O propósito indianista de José de Alencar



O PROPÓSITO INDIANISTA DE JOSÉ DE ALENCAR

José de Alencar é considerado um dos símbolos da literatura no Brasil, um dos grandes precursores dos ideais nacionalistas na prosa brasileira. Esses ideais contribuíram para o estabelecimento de certos temas nacionais, como a exaltação da natureza e de nossas paisagens; do índio e de suas características “primitivas”, inserindo o regionalismo na literatura; contudo, foi através de inovações na linguagem que Alencar deu novos rumos à ficção brasileira.

Autor de uma vasta produção, não se ateve somente a romances, escreveu crônicas, teatro, autobiografia intelectual, crítica, polêmica e até poesia. Impulsionado pelo espírito nacionalista, numa tentativa persistente de construção da literatura brasileira, escreveu romances urbanos, indianistas, regionalistas e históricos.

Segundo Ataíde, citado por Meyer (1979), suas obras não são apenas fruto da vocação literária; seu desejo era consciente e construtivo: "escrevia por querer, escolhendo bem os seus motivos e distribuindo a sua atividade de romancista de modo a abranger de fato todas as faces da nacionalidade, cuja literatura era preciso criar” (MEYER, 1979, p. 196).

Em seus romances indianistas, Alencar demonstrou a necessidade de afirmação de uma literatura que nascesse com a "essência" brasileira; para isso, ele usou formas narrativas e descritivas inéditas, que caracterizavam o selvagem, sua língua e costumes, em harmonia com a natureza, cenário nacional.

Após a proclamação da independência em 1822, o Brasil apresentava uma sociedade desestruturada, que tinha conquistado sua "independência" política, mas necessitava afirmar-se nacionalmente, mesmo que por meio de elementos mitológicos e históricos, pois carecia de uma identidade própria. Para isso, era preciso uma figura legítima e digna de representar o Brasil em nossa literatura. O negro não poderia ser, pelo fato de ser estrangeiro e escravo; o branco só poderia lembrar o colonizador europeu - o explorador. Nesse contexto, surgiu a figura do índio, o primeiro habitante desta terra, um verdadeiro herói, na ficção romântica brasileira.

Alencar, como bom romântico, inicia sua série de romances indianistas com o bom selvagem, O Guarani (1857); completa com Iracema (1865), a virgem dos lábios de mel; e finaliza com Ubirajara (1874), o nobre guerreiro tupi. Analisando essa seqüência cronológica, observa-se a distância de dezessete anos entre o primeiro e o último romance indianista publicado. Castello (1979) propõe um ajuste cronológico nesses romances, classificando-os como grupo histórico-indianista:

A aproximação das características dominantes, a histórica e a indianista, determina a subdivisão ou redistribuição das obras citadas em dois subgrupos: o primeiro, em que o traço indianista e mítico é predominante; o segundo, em que a perspectiva histórica é alimentada pelo sentimento de brasilidade que eclode no período da independência. Ressaltamos o primeiro subgrupo, em que se situa Iracema, assim constituído: Ubirajara, O Guarani e Iracema. (CASTELLO, 1979, p. 212)

Pensando na perspectiva histórica desses romances, essa seria realmente uma possível ordem, pois em Ubirajara a narrativa transcorre antes da invasão do branco colonizador, predominando o contexto dos índios entre si. N’O Guarani e em Iracema, os selvagens vivem sob a influência do branco europeu. A união dessas duas culturas constitui o mito de uma nova civilização.

Nos três romances, José de Alencar constrói a imagem nobre do primitivo, do índio brasileiro. Essa nobreza é caracterizada pela força e coragem, por virtudes morais que remetem, algumas vezes, ao cavalheirismo da Idade Média, representado no romantismo europeu, que também buscava estabelecer as bases das nacionalidades do Velho Continente. Essa influência medievalista européia ocorre - mais significativamente - em O Guarani e Ubirajara e menos em Iracema, como afirma Moraes Pinto (1995), em seu estudo sobre Chateaubriand e Alencar:

a tradição ocidental, ele retoma apenas, no contexto de seus romances, os costumes medievais, evidentes n'O Guarani, um pouco menos em Ubirajara e bastante secundários em Iracema. E isso revela ainda uma vez a preocupação de fixar as origens de nossa formação, embora estabelecendo correlações com o romantismo europeu que buscava as raízes da nacionalidade na Idade Média
. (MORAES PINTO, 1995, p. 38)

É bem verdade que Peri e Ubirajara se aproximam de personagens dos romances de cavalaria, através de sua força, coragem, honra, nobreza, etc.; Peri, ainda mais que Ubirajara, pois vivia em harmonia com o colonizador, representado pela figura do fidalgo Dom Antônio de Mariz. Nesses dois romances e em Iracema, Alencar destaca os costumes, a linguagem indígena e também elementos da fauna e flora brasileiras, na tentativa de revelar a grandiosidade das riquezas naturais e culturais existentes no Brasil, como afirmação da jovem pátria, perante a Europa e a ex-metrópole.

Augusto Meyer (1979) reflete sobre os bons tempos das novelas de cavalaria, lembrando Dom Quixote e outros romances, em que aventuras se misturavam ao pitoresco, ao imprevisto, com um grande sabor de encantamento. Eram justamente essas características que explicavam o prestígio das novelas de cavalaria: "Tudo era maior, mais aventuroso e exuberante naquele outro mundo, mas por isso mesmo, tudo acontecia muito longe de nosso alcance e sem exigências de probabilidade e verossimilhança, ou de estrito determinismo" (MEYER, 1979, p. 185).

Assim, o crítico argumenta sobre o prestígio das obras de Alencar, nesse caso mais especificamente sobre O Guarani, na figura idealizada de Peri, o herói, que foi primeiramente comparado a um cavaleiro medieval pelo próprio narrador de Alencar:

Peri é a versão indígena de um cavaleiro sem mancha nem medo. O próprio Alencar, pela boca de Dom Antônio de Mariz, como a prever as inevitáveis críticas, deixa isso claro: "crede-me, Álvaro, é um cavaleiro português no corpo de um selvagem!". (MEYER, 1979, p. 185-186)

Como marca da tradição romântica, vemos a nobreza de um herói, retratada na figura do rude representante das selvas brasileiras, presente nos romances indianistas alencarianos. Segundo Meyer, o tema do bom selvagem francês ganhou pelas mãos de Alencar, um jeito novo, com "sabores" que remetem ao histórico e ao nacional.

José de Alencar não nega as influências européias. Em sua obra Como e Porque Sou Romancista ele menciona as várias leituras feitas desde sua infância, quando lia romances em voz alta para sua mãe e amigas, num clima de concentração e emoção, até seu amadurecimento como romancista.

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as pausas para dar logar as expansões do auditório, o qual desfazia-se em recriminações contra algum máo personagem, ou acompanhava de seus votos e sympathias o heróe perseguido.
Foi essa literatura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espirito a tendencia para essa fórma litteraria que é entre todas a de minha predilecção? Não me animo a resolver esta questão psychologica, mas creio que ninguém contestará a influencia das primeiras impressões.
Li nesse decurso muita cousa mais: o que me faltava de Alexandre Dumas e Balzac, o que encontrei de Arlincourt, Frederico Solié, Eugenio Sue e outros. Mas nada valia para mim as grandiosas marinhas de Scott e Cooper e os combates heróicos de Marryat.
Quanto a poesia americana, o modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre que tive, foi esta explendida natureza que me envolve, e particularmente a magnificiência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescencia, e foram o portico magestoso por onde minh'alma penetrou no passado de sua pátria. (ALENCAR, 1995, p. 22, 23, 35 e 39)

As obras de Alencar sempre foram muito discutidas pela crítica. Questiona-se, entre outros aspectos, se seus romances indianistas inclinam-se para o nacional ou sofrem de falta de originalidade.

Moraes Pinto (1995), em sua obra A vida selvagem: paralelo entre Chateaubriand e Alencar, relaciona alguns aspectos suscitados pelos críticos: Machado de Assis, Franklin Távora, Joaquim Nabuco e Araripe Júnior a respeito das obras indianistas de Alencar. Machado de Assis, analisando Iracema, afirmou que José de Alencar é um digno representante do melhor indianismo, embora tenha excedido em algumas imagens, e que esse tema não encerra a totalidade do nosso patrimônio cultural. Machado admite a superioridade do escritor brasileiro que, particularmente no texto em questão, conhece a arte de despertar a emoção do leitor, com a eficácia de sua mensagem.

Já Franklin Távora, unido a José Feliciano de Castilho, estimulados pelo imperador Pedro II, iniciaram uma campanha contra Alencar, visando atingir sua imagem política e conseqüentemente a do artista, alegando, através das cartas a Cincinato, a falta de autenticidade de José de Alencar em Iracema. Criticamente analisavam-na pelo ponto de vista gramatical, etnográfico e histórico, acusando-o de imitação ao romance Le Natchez, de Chateaubriand.

Joaquim Nabuco - ainda jovem escritor - também questionou a falta de originalidade nas obras de Alencar. Esses questionamentos deram origem à polêmica de 1875 que criticava severamente os valores nacionais do criador de Iracema, através da Polêmica Alencar-Nabuco.

Araripe Júnior analisou a gênese da criação literária em Alencar, destacando o senso poético e a originalidade de suas obras, reconhecendo-o como escritor plenamente consciente de seu indianismo.

Além desses críticos, mencionados por Moraes Pinto (1995), trazemos a posição de Alfredo Bosi (2001), que analisa o indianismo de Alencar sob a perspectiva de um "mito sacrificial", pois, segundo ele, os personagens Peri e Iracema deveriam ocupar uma posição de destaque e de rebeldia em face do invasor europeu; mas isso não ocorreu, pelo contrário, tornaram-se seus escravos, através dos sentimentos: "Nas histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono de sua pertença à tribo de origem. Uma partida sem retorno" (BOSI, 2001, p. 178-179).

Bosi reconhece exceção em Ubirajara, que retrata a vida indígena antes do contato com o branco, mais especificamente, em uma das notas de rodapé em que Alencar defende os índios da imagem de "feras humanas" pintada pelos cronistas da época colonial:

Suspeitando, porém, que o teor ambíguo desse nativismo não poderia, em razão do seu modo de compor-se, manter sempre uma face homogênea, busquei a exceção, a rara exceção, e afinal a encontrei em uma breve passagem, uma nota etnográfica aposta à lenda de Ubirajara. Foi a última obra em que Alencar voltou ao assunto. Trata-se de uma poetização da vida indígena anterior ao descobrimento. A nota sugere uma leitura da colonização portuguesa como um feito de violência. Defendendo os tupis da pecha de traidores com que os inflamaram alguns cronistas, assim lhes rebate Alencar: "foi depois da colonização que os portugueses, assaltando-os como a feras e caçando-os a dente de cão, ensinaram-lhes a traição que eles não conheciam. (BOSI, 2001, p. 181)

Aproveitando a oportunidade, antecipamos que, na verdade, Alencar faz a defesa dos selvagens não apenas em uma "breve passagem" de uma nota de Ubirajara, mas sim em várias notas de rodapé desse romance, as quais analisaremos posteriormente.

Anterior a Bosi, o crítico José Veríssimo (1916) já havia mencionado a intenção proposital de Alencar em contrariar os cronistas através da idealização do selvagem. Em seus estudos sobre os prosadores românticos, ele reconhece as influências européias de Cooper, Chateaubriand, Walter Scott e Rosseau não somente em Alencar, mas em todos os autores de "romances americanos de intenção histórica", não retirando os créditos de originalidade e talento de suas obras, principalmente em O Guarani.

É esta a primeira distinção de José de Alencar, introduzir no romance brasileiro o índio e os seus acessórios, aproveitando-o ou em plena selvageria ou em comércio com o branco. Como o quer representar no seu ambiente exato, ou que lhe parece exato, é levado a fazer também, se não antes de mais ninguém, com talento que lhe assegura a primazia, o romance da natureza brasileira. Protraindo-se nele, através de Chateaubriand, o sentido de Rosseau, exageradamente coroavel ao homem selvagem, fez este romance do índio e do seu meio com todo o idealismo indispensável para o tornar simpático. E falo de propósito pra contrariar a imagem que dele nos deixaram os cronistas e que os seus actuais remanescentes embrutecidos não desmentem. Nesse romance havia de ficar, pela sinceridade da inspiração e pela forma, a mais bela que até então se aqui escrevia, o mestre inexcedível.
(VERÍSSIMO, 1916, p. 272)

Castello (1979) discute o indianismo de Alencar, enfocando a formação da consciência nacional, reconhecendo interferências inevitáveis ao romancista, que recorreu a várias fontes: sugestões bíblicas, epopéias antigas (sobretudo a de Homero); Walter Scott e Alexandre Herculano, como sugestões do romance histórico; Chateaubriand e Bernardin de Saint-Pierre, para comunicação do sentimento da paisagem; e outros romances histórico-medievalistas do Romantismo europeu.

Mas é natural que se reconheçam como inevitáveis as interferências das fontes principais de um caso no outro, ambos sob o sentimento nacionalista do próprio Romantismo em geral, que se voltou para a exaltação lírica e épica das origens de cada povo. Tudo isso somando, explica o romance histórico-indianista ou indianista-histórico de Alencar, ao mesmo tempo uma criação legítima do romantismo brasileiro. (CASTELLO, 1979, p. 209)

Esse breve comentário sobre o que diz uma parcela da crítica literária a respeito do indianismo alencariano demonstra não a falta de originalidade de suas obras, mas revela que José de Alencar, antes de ser um escritor, é um exímio leitor crítico, que se serviu de várias leituras que, de certa forma, o influenciavam e serviram de inspiração para seus romances. Estimulado não só pela leitura de escritores europeus, mas também pela leitura dos cronistas, autores dos séculos anteriores, viajantes, com seus relatos sobre o Brasil, missionários, naturalistas com suas pesquisas científicas, entre outros, iniciou sua caminhada na literatura brasileira tendo como ponto de partida o romance indianista.

Alencar não só leu, mas citou os autores dos séculos anteriores. Essas citações estão presentes nos três romances indianistas, porém com maior ocorrência em Ubirajara, o que o torna mais interessante, por apresentar maior aproximação do autor com o universo indígena e também maior teor de leitura crítica da “etnografia” disponível.

O Guarani, Iracema e Ubirajara formam - apesar do longo tempo transcorrido entre eles - um conjunto que remete à fundação mítica do Brasil. O primeiro é finalizado com o dilúvio, a lenda de Tamandaré (o Noé indígena), que se repete com Peri e Ceci, sobreviventes que dariam origem a uma nova raça - uma nova geração - que povoaria o Brasil.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:— Tu viverás!... [...]
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...E sumiu no horizonte. (ALENCAR, 2000, p. 295-296)

O segundo, o poema em prosa de Alencar, narra a história de amor da virgem do lábios de mel, Iracema, e o branco europeu, Martim, que deixam como fruto de seu amor, Moacir, o elemento que representaria o início de uma nova civilização: a brasileira. Miticamente, Iracema (mãe e esposa) representando a Terra fecundada pelo colonizador europeu.

De longe viram Iracema, que viera esperá-los à margem de sua lagoa da Porangaba. Caminhava para eles com o passo altivo da garça que passeia à beira d'água: por cima da carioba trazia uma cintura das flores da naniva, que era o símbolo da fecundidade. Colar das mesmas cingia-lhe o colo e ornava os rijos seios palpitantes.
Travou da mão do esposo, e a impôs no regaço:
_ Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de seu filho.
_ Filho, dizes tu? Exclamou o cristão em júbilo. Ajoelhou ali e cingindo-a com os braços, beijou o seio fecundo da esposa. (ALENCAR, 2000, p.62)
A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tornou o tenro filho nos braços e com ele arrojou-se à águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à tela mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e amor.
_ Tu és Moacir, nascido de meu sofrimento. (ALENCAR, 2000, p.75)

O terceiro e último romance indianista de José de Alencar, que narra o selvagem e seus costumes antes da chegada do branco colonizador, não nos remete ao processo de miscigenação branco/índio, mas sim ao fortalecimento da raça indígena através da união de duas grandes nações, que passaram a ser chefiadas por um mesmo guerreiro, o chefe Ubirajara. Essa união resultaria nos nobres índios que habitavam as terras do Brasil quando chegaram os invasores europeus.

As duas nações, dos Araguaias e dos Tocantins, formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tornou o nome do herói.Foi esta poderosa nação que dominou o deserto.
Mais tarde, quando vieram os caramurus, guerreiros do mar, ela campeava ainda nas margens do grande rio. (ALENCAR, 1984, p. 94)

Em Ubirajara, Alencar conduziu a narrativa de uma forma diferente dos outros romances indianistas. Nele, o autor construiu dois textos pararelos: o ficcional romântico e o elucidativo, com informações sobre o universo lingüístico e cultural das “tribos” indígenas, baseadas nas leituras dos relatos dos cronistas do período colonial, escritas nas notas de rodapé. Alencar produz na página uma cisão entre ficção e ciência, ideal e "real", que dificulta a realização do seu projeto romântico.

Nesses dois textos que compõem o livro é possível perceber o romancista e o leitor crítico, diferentemente de O Guarani e Iracema. Nestes, Alencar também se utiliza das notas, porém em menor quantidade e com objetivo mais especificamente explicativo e linguístico, trazendo o significado de palavras e expressões do tupi. Suas fontes são raramente mencionadas.

Já em Ubirajara essas notas ganham mais que um sentido explicativo; elas revelam as várias leituras feitas pelo autor para chegar às afirmações sobre a etnografia indígena, além de demonstrar a posição - favorável ou não - de Alencar diante dos autores que trataram desse assunto.

Santiago (1984) afirma que a evolução para um passado puramente indígena, construído em Ubirajara, revela José de Alencar com pensamento crítico mais apurado e com aprofundamento no conhecimento da cultura indígena.

O Guarani é de 57 e é o que tem situação histórica mais próxima da nossa, enquanto Ubirajara é de 74 e é pré-cabralino. Esse dado é revelador, pois nos mostra um Alencar com a determinação de se aprofundar mais e mais no conhecimento da cultura indígena, índio mesmo até o momento de sua pureza. À medida que passam os anos, sua visada se torna mais crítica e suas leituras dos cronistas do período colonial mais copiosas, enquanto o texto literário sai menos comprometido com os valores portugueses e mais engajado com as próprias descobertas nacionalistas de Alencar. (SANTIAGO, 1984, p. 5-6)

A escrita de Ubirajara, Iracema e O Guarani foi possivelmente um desafio para Alencar, em busca de uma saída para o impasse de escrever a terra sem uma língua própria, exigência de toda literatura que se quer nacional, no sentido do que pretensamente contribui para fundar uma nação, objetivo maior de José de Alencar.

Para melhor compreensão dessa composição que José de Alencar faz em Ubirajara, intercalando texto e paratexto, é importante conhecermos mais sobre o enredo, discutindo a constituição ficcional desse romance. Percorrendo as obras indianistas de José de Alencar encontramos no final, em seu último romance indianista, Ubirajara, o selvagem com toda a sua grandeza, força e coragem, livre ainda do contato com os brancos.

Esse romance, apesar de não ter feito o mesmo sucesso que O Guarani e Iracema, não é inferior quanto ao processo de composição romântica e à criatividade de Alencar. O longo tempo transcorrido entre esses romances e Ubirajara, respectivamente 17 e 9 anos, provavelmente contribuiu para que esse livro não tivesse o mesmo êxito entre os leitores. Além disso a cultura literária que em 1874 (ano de publicação de Ubirajara) já tendia para modificações, buscava formas menos idealizadas para a vida, para as coisas e para a sociedade. Novos escritores se revelavam, dentre eles Machado de Assis, que nesse mesmo ano publicava A Mão e Luva e caminhava rumo a um dos marcos do Realismo na literatura brasileira: o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Lúcia Miguel Pereira (1992) ressalta que, a partir de 1870, os escritores foram se sentindo cada vez mais livres para escolher casos, cenas e personagens, coisa que antes não acontecia, pois os romances que precederam esse período faziam acreditar na unidade da pessoa humana, apresentando personagens que encarnavam o vício ou a virtude com a mesma coerência. Segundo ela, Machado veio modificar isso:

Só Machado de Assis ousava, com muita cautela, apontar defeitos nos seus heróis, como também só ele não recorria às descrições naturais, cenário poético de todos os livros do momento, que acentuava a "cor local", preocupação vinda do Romantismo. (PEREIRA, 1992, p. 29)

Alencar, com seu romance Ubirajara, mesmo o escrevendo em 1874, ainda se preocupava com a "cor local" (apesar de um ano depois trilhar novos caminhos com o romance Senhora), como em O Guarani e Iracema, obras cujos temas eram apreciados por Machado de Assis pela notável imaginação literária, atribuída aos elementos indianistas ou ao confronto do índio com a civilização.

Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais os vemos n'Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado, tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito, dos quais citarei, por exemplo, a Iracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e brilhante escritor. (MACHADO de ASSIS, 1997, p. 803)

Ubirajara, o livro "irmão de Iracema", como afirma Alencar na "advertência" é caracterizado como lenda tupi, por apresentar o índio com toda sua "magnanimidade" - qualidade de quem é grandioso, nobre - reinando sob a natureza brasileira, antes da chegada dos europeus.

O selvagem, em primeiro plano, é exaltado, admirado, como um símbolo de liberdade – característica romântica – na tentativa de passar ao público leitor os valores de um indivíduo apegado à terra, revelando suas raízes. Voltar à natureza para reencontrar a pureza das origens, é esse o ideal colocado no selvagem brasileiro.

Esse romance traz a história de um jovem caçador da tribo Araguaia, Jaguarê, que após ter vencido todos os animais da floresta, inclusive o mais feroz - o Jaguar - procura um inimigo corajoso para combater e ganhar nome de guerra.

Nessa procura conhece Araci, a "linda caçadora", virgem filha do chefe da tribo Tocantins. Mas seu desejo maior naquele momento era encontrar um inimigo para combater e vencer. Até que surge em seu caminho Pojucã, guerreiro da tribo Tocantins. Inicia-se o combate entre os dois guerreiros, saindo vencedor Jaguarê, que recebe o nome de guerra, Ubirajara, o senhor da lança, que passa a ser o grande chefe de sua tribo, após alegre comemoração festiva. Pojucã torna-se seu prisioneiro, à espera do ritual da morte, do ritual antropofágico.

Ubirajara parte novamente para disputar o amor da virgem que encantou seus olhos, Araci, rejeitando Jandira, "a mais bela das virgens Araguaias", prometida a ele na juventude.

Recebido com todas as honras pelo povo Tocantins, como "hóspede de Tupã", Ubirajara recebe o nome de Jurandir e disputa com vários outros guerreiros o amor de Araci. Após o combate e as provas de resistência, vence, tendo a virgem como troféu. Contudo, antes de tê-la como esposa, apresenta-se perante a tribo, revelando sua identidade e suas façanhas, entre elas a derrota de Pojucã. O guerreiro Araguaia descobre estar diante do pai de seu inimigo. Anuncia-se a guerra entre Tocantins e Araguaias.

Ubirajara volta à sua aldeia e liberta Pojucã, irmão de Araci, para que lute junto de seu povo. Porém, antes do combate com Araguaias, a tribo Tocantins enfrenta uma batalha com outra tribo inimiga, os Tapuias, que buscavam a vingança.

Nessa batalha sangrenta, morre o chefe tapuia, Canicrã, e fica cego Itaquê, o chefe Tocantins. Sem condições de lutar contra a tribo Araguaia, Itaquê propõe a união das duas tribos, dos "dois arcos", tornando Ubirajara o grande chefe da "poderosa nação que dominou o deserto" até a vinda dos guerreiros brancos.

Ubirajara é um personagem épico e mítico, que traz em si o símbolo da coletividade, um elemento central que representa o grupo. É o herói romântico, retrato idealizado do selvagem de virtudes guerreiras, incutido de costumes e sentimentos indígenas. É um personagem que evolui de acordo com a acumulação de atributos guerreiros, um herói em busca de afirmação social. Inicialmente, Jaquarê, grande e temido caçador, quer ser guerreiro. Realiza seu desejo na derrota de Pojucã, tornando-se Ubirajara - senhor da lança. Como guerreiro, torna-se o grande chefe de sua tribo, no lugar do seu pai. Como chefe araguaia, precisa lutar para conquistar a mulher amada, Araci, recebendo o nome de Jurandir - o que veio trazido pela luz do sol. Após mais essa vitória, é convidado a chefiar também a tribo tocantins, tornando-se chefe supremo da nação Ubirajara.

Percebe-se na narrativa as projeções do narrador, por exemplo, no desejo de auto-afirmação do personagem, que procura preencher um vazio pessoal e social, representado pela sombra vinda com a tristeza, que só acaba quando consegue o que deseja: consagrar-se guerreiro e possuir a mulher amada que se encontrava distante, na tribo Tocantins.

Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca a fama de caçador pela gloria do guerreiro. [...]
Mas o sol três vezes guiou o passo rápido do caçador através das campinas, e três vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.A sombra vai descendo de serra pelo vale e a tristeza cai da fronte sobre a face de Jaguarê. (ALENCAR,1984, p.14)
No mais escuro da mata, vaga o chefe dos araguaias.Seus olhos fogem à luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imagem que traz na lembrança.
À noite, quando o guerreiro dormia em sua rede solitária, Araci, a linda virgem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:
_ Jaguarê, jovem caçador, tu dormes descansado enquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virgem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde. (ALENCAR, 1984, p. 35)

O processo de ascensão social marca as transformações do herói, de jovem caçador a guerreiro e a chefe supremo, a imagem do herói clássico que evolui com a força e a coragem. A elevação do selvagem, numa tentativa de valorização do seu grupo social, ou seja, o guerreiro mais nobre tem a função de comandar a tribo: "Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe" (ALENCAR, 1984, p. 33).

José de Alencar coloca em Ubirajara a alma coletiva, expressa em sua língua, seus costumes, valores e qualidades, na tentativa de mostrar a importância da cultura indígena no processo de formação e construção da cultura brasileira. Mas, para isso foi preciso quebrar o pacto ficcional do Romantismo – em que os leitores teriam uma visão mítica assegurada, mas transfigurada em ficção – e discutir, como faria um etnólogo, a visão dos cronistas sobre os índios e seus costumes nas notas de rodapé, disputando na mesma página o espaço com o herói romântico, o índio histórico, apresentado como em extinção, mas, próximo demais no tempo e no espaço de Alencar, fraturando a narrativa de ficção e abrindo uma brecha para o "real", para uma literatura em sua diferença.

O desejo do herói de se purificar e engrandecer em nome da etnia se confunde com o desejo do autor em afirmar o “bom selvagem”, o mito com todas as suas qualidades individuais e sua contribuição na organização do grupo. Alencar, nesse romance, busca a raiz de um processo identitário, indo mais longe do que em O Guarani e Iracema, reforçando a idéia do homem natural, puro, antes da influência do branco colonizador. Ubirajara, diferentemente de Peri e Iracema, ainda não abandonou suas raízes para seguir o branco, e luta para manter viva a tradição e nobreza de seu povo.

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Fonte:
IVANA PINTO RAMOS: “UBIRAJARA: FICÇÃO E FRICÇÕES ALENCARIANAS IVANA PINTO RAMOS”. ( Orientadora: Prof ª. Drª. Maria Inês de Almeida. Dissertação de mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - Área de concentração: Literatura Brasileira - Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte – MG, 2006.

Nota
:
A imagem ("Iracema", óleo de 1884, de José Maria de Medeiros, inspirado no romance de José de Alencar) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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