O Demônio Familiar



O Demônio Familiar (1857)

A 5 de novembro de 1857 é encenada pela primeira vez O Demônio Familiar. Alencar considerava a peça uma alta comédia escrita à maneira de Dumas Filho, sendo uma comédia realista. A peça aparece como um divisor de águas no teatro brasileiro: rompeu com o romantismo teatral e introduziu nos palcos a discussão a respeito de problemas sociais. Foi o primeiro escritor brasileiro a escrever uma peça ocupando-se da mise-en-scène realista. Tinha tanto apreço a ela que a dedicou à Imperatriz, D. Teresa Cristina.

O tema da peça é também o cativeiro. Alencar denuncia a presença do escravo nos lares brasileiros através da figura de Pedro e há relação entre o amor, o dinheiro e o casamento, que iria permear boa parte da sua produção literária, conjugando a temática francesa com o tema nacional, com uma crítica social a um hábito que gostaria de ver terminado.

Alencar para sustentar o enredo mistura duas críticas, a relação entre o amor, o dinheiro e o casamento, e a presença do escravo nos lares, e o elo é a calúnia. Através dela Pedro, o escravo, separa o casal Eduardo e Henriqueta, a fim de conseguir “promoção”: deseja tornar-se cocheiro e vestir uma libré após o casamento imaginado por ele entre Eduardo e uma viúva rica.

Quanto à caracterização da personagem principal, um olhar mais detalhado sob sua constituição faz-se necessária para que se possa visualizar o grau da calúnia construído por Alencar, como uma chave para as críticas contidas na peça. A citação seguinte reproduz o autorretrato de Pedro:

Pedro: Sim. Pedro fez história de negro, enganou senhor. Mas hoje mesmo tudo fica direito.
Carlotinha: Que vais fazer tu? Melhor é que estejas sossegado.
Pedro: Oh! Pedro sabe como há de arranjar este negócio. Nhanhã não se lembra, no teatro lírico, uma peça que se representa e que homem chamado Sr. Fígaro, que canta assim:
Tra-la-la-la-la-la-la-la-tra!!
Sono un barbiere di qualità!
Fare la barba per carità!...
Carlotinha: (Rindo-se): Ah! O Barbeiro de Sevilha!
Pedro: É isso mesmo. Esse barbeiro, Sr. Fígaro, homem fino mesmo, faz tanta cousa que arranja casamento de Sinhá Rosinha com nhonhô Lindório. E velho doutor fica chupando no dedo, com aquele frade D. Basílio!
Carlotinha: Que queres tu dizer com isso?
Pedro: Pedro tem manha muita, mais que Sr. Fígaro! Há de arranjar casamento de Sr. moço Eduardo com sinhá Henriqueta. Nhanhã não sabe aquela ária que canta sujeito que fala grosso? (Cantando) “La calunnia!...” (ALENCAR, 2004, p. 67).

Alencar o transforma num Fígaro brasileiro. Segundo Machado de Assis, “menos nas intenções filosóficas e nos vestígios políticos” (ASSIS, 1997, p. 134) de seu modelo. A arma de Pedro é justamente a calúnia: assim como na ópera de Rossini (baseada no romance de Beaumarchais) na qual Fígaro dispõe de calúnias para planejar o casamento do Conde de Alvimara com Rosina, Pedro faz o mesmo em relação a Eduardo e Henriqueta.

Há em Pedro a reprodução de uma figura cômica clássica na commedia dell’arte: os zanni (criados). A caracterização de Pedro aproxima-se, assim, do arlequim. Além de sua aproximação com o Fígaro, há também a sua aparência de Arlequim em O Servidor de Dois Amos, de Carlo Goldoni. Ambos caracterizam-se por uma infantilidade e malícia, além da dependência em relação aos seus senhores. José Veríssimo a respeito disso considera Pedro uma “réplica indígena do criado ou lacaio da antiga comédia italiana” (VERÍSSIMO apud SÜSSEKIND, 1982, p. 48).

Outra aproximação possível da caracterização de Pedro constitui-se com o teatro latino clássico representado pelas comédias de Plauto, especificamente O Anfitrião e O Gorgulho. Em ambas há a figura do escravo em sua constituição de esperteza e submissão tal como observadas em Pedro e no Arlequim. Nestas peças os escravos denominados respectivamente de Sósia e Palinuro talvez representem o início de uma tradição teatral (já que essas comédias baseiam-se na Nova Comédia Grega) de conferir ao escravo o estigma de esperteza e submissão que, passando pelo criado Arlequim, chegariam nestas características visualizadas em Pedro. Plauto inovou no teatro produzido em sua época, a seguir uma influência grande da Nova Comédia Grega, ao caracterizar suas personagens. O aparecimento de escravos, concubinas, soldados e velhos, personagens já existentes, mas com uma recorrência grande na obra deste autor, contribuiu para modificar as caracterizações em suas peças. Uma observação pertinente relacionada a esta temática é o fato de o autor ter sido escravo durante um período de sua vida e ter convivido com toda sorte de pessoas.

O escravo plautino é o responsável por conduzir a trama da peça, como também por introduzir a exposição das situações e o humor nelas. Há, portanto, a introdução por Plauto de um arquétipo de escravo esperto, apresentando certa força por ele por ter utilizado o tema do escravo presente na Comédia Nova Grega para seus propósitos. A inovação feita por ele deve-se ao fato de os escravos caracterizados constituírem-se por uma superioridade em relação às outras personagens suas e também de outros autores: esta percepção é feita de acordo com as situações em que os escravos enganam seus senhores ou quando se comparam aos grandes heróis, distinguindo o autor e suas peças entre os demais.

Portanto, a função de Pedro é através da calúnia estimular a intriga. Eis a crítica primeira de Alencar: a denúncia da presença do escravo dentro dos lares brasileiros, uma herança colonial que deve ser suplantada. Há igualmente a observação do seu pensamento sobre ser a escravidão um mal instituído tanto aos escravos quanto aos senhores, e a mesma observação por parte de Freyre, dentro do que foi levantado sobre o nível da dissimulação na sociedade. Houve quem visse nesta peça uma possibilidade de Alencar escrever um texto abolicionista, como exemplo, está Machado de Assis que em crítica escrita sobre as peças de Alencar afirma que “o traço é novo, a lição profunda” (ASSIS, 1997, p. 136).

Em relação ao conservadorismo político de Alencar, sabe-se que acreditava mesmo na extinção gradual da escravidão, pois temia um caos econômico no país. Era declaradamente escravocrata enquanto deputado conservador. Mas como conciliar sua posição conservadora com a visualização que alguns críticos viam em sua obra de abolicionista? A solução poderia ser a definição de Magalhães Júnior sobre o desfecho da peça, e para quem Alencar aparece como um contemporizador:

Achava que a escravidão era um mal e que o mal maior fora começá-la (...). Assim o desfecho de O Demônio Familiar (...) constituiu senão uma antecipação de sua atitude conformista. Queria os escravos fora dos lares e longe das famílias, mas permanecendo nas senzalas e no trabalho forçado dos eitos (MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 119).

Há a observação de que Alencar via na escravidão um mal. É fato, portanto que, ao ser escravocrata não era antiabolicionista. Embora Magalhães Júnior tenha exagerado ao afirmar ao final de seu texto que tanto o autor como seu personagem Eduardo eram a favor dos trabalhos forçados, há a concordância com João Roberto Faria em seu José de Alencar e o teatro (1987) a respeito de ser o autor um contemporizador, ao observar a opinião de Magalhães Júnior a esse respeito, e ao afirmar que

Cremos, pois, que a condenação do cativeiro, sem estar explicitamente colocada, ou melhor, sem traduzir um intuito propagandístico claro, é sugerida pelo próprio curso da intriga (...). Parece não haver dúvidas do caráter abolicionista de O Demônio Familiar, afirmado pelo próprio autor e reconhecido por vários críticos. Contudo, é preciso esclarecer o seguinte: Alencar não abordou os verdadeiros “perigos e horrores” da escravidão, mas o seu lado ameno, colocando no centro da ação um escravo travesso, movido por um objetivo fútil. Assim, embora a comédia condene a instituição do cativeiro, a questão é vista pelo lado do senhor, ou seja, a escravidão é condenada, em primeiro lugar, pelo mal que faz aos patrões (FARIA, 1987, p. 50).

A citação toca em dois pontos importantes que merecem esclarecimento. O primeiro deles relaciona-se à polêmica travada por Joaquim Nabuco com Alencar em torno do tema do cativeiro, e inclui nela as questões envolvendo O Demônio Familiar e Mãe. Nabuco como abolicionista não acreditava nas intenções do político conservador em retratar numa obra fictícia uma questão contra a qual Alencar se posicionava na tribuna parlamentar (a abolição sendo extinta abruptamente). Numa réplica a ele Alencar afirma colocar em cena, assim como Aristófanes, Plauto e Molière “os perigos e horrores dessa chaga social” (COUTINHO apud FARIA, 1987, p. 50). Portanto, justifica-se a citação de Faria feita acima, e a postura de Alencar contra a escravidão dentro da peça.

O segundo é o ponto de vista do autor que denunciava a instituição pelo mal feito aos senhores, e caracteriza Pedro como um perigo representado para a família de Eduardo; dá argumento à sua crítica: a presença dos escravos na família é prejudicial pois ameaça a paz doméstica através de intrigas e calúnias. Nas palavras de Eduardo: “Já soube tudo, uma malignidade de Pedro. É a consequência de abrigarmos em nosso seio esses répteis venenosos, que quando menos esperamos nos mordem no coração!” (ALENCAR, 2004, p. 69).

De acordo com as palavras de Faria, a peça “trata de uma condenação do cativeiro, sugerida pelo próprio curso do enredo, mas não defendida como tese por Alencar (...). A liberdade dada a Pedro (...) não deixava de ser uma verdadeira provocação de Alencar à sociedade escravista” (FARIA, 1993, p. 171 e 172). Esta provocação refere-se, evidentemente, em primeiro lugar à alforria concedida a Pedro, e depois à presença escrava nos lares, e às consequências do regime do cativeiro, que dá condições para o surgimento de características como as surgidas em Pedro, a calúnia e ambição. É dela também a responsabilidade dos epítetos recebidos por Pedro: criança, réptil vil, capetinha, insuportável, vadio, etc. (SÜSSEKIND, 1982, p. 45).

A outra crítica contida na peça relaciona-se ao tema das relações entre amor, casamento e dinheiro. Alencar considera a família uma instituição social moralizadora e civilizadora. Condena, assim, os pais de família que obrigam suas filhas a um casamento forçado pautado em conveniências pecuniárias, pois a família deve ser a base para a moral social, e um casamento arranjado fatalmente estaria fadado a contribuir para o adultério. O amor deve ser vivenciado não como a paixão romântica avassaladora, mas um sentimento calmo, que nasce da convivência pacífica entre as pessoas e contribui, assim, para o equilíbrio familiar. Critica, pois, o contrato matrimonial baseado em dinheiro e em conveniências sociais.

Alencar ao lançar mão desta sua opinião em grande parte de suas obras relaciona o assunto nacional por ele discutido nesta peça — a crítica ao costume da permanência anacrônica de um escravo em seu meio — ao problema primeiro discutido pelos realistas franceses nas deles, que são as relações entre amor, dinheiro e casamento.

Pedro, o demônio familiar, é caracterizado como um corretor de casamentos. Para ele, o dinheiro é mais importante que o amor e a amizade. Outros personagens surgem na trama com esta mesma característica. O primeiro deles é Vasconcelos, pai de Henriqueta, que sendo credor de Azevedo, oferece a filha como pagamento da dívida, convencendo-a de que não pode recusar o pedido de quem é devedor. O outro é Azevedo, que diz a Eduardo que as conveniências do casamento são a necessidade social de se ter uma mulher do lado e os benefícios que isso a ele daria nesse meio como ser admirado por ter do seu lado uma mulher bonita, vista como um aparato, uma mobília.

Eduardo tem por função defender a família como a instituição civilizadora, percebida nos seus discursos de raisonneur. Rebate, por isso, os casamentos por conveniência ou dinheiro, e tem como função aproximar Alfredo de Carlotinha e, depois, reaproximar-se de Henriqueta, desfazendo o casamento por conveniência pretendido pelo pai dela com Azevedo e também, descaracterizando a trama pretendida por Pedro. Depois disso, ainda dá a carta de liberdade a Pedro, e instituindo a ele somente a responsabilidade de seus atos perante a sociedade.

Uma outra característica de Alencar presente no texto são suas intenções relativas ao nacionalismo. Com a personagem de Azevedo, critica as instâncias antinacionalistas e revela sua constante busca da arte nacional:

Azevedo: A nossa “Academia de Belas-Artes”? Pois temos isto aqui no Rio?
Alfredo: Ignorava?
Azevedo: Uma caricatura, naturalmente... Não há arte em nosso país.
Alfredo: A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe é o amor dela.
Azevedo: Sim, faltam os artistas.
Alfredo: Faltam os homens que os compreendam; e sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
Azevedo (com desdém): Já foi a Paris, Sr. Alfredo?
Alfredo: Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio ir.
Azevedo: Por que razão?
Alfredo: Porque tenho medo de, na volta, desprezar o meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que é mau (ALENCAR, 2004, p. 97).

É a partir da constituição do afrancesado Azevedo também a sua crítica ao hábito de misturar outras línguas ao português:

Azevedo: É um excelente appartement! Magnífico para um garçon... Este é o teu valet de chambre?
Eduardo: É verdade; um vadio de conta!
Pedro (a Azevedo, em meia voz.): Hô... Senhor está descompondo Pedro na língua francesa (ALENCAR, 2004, p.51).

Além dessas características, há a peculiaridade quanto à construção da língua utilizada por Pedro. Nas concepções românticas seguidas por Alencar, a busca pela língua nacional fez com que reproduzisse em Pedro a forma falada pelos jovens no país. Mesclando diversas vezes onomatopeias — “Pedro puxou as rédeas; chicote estalou; ta, ta, ta; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr...” (ALENCAR, 2004, p. 42), — Pedro utiliza também gírias — “o moço está queimado, hi!...” (ALENCAR, 2004, p. 49) — e solecismos — há de ver ele passar só gingando: tchá, tchá, tchá...!” (ALENCAR, 2004, p. 40). Alencar afirma ter-se servido de inspiração no escravo com quem convivera na adolescência, que o acompanhou nos anos em que morou em São Paulo para cursar a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Aproxima os termos da coloquialidade presentes na fala de Pedro dos preceitos da comédia realista. Alencar, ao fazer essas caracterizações sobre a oralidade, evidencia o problema a respeito da questão que envolve a língua nacional enquanto elemento constitutivo de uma oposição à língua da metrópole, para a caracterização do elemento brasileiro.

Há, portanto, a realização de dois projetos estéticos por conta da utilização das falas dos escravos propostos por Alencar. O primeiro é a sua construção a serviço da comédia realista. O segundo, parte da busca da cor local para caracterizar a literatura nacional, e para isso Alencar reúne as duas como tópicos no enredo da peça. Não são transcrições linguísticas literais, tal como realizadas em situações de atos de fala reais, mas apenas a reprodução caricata do que vinha sendo feito na imprensa a respeito da “prosódia popular”. A sua utilização evidencia a contribuição do cativeiro para a formação da identidade nacional em um momento em que os autores buscavam situar a cor local investigando os supostos usos da língua, mais especificamente das classes mais simples da população assim como a dos escravos; constituindo uma tentativa de incorporar os povos do país dentro da invenção da identidade, contra a metrópole.

Uma observação importante torna-se necessária, a respeito da utilização desta fala do escravo como um artifício para o fazer literário. Ao ser recordada a definição de Adonias Filho a respeito do documento, em que o romancista utiliza a oralidade através dos contos e autos como documentação para o romance, é por essa via também importante a lembrança dispensada pelo romantismo ao popular, em sua via de oralidade. Pela primeira vez o povo é o centro da História, o que ocorreu na concepção do Romantismo. De acordo com Burke, um ensaio escrito por Herder em 1778 possui como ponto de partida a observação de que a poesia antiga tal como praticada entre os hebreus, os gregos e os povos do norte possuía uma eficácia perdida em sua época, por ser divina e possuir funções práticas: “O que parecia estar implícito no seu ensaio é que, no mundo pós-renascentista, apenas a canção popular conserva a eficácia moral da antiga poesia, visto que circula oralmente, é acompanhada de música e desempenha funções práticas (...)” (BURKE, 1989, p. 32). Dessa forma, há um interesse crescente em torno das canções populares que resultou num retorno ao povo e a sua cultura.

Este interesse pela cultura popular foi observado também na Literatura. Já foi anteriormente observada a importância da percepção das diferenças linguísticas das línguas brasileira e portuguesa, como ato de oposição ao domínio colonial, como um traço de legitimação e pertencimento à nova “nação”, e que para tanto é necessária a observação dessa linguagem em seu contexto de uso, na sociedade e nas classes populares. O artifício literário de encontrar no povo a cor local é visto em Alencar pela tentativa de construção que ele faz da oralidade em seu trabalho, utilizada como artifício e em oposição à língua da metrópole no contexto de pós-emancipação política, e no caso de O Demônio Familiar é observada em Pedro. O projeto estético desenvolvido por ele a partir da comédia realista encontra-se com este traço da oralidade na caracterização de Pedro como uma característica tanto da escola romântica como uma iniciativa de marcar a linguagem brasileira em oposição à portuguesa. Como característica da primeira, foi observada por Sílvio Romero e Afrânio Coutinho a marca das narrativas orais em Alencar na confecção de sua ficção; em relação à segunda, já foram observados os traços da constituição da linguagem brasileira em oposição à portuguesa. Em se tratando da importância que o Romantismo teve sobre o romance no Brasil, que de acordo com Coutinho, o criou, diferentemente do que houve em outros países principalmente os europeus nos quais houve neles uma maior estruturação narrativa durante este período, foram retirados das narrativas orais o desenvolvimento da intriga, do enredo e a configuração do tempo na história (COUTINHO, 2004, p. 286). Ao ser observada a falta da tradição novelística no país é percebida a importância das narrativas orais na confecção do romance, e Alencar juntamente com Bernardo Guimarães são os que mais bem aproveitaram essa estrutura. Esses componentes justificam a observação feita por Adonias Filho em relação à utilização pelo romance das estruturas orais, que a ele servem de documento, e que será uma constante na configuração da literatura brasileira, por ser o romance nacional configurado com esta base.

Assim, é percebida como componente da comédia realista a utilização feita por Alencar de elementos da oralidade ao caracterizar Pedro. O primeiro deles pode ser identificado com o que já anteriormente foi informado sobre a identificação do escravo com a tradição em torno do Arlequim (tendo sido composto no teatro medieval, caracteristicamente oral por serem as peças de improviso) e o segundo seria a sua maneira de falar como artifício literário para a tentativa de representação por Alencar proposta sobre a linguagem popular desenvolvida no país.

Há, contudo, a necessidade de aproximar a leitura feita por Freyre em Mãe com a temática desenvolvida em O Demônio Familiar sobre a escravidão. Ao serem verificadas as características observadas por Freyre sobre a dissimulação encontrada em Mãe, e aproximadas a O Demônio Familiar, há nesta peça a crítica alencariana à presença do escravo nos lares, e tal como ocorre em Mãe, observando o prejuízo desta presença a ambos os lados. Pedro, o moleque da peça, recebe a carta de alforria como punição aos seus atos, e será o único responsável por eles daí em diante. Alencar demonstra através disso não só a liberdade ao escravo, mas também o senhor vendo-se desvinculado da responsabilidade de cuidar de seu cativo. Como a dissimulação ocorrida em Mãe é da ordem do que pontua Freyre na complicação das relações entre a natureza e a sociedade (o ressentimento pela sociedade da mãe escrava de seu filho) nesta peça, O Demônio Familiar, pode haver uma situação de dissimulação se for reconhecido que para a liberdade dada ao escravo, a situação do senhor ao alforriá-lo foi de livrar-se da sua responsabilidade sobre ele; o que poderia representar um caminho inverso ao de Mãe, por descomplicar o natural restabelecendo uma ordem social (livrar o escravo do jugo e o senhor de sua responsabilidade sob tal ato). Há nesta peça também através da dissimulação a crítica indireta feita por Alencar ao sistema patriarcal e observada por Freyre.

Essa dissimulação encontra-se com o que Alencar diria mais tarde a respeito de temer um caos social no país ao libertar seus cativos e não dar a eles condições de cidadania. Eduardo deixa claro suas intenções: “Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa” (ALENCAR, 2004, p. 130). Já neste ponto, ocultado, dissimulado, Alencar aponta para a problemática caótica, enquanto que em Mãe com a morte de Joana é clara a possibilidade de prejuízo ao senhor apresentado nas palavras da própria Joana: “Pois meu filho havia de ser escravo como eu? Eu havia de lhe dar a vida para que um dia quisesse mal à sua mãe?” (ALENCAR, 1977, p. 273).

Há aqui duas considerações a serem feitas. A primeira é à obra de Alencar. É observada a sua crítica em Mãe, a respeito do prejuízo e da alienação impostos tanto ao senhor quanto à sua escrava, e n’O Demônio Familiar, do prejuízo que a presença do escravo nos lares traz também ao escravo e ao senhor. A segunda é à percepção de Freyre sobre Alencar. Observa-se a pontuação de Freyre sobre Mãe na qual a situação da dissimulação do ressentimento é resultado da condição de uma escrava que vive como cativa de seu filho, potencializando a crítica alencariana ao sistema escravocrata e patriarcal, e indireta como encontrada n’O Demônio Familiar uma situação similar de dissimulação quando o fato de o senhor alforriar seu escravo repercute no fato de ele próprio se ver livre de uma responsabilidade sobre o cativo. Portanto, justifica-se a aproximação entre as duas peças alencarianas com a temática em torno da escravidão, e a aproximação da leitura de Freyre sobre Mãe com O Demônio Familiar.

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Fonte:
ALICE CARDOSO FERREIRA: “UMA IDA AOS ARQUIVOS DA HISTÓRIA NACIONAL: A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DA LITERATURA”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras: Mestrado em Estudos Literários, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Linha de pesquisa: Literatura, Identidade e Outras Manifestações Culturais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profª. Dra. Silvina Liliana Carrizo). Juiz de Fora, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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