza depende dos efeitos produzidos sobre outras substâncias, a saber, a audiência, tal como ocorre com a retórica.

Entretanto, um problema emerge dessa dupla caracterização da
mimesis poética como, de um lado, o processo de constituição de novas substâncias, imitando os princípios constitutivos da natureza, e, de outro, seu caráter de simulação, seu conteúdo representacional que a vincula necessariamente aos objetos que fazem parte do mundo prático, da vida humana. Em outros termos, há a conjunção paradoxal de poietes e mimetes, isto é, o poeta é um imitador na medida mesmo em que ele produz, que ele é um “fazedor” de intrigas (mythoi). Assim, o conceito que originalmente significava a simples cópia de coisas naturais preexistentes passa a designar a criação de certos objetos que possuem um conteúdo objetivo próprio e distintivo com relação aos demais seres. O problema que exige uma solução, portanto, é o de saber de que modo a arte poética pode imitar o processo natural de constituição das substâncias sensíveis e, ao mesmo tempo, possuir um conteúdo representacional que caracteriza especialmente seus produtos.

É
necessário observar, primeiramente, que a referência aos objetos de imitação, aos complementos gramaticais de mimeisthai, é sempre feita no plural. A mimesis pode tomar como seus objetos caracteres, emoções e ações; mas o objeto principal e correlato da mimesis é uma ação tomada no singular. Aqui se estabelecem dois níveis no interior dos objetos: de um lado há uma ação (que mais tarde será designado como mythos) e as ações, caracteres e emoções particulares que são incluídas na ação propriamente poética.

Nesse
sentido, os caracteres que são os objetos da imitação (no plural) podem ser melhores ou piores, pois essa distinção visa designar o estatuto sócio-ético dos personagens, dos agentes engajados na ação. Esses objetos nunca são criações subjetivas do poeta, mas ele os apreende do contexto histórico ou mítico, mas somente enquanto eles são potencialmente aptos à serem introduzidos na estrutura da ação. A distinção qualitativa entre os objetos poéticos visa, assim, assinalar como agentes do drama aquelas figuras que pertencem ao contexto mítico e histórico. Por outro lado, o nível da produção que caracteriza a atividade poética se situa na ordem do agenciamento desses objetos em um todo acabado. A atividade mimética, no seu nível básico, toma como seus objetos aqueles que são encontrados na vida dos homens, contextualizados historicamente. Trata-se de objetos que não são inventados ou produzidos livremente pela “imaginação criativa” do poeta. Apenas nesse sentido restrito, a mimesis supõe a existência de algo que é imitado. O poeta não inventa os caracteres e os eventos, mas eles são “tomados de empréstimo” da própria vida; o que o poeta produz, e isso segundo os critérios de correção que são intrínsecos à sua arte, é o agenciamento desses caracteres e eventos que fornece, de maneira correlata, um novo conteúdo descritivo a eles.

Em
razão disso, Aristóteles faz questão de mostrar que essa relação de semelhança não repousa sobre uma fidelidade necessária com respeito ao conteúdo descritivo dos objetos que servem de suporte para sua atividade:

Além do mais, a noção de correção não é a mesma segundo ela se aplique à política, ou a uma outra arte, e à poética. No domínio da poética, há duas espécies de faltas: uma é de ordem poética, a outra é acidental.
(Poet.25, 1460b13-16)

A
falta que diz respeito essencialmente ao domínio poético é relativa ao erro na construção da intriga segundo os critérios da verossimilhança e da necessidade. A falta acidental designa uma imitação equivocada dos aspectos formais da coisa real. Por isso, alguém pode ser um bom poeta – como Homero sem dúvida nenhuma é o melhor dentre todos e, mesmo assim, faz com que Aquiles corra atrás de Heitor como nos sonhos, quando corremos atrás de algo sem nunca conseguirmos alcançá-lo mesmo imitando mal seu material de base, pois ele não é “mimético” enquanto imita com cuidado acurado os objetos que fazem parte de sua composição, mas enquanto é um “fazedor” de intrigas. A imprecisão do poeta é criticada se ela não for necessária, for algo de dispensável e não exigido pelos próprios padrões que orientam sua produção. Contudo, a passagem não isola o poeta de sua relação com o mundo e a vida real dos homens, mas isso não quer dizer que suas obras devam ser julgadas segundo critérios alheios que dizem respeito à forma própria dos objetos que ele “imita”. A obra possui critérios autônomos segundo os quais ela deve ser julgada, tal como a política e as demais técnicas, pois mesmo a precisão da representação com os objetos reais deve ser julgada com vistas aos padrões que lhe são próprios.

Por
ignorar-se essa distinção entre objetos no plural e no singular, por desconhecer o princípio estrutural da mimesis como sendo a intriga, gera-se continuamente o problema de agregar dois aspectos incompatíveis: semelhança (referência) e originalidade, particularidade da encenação e universalidade que deve ser expressada pela ação. Dessa maneira, por exemplo, a tragédia torna-se uma imitação gradual e qualitativamente distinta – melhor ou pior – dos objetos que ela imita; ela é a expressão de generalidades – enquanto desvela a forma própria das coisas que ela tem por objeto imitar –, mas ao mesmo tempo é constituída por fatos particulares capazes de engendrar medo e piedade; através de um mimema (que é a simulação de eventos particulares que gera um certo engano) podemos aprender algo que seria impossível mediante o próprio objeto. O que se perde de vista com tudo isso é a relevância da forma própria do artefato mimético que cumpre um papel muito especial no agenciamento dos elementos materiais com vistas à constituição da sua identidade, de sua estrutura específica. A forma da tragédia, por exemplo, caracterizada como sendo a ação, figura como a causa de certos caracteres, pensamentos e expressão serem trágicos, pois estes constituintes materiais precisam necessariamente satisfazer determinados requisitos funcionais atribuídos pela forma que, de maneira correlata, confere a identidade, a natureza específica da tragédia. Em outras palavras, por mais que a tragédia exija certas condições materiais que condicionam a sua existência, a forma se sobressai como o seu princípio de identidade ou estrutural sobre os elementos materiais, pois é dela, e não dos caracteres, pensamentos, etc., que o objeto poético deriva sua objetividade e sua qualidade peculiar.

Assim,
Poet.4 é elegido o texto predileto para explicitar esse caráter da mimesis em selecionar apenas os aspectos essenciais da coisa retratada, um meio de abstrair e revelar a forma própria do objeto natural. A mimesis, assim descrita, conduziria nosso intelecto das imagens particulares para as verdades universais que elas materializam, desviando nossas reações emocionais habituais com relação aos objetos naturais. Porém, ao contrário das pinturas, a tragédia incitaria nossas emoções, nesse contexto, em nome de particulares que são destinados a representar padrões gerais. Assim, o poeta deveria apresentar – para satisfazer as cláusulas da universalidade das verdades e da particularidade dos fatos que incitam nossas reações emocionais – os universais sob o disfarce de eventos e caracteres particulares.

O
que ocorre com essa interpretação é que os produtos da mimesis são definidos, dessa maneira, com relação aos efeitos extrínsecos e transitórios que eles provocam sobre uma outra substância, sobre um ser que possui uma existência independente. Em outras palavras, ela é definida não em função de produzir uma estrutura autônoma e independente, um objeto original, mas enquanto ela é capaz de suscitar, de desencadear reações emocionais que pertencem propriamente aos acontecimentos reais da vida. Assim, o que explica a seleção dos traços que a mimesis retira dos objetos que servem de modelos naturais são os efeitos que ela visaria produzir sobre outrem. O critério de seleção é o tipo de efeito que cada espécie particular de mimesis visa produzir em alguém. É por que isso que um mimema assume certos aspectos de seus modelos que o tornam semelhante às coisas reais de modo a poder produzir os efeitos por ele visados.

A
descrição da mimesis nestes termos implica na determinação dos produtos miméticos sob a categoria dos acidentes que são atribuídos a uma substância. Nesse caso, a arte mimética nada seria além da produção técnica de novos atributos acidentais em entidades previamente existentes. Nessa interpretação de P.Woodruff, a tragédia, por exemplo, seria constituída por princípios e critérios que pertencem a uma outra substância, com a qual ela está numa relação de necessária dependência. Nesse caso, a tragédia não teria nenhuma natureza própria, pois sua forma própria seria estruturada em torno de propriedades que pertencem fundamentalmente à outra coisa cuja existência é independente e separada dela. Em outras palavras, uma tragédia produziria de uma maneira artificial e superior os mesmos efeitos que os próprios acontecimentos reais, por si só, poderiam provocar: ela não seria nada mais do que a simulação de eventos reais cuja estrutura própria depende dos efeitos e das reações emocionais que são próprias da alma dos espectadores e da disposição efetiva dos eventos na vida. Assim, sua estrutura específica seria reduzida aos efeitos que outras coisas poderiam provocar originalmente no seu lugar, à estrutura da ação tal como ela se dá na vida.

Contudo, a arte poética é a produção técnica de artefatos que possuem um estatuto análogo às
substâncias sensíveis, o que significa que a tragédia imita estruturalmente a constituição de forma e matéria que constituem os compostos gerados naturalmente. Dessa maneira, sua forma própria e dinâmica possui um conteúdo descritivo específico que não é dependente das propriedades que pertencem propriamente a outros seres. Nós nunca encontramos na natureza a estrutura de uma casa ou de uma tragédia, pois tal como a produção da casa é um certo arranjo de elementos determinados por sua forma própria, a tragédia também é um agenciamento de fatos em um sistema, de modo que seus elementos constituintes são determinados pela sua estrutura específica. Além disso, os efeitos da tragédia são efeitos de sua estrutura própria, isto é, eles são trágicos na medida em que são adequados à unidade da ação, e não enquanto são dependentes de outros seres. Os efeitos dos acontecimentos efetivos são trágicos por homonímia e contaminação, e não por si mesmos. Não bastasse isso, a tragédia não é estruturada em torno das reações emocionais que pertencem essencialmente a outras coisas, mas ela é constituída em torno de uma ação que possui um certo conteúdo emocional cujo efeito sobre a audiência é conforme sua estrutura e, ao mesmo tempo, secundário. Em outras palavras, não é em virtude dos efeitos que pertencem a outros objetos que os fatos da tragédia são dispostos, mas é porque eles são dispostos de uma certa maneira que ela pode provocar um determinado efeito no seu público; mas esse efeito é posterior e concomitante no sentido de vir depois que a tragédia atingiu sua natureza própria. E como se isso não fosse suficiente, ela pode alcançar sua natureza própria e mesmo assim o espectador nada sentir, visto ir ao teatro ou ler uma tragédia por razões alheias aquelas que pertencem essencialmente ao drama. Sua estrutura não é idêntica aos objetos encontrados no mundo prático, das coisas naturais, justamente porque a tragédia tem uma natureza própria, ela possui um princípio formal que assegura a unidade do seu objeto. O trágico é um produto específico da arte poética, ou seja, ele não é encontrado nem na natureza, nem na vida humana. O que o poeta faz é produzir uma nova substância que possui um conteúdo descritivo original e independente de qualquer outra coisa, o que garante à tragédia sua forma própria e dinâmica. Por outro lado, os efeitos do mimema são independentes e separáveis tanto dos eventos factuais, quanto da alma dos espectadores. Caso não fosse assim, as tragédias só poderiam existir enquanto produzissem efeitos sobre uma audiência, assim como a saúde pode existir com relação ao corpo saudável.

E
resolver essa relação de prioridade (entre uma natureza própria da obra poética e os efeitos que ela é capaz de produzir) não é uma questão supérflua e de pouca monta. Dela dependem a maioria das interpretações da tragédia que enfocam aquilo que o público experimenta ao ver uma tragédia, e não a disposição dos fatos e as emoções que essa disposição mobiliza e inscreve intrinsecamente nestas ações. A tragédia, tomada sob essa perspectiva, sempre “ensinaria” algo sobre o conteúdo descritivo das emoções que pertencem à alma do espectador: vendo uma tragédia ele poderia conhecer melhor suas reações emocionais, entender o que é a coragem, a piedade e o medo e a maneira adequada de senti-los. Ou então, as tragédias ilustrariam verdades gerais e abstratas sobre a vinculação precária entre as virtudes e a contingência. Essa perspectiva sempre acaba passando por cima, ignorando a disposição dos fatos, o conteúdo descritivo correlato da estrutura do mythos. Importa mostrar de que maneira a tragédia (enquanto produto da mimesis) não está vinculada aos efeitos que pertencem fundamentalmente a outras coisas, do mesmo modo que uma casa continua de pé mesmo quando todos os seus moradores saem para trabalhar, fazer compras ou ir à escola.

Desse
modo, a atividade mimética, jamais imita a estrutura real desses objetos, o modo como eles estão naturalmente dispostos. Pois no caso da ação ética, da ação tal como ela é estruturada na vida, o caráter e o pensamento ocupam o lugar de princípios formais que subordinam a ação aos seus critérios peculiares. Basta por ora indicar essa diferença fundamental: os objetos que o poeta ou o artista imitam são aqueles que ele encontra na vida humana, mas não tais como eles estão naturalmente dispostos. A mimesis, no seu aspecto de imitação, apenas assinala seu princípio material básico que instaura a dimensão representacional de seus produtos. Assim, não é porque Aristóteles privilegia a ação que a noção de mimesis mantém um componente dramático, um traço de representação, mas é porque seus produtos têm uma vinculação, ao seu nível material de suporte, com os objetos humanos, contextualizados na vida coletiva da polis, que ela adquire seu conteúdo representacional. A mimesis requer uma relação necessária de semelhança com objetos naturais, o que não implica a subordinação de seu conteúdo descritivo próprio à estrutura real destes objetos que ela imita.

Mas,
como dissemos, um outro nível da mimesis que não é aquele de “imitação”: a mimesis está vinculada à poiesis, ela é produtora. O poeta se caracteriza pela produção de intrigas (mythos), e nisso Aristóteles é insistente. Como sua criação não parte do nada, ele então toma como material de base, não os agentes dotados de caráter, mas caracteres, emoções e ações encontrados em um contexto prático, histórico ou mítico. A imitação do poeta não é descrita nos termos de um decalque da realidade, de uma reprodução fiel dos dados particulares, em virtude deles assumirem uma função própria no interior da ação que o poeta compõe. Em outras palavras, o poeta não copia a estrutura da ação tal como ela está disposta na vida ética, mas ele integra esses dados particulares e concretos – que encontram-se isolados ou determinados por um outro sistema conceitual – em um sistema de ações que forma um todo acabado, que possui uma forma própria e que não é idêntica aquela que pode ser encontrada na realidade. Por isso, a diferença entre o trabalho do poeta e o do historiador é tão importante para Aristóteles: enquanto este apenas relata os eventos tomados tais como eles estão dispostos na ordem contingente da história, o poeta constrói seus produtos segundo uma racionalidade e critérios de correção próprios de sua arte. Portanto, a mimesis designa o movimento de passagem, de mudança dos objetos que constituem o substrato material da obra mimética para a realização de sua forma própria, o todo acabado e unificado que caracteriza o produto da arte poética. Adotamos, assim, a descrição da mimesis elaborada por Dupont-Roc e Lallot (1980, p.20), mas com algumas ressalvas:

Ele imita mas para representar: os objetos que lhe servem de modelos – Édipo, Ifigênia, com o caráter e as aventuras que a legenda lhes atribui – se apagam após o objeto composto por Sófocles ou Eurípides – a história [mythos] representada que é Édipo-Rei ou Ifigênia em Áulis. Mimesis designa este movimento mesmo que parte dos objetos preexistentes resultando em uma artefato poético, e a arte poética segundo Aristóteles é a arte dessa passagem. Mas, mesmo se o objeto ‘imitado’ não é nunca eliminado... o acento recai sobre o objeto representado que deve, para ser bem-sucedido (kalôs ekhein) obedecer às regras da arte (tekhnè) tais quais definidas por Aristóteles (ibid.; tradução nossa)

A
passagem ou movimento, que caracteriza o processo da mimesis, significaria que o artista toma como ponto de partida dados concretos – Édipo e suas aventuras tais como narradas pelo mito, por exemplo – e terminaria com a realização de um artefato poético. Assim, teríamos dois movimentos distintos e complementários: um de imitação de objetos que servem como modelos naturais e outro da representação de um objeto que apaga, eclipsa aqueles após a conclusão da representação que designa o artefato poético. Contudo, essa distinção é enfraquecida na medida em que é ressaltado o aspecto consistente do objeto-modelo, o fato de que ele não é jamais evacuado, que ele não desaparece completamente, o que parece mudar completamente a descrição da passagem que caracteriza a mimesis (é nesse sentido mesmo que eles parecem nunca resolver a relação entre ação e caráter na Poética). Da maneira como os autores franceses descrevem a mimesis, parece que a representação é algo que se acrescenta, que é adicionado aos modelos naturais de modo a lhes atribuir uma qualidade de ordem estética ou poética. A passagem indicaria, não a produção de um objeto que possui uma unidade e uma identidade próprias, mas uma simples inversão de ênfase, tal como na mudança da ordem direta de uma frase como “o sapato não está debaixo da cama” – sabemos que os modelos de análise dos autores são, na sua maioria, de ordem linguística; se antepôssemos ao verbo o predicativo, teríamos a frase, “debaixo da cama, o sapato não está”; desse modo, colocaríamos a ênfase não mais sobre a ordem natural das coisas os sapatos estão ou não estão debaixo de algo mas sobre algo de diferente: os sapatos podem estar em outro lugar, mas debaixo da cama, eles não estão. O processo da mimesis operaria de um modo análogo: o realce não recai mais sobre os caracteres, os agentes dotados de caráter ético que servem de modelo, mas sobre o objeto que os representa e que lhes atribui uma beleza, uma excelência e uma qualidade de ordem poética (kalôs ekhein). É por isso que eles não resolvem a ambiguidade do verbo mimeisthai, reforçando-a ainda mais: assim pode se dar como complemento ao verbo tanto o objeto-modelo (aquele que é imitado) quanto o objeto-cópia, aquele que é produzido ou representado.

Mas, o que o poeta imita são
certos caracteres, emoções e ações que pertencem à esfera das lendas tradicionais, da história, da vida. É essa imitação que confere aos seus produtos seu caráter de simulação ou sua dimensão representacional: seus materiais de base estão vinculados a certo contexto. Contudo, a arte poética, que obedece a regras intrínsecas de sua arte, produz um objeto (agora no singular) que possui um conteúdo descritivo distinto dos elementos materiais que o compõe. Ele não é um agregado composto por partes extrínsecas caracteres reais mais uma qualidade de ordem estética –, mas ele forma uma unidade que confere aos caracteres, às ações, às emoções e aos discursos racionais um estatuto funcional distinto daquele que eles exercem na vida.

Um
comentário a uma passagem importante de Poet.6 ajuda a confirmar essa caracterização da mimesis como uma simples passagem de um plano a um outro que em nada modificaria fundamentalmente os objetos que servem de substrato para a atividade do poeta. O que a mimesis faz, nessa perspectiva, é simplesmente uma mudança de ênfase na descrição da estrutura da ação ética:

Em 49 b 37... : ‘A ação (praxis) é agida (prattetai) pelos agentes (hupo tinôn prattontôn)”. De fato, a palavra aqui é também aqui mais discreta: tinôn – um indefinido, ‘certos, alguns’. Apesar de sua indefinição, este pronome amarra os personagens do drama (prattontes) à realidade: ‘uns certos’ do mesmo modo indeterminado, estes são ‘as pessoas’ que têm necessariamente (anankè) uma determinação – aquela de ser ‘pessoas qualificadas’ (poious tinas, dois indefinidos ainda) na ordem do caráter e do pensamento, isto é, os agentes feitos do mesmo estofo, ou melhor: sobre o mesmo padrão que os homens reais estudados pela ética... Mas, ao observar de perto, vê-se que, se os dados fundamentais da ética são efetivamente tomados em conta aqui, a perspectiva em que eles aparecem é original:... a necessidade de agentes segundo o caráter e o pensamento para a qualificação das ações em referência a estes mesmos dados, reverte a perspectiva da ética. Estes que estão no primeiro plano aqui, não são mais os agentes, mas a ação, e, porque esta ação deve ser qualificada em termos éticos, os agentes devem ser igualmente: a subordinação dos caracteres à ação... está, pois, já indicado aqui. A inversão da relação de prioridade entre agente e ação resulta diretamente da definição da poesia dramática como representação da ação
.(DUPONT-ROC e LALLOT, 1980, p.195-196; tradução nossa)

Em primeiro lugar, nota-se que a indefinição dos personagens, na verdade, revela-se, sub-repticiamente, não ter nada de indefinido. A indefinição desses agentes descritos como “
alguns, certos” modifica-se rapidamente em uma completa definição: eles são tais como aqueles que têm necessariamente uma determinação, aquelas pessoas qualificadas em termos fortemente éticos. Os personagens poéticos, dessa maneira, estariam necessariamente amarrados aos homens reais que são objeto de estudo da ética. Em segundo lugar, percebe-se que a instauração da ação como plano primeiro e prioritário deve-se à definição da poesia como representação dramática, no lugar de derivar da própria definição da tragédia como “representação de uma ação completa”.

Apesar
dessa vinculação necessária entre personagens dramáticos e agentes éticos, Aristóteles demandaria uma mudança de perspectiva no que diz respeito à relação entre caráter e ação tal como é estabelecido na ética. Nesse ponto, a mimesis entra em cena, faz sua aparição mágica e, por meio de seu processo metafórico de filtragem, inverte a relação de prioridade, subordinando o caráter à ação e tudo isso em vista da definição da poesia como drama. Mas como eles fazem questão de ressaltar, as proposições fundamentais da ética estendem sua validade igualmente aos personagens dramáticos. Ora, se a inversão de perspectiva de Aristóteles, que, segundo eles, significaria a qualificação moral dos caracteres e dos pensamentos em função da qualificação moral da ação e isto ao contrário da ação receber sua qualidade das disposições estáveis do sujeito – então, na verdade, não haveria reversão fundamental alguma na perspectiva ética! E isso porque a ação, mesmo que ocupe o primeiro plano, continua sendo descrita em termos éticos fortemente marcados. A inversão da relação de prioridade entre o agente e ação apenas indicaria que os caracteres e os pensamentos recebem sua qualificação ética com relação à ação enquanto esta também é definida em termos de qualidades éticas. Em outras palavras, as estruturas da ação, que ela seja primeira ou secundária, continuariam as mesmas, elas seriam idênticas quanto à sua descrição substancial: que os caracteres e os pensamentos recebam suas qualidades morais da eticidade da ação, ou que a ação seja qualificada moralmente com referência às disposições estáveis dos agentes, não resulta em nenhuma mudança significativa na descrição da estrutura da ação, seja ela poética ou ética. Em outros termos, a Poética estaria encarregada de fazer uma simples inversão na relação de prioridade que a ética estabelece entre ação e caráter, mas que, com efeito, não teria nenhuma consequência para a diferença na descrição específica de ambas as estruturas. Por outro lado, essa correlação intrínseca entre ação e caráter na esfera das ações éticas é mesmo pressuposta por Aristóteles na Ética Nicomaquéia.

Mais uma vez aqui, podemos
confirmar o sentido da definição da representação da ação em termos de poesia dramática; ou seja, o que o poeta produziria não seria um objeto dotado de uma natureza própria, que possuiria uma unidade imanente, mas a transposição de objetos tais como eles estão estruturados na realidade para uma dimensão cênica, um espaço onde passam a ser personagens dramáticos que recebem uma qualificação adicional de ordem puramente estética unicamente mediante essa passagem ou transposição. O mythos, assim, designaria o processo de deslocamento [déplacement] mimético que mostraria de que maneira os caracteres são qualificados eticamente em função de sua relação com a ação, isto é, com referência aos personagens que agem enquanto eles são os personagens do drama. Mas essa descrição do mythos, e da relação dos agentes reais transformados em personagens dramáticos pela mimesis com a ação, não acarretaria em mudança alguma na descrição da estrutura da ação poética enquanto simples reflexo embelezado, filtrado e depurado da ação ética tal como estruturada na vida.

A
forma própria do artefato poético não pode ser idêntica à forma própria de nenhum objeto real que sirva de modelo para a arte poética. E isso porque a forma própria da ação trágica é correlata, não da forma específica de algum modelo natural, mas do princípio de atualidade correlato do objeto da mimesis, tal como é definido em Poet.6: o mythos enquanto alma e princípio da tragédia. É o mythos que confere unidade às demais partes que compõe a tragédia e que coincide com a própria atividade mimética.

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Fonte:
ANDRÉ LUÍS SUSIN: “MIMESIS E TRAGÉDIA EM PLATÃO E ARISTÓTELES”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Kathrin H. L. Rosenfield). Porto Alegre, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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