O sujeito cognoscente em Weber



O sujeito cognoscente em Weber

Neste tópico exploraremos os elementos que Weber utiliza para trabalhar com uma caracterização do sujeito cognoscente. Nossa atenção maior consiste em focalizar o sujeito a partir da limitação da cognição possível, numa caracterização que explora a relação entre a apresentação dos elementos empíricos e a possibilidade de sua apreensão. Em outras palavras, queremos observar a relação entre o concreto e o conhecimento, cujo desfecho consiste numa relação de contradição, num impasse epistemológico.

A passagem que temos que levar em conta para uma primeira aproximação com a qualificação weberiana de sujeito é:

Assim, todo conhecimento da realidade infinita realizado pelo espírito humano finito, baseia-se na premissa tácita de que apenas um fragmento limitado desta realidade poderá constituir de cada vez o objeto da compreensão científica e de que só ele será ‘essencial’ no sentido digno de ser conhecido. (WEBER, 2001a, p. 124, grifos nossos)

Grifamos “espírito humano finito” intencionalmente. Trata-se do ponto de partida de qualquer conhecimento quanto a suas possibilidades, ou seja, seus limites. Atente-se que nesta passagem há, de um lado, a caracterização acerca da natureza da realidade a ser conhecida (“infinita”) e, do outro, a do sujeito cognoscente (“finito”). Temos, enfim, um sujeito com capacidade cognitiva limitada, com uma possibilidade de conhecimento limitada, portanto. Atente-se à palavra “poderá”. O sentido de “possibilidade” do conhecimento tem como núcleo epistemológico o fato de que apenas um fragmento limitado dessa realidade poderá constituir de cada vez o objeto de compreensão científica. Em resumo: de um sujeito finito, por definição, provém um conhecimento finito enquanto possibilidade. Este foco de leitura poderia ser classificado como céptico moderado: “os cépticos moderados costumam sustentar que há limites no conhecimento [...] os limites de que se fala são limites dados pela estrutura psicológica do sujeito cognoscente, pelas ilusões dos sentidos [...]” (MORA, 1994, p. 122). Devemos acrescentar: ilusões dos sentidos na experiência primeira.

Voltando para a definição de sujeito, vemos uma operação de restrição. Apenas se refere ao conhecimento e ao seu limite e toma como referência cognitiva privilegiada a operação da Razão. É um terreno clássico de discussão do problema, que ressalta a boa operação do espírito com predominância do intelecto enquanto faculdade superior, apta a dirigir as sensibilidades e os afetos, a filtrar suas influências. O sujeito da teoria do conhecimento, o sujeito kantiano, é um grande filtro das camadas mais “rasteiras” do espírito. O “tribunal da Razão” é uma instância autônoma. É o que na tradição durkheimiana se conhece como o afastar as pré-noções, ou os Ídolos baconianos.

No entanto, Weber não deixa de lado uma dimensão do sujeito comumente desprezada na teoria do conhecimento kantiana, a dimensão subjetiva. O ato de valorizar e atribuir significado, o que envolve escolher, preferir e hierarquizar, colocar-se-á como um guia do ato de imputação envolvido na construção conceitual e na elaboração de hipóteses heurísticas. Trata-se da dimensão subjetiva que valoriza, hierarquiza e avalia. No limite, trata-se de escolher pelo que é mais significativo, o que traz consigo um caráter inequivocamente parcial.

Seguindo os conceitos de Weber, o sujeito é portador de uma “relação com valores” ou de uma “relação com respeito aos valores” (Wertbeziehung). Outro termo específico para cunhar este ato de valorizar está contido na expressão (Kulturwertideenn), ou “idéias culturais de valor”.

Contemporaneamente, operação similar foi operada pela diferenciação entre uma Psicologia do Conhecimento e uma Lógica autônoma do conhecimento. Trata-se de uma distinção nuclear para se discutir o problema da objetividade. A primeira lida com questões como a origem do conhecimento em suas raízes subjetivas e imaginativas, numa atmosfera influenciada pelos afetos e sentimentos, intuições, analogias e valorizações, sendo também designada como a esfera da descoberta ou da intuição criadora (Bergson). A segunda, filtrada deste nível do sujeito, lida com questões de validação dos conhecimentos, é local de uma espécie de serenidade despojada de subjetividades e sentimentalidades, lócus de objetividade. Uma formulação contemporânea desta separação entre Psicologia e Lógica, encontra-se em Karl Popper, sobretudo em “A lógica da investigação científica”.

Feito este parêntese, Weber reconhece que estes terrenos são interconectados. Sua ênfase na importância da atribuição de significado e valorização coloca o sujeito como uma totalidade. O sujeito epistêmico do tribunal kantiano não pode ser abstraído do Homem ou Mulher que carrega o ato de conhecer. Trata-se de um sujeito historicamente referido, não um sujeito transcendental. Sua dimensão de emitir juízos de valor, normativos (dever ser), é relevante no ato de tomar posicionamentos com respeito a valores. Por outro lado, sua dimensão de emitir juízos com respeito a valores (ser significativo), o que deixa de ser normativo, é relevante como precedência na escolha de objetos e recortes dos materiais cognitivos. Trata-se do universo da “significação” (Bedeutung). Weber reconhece a importância fundamental das “idéias culturais de valor” e da “kultur” como “cultura pessoal”, numa dimensão do sujeito que remete para suas convicções e valores pessoais. Como afirma Weber: “[...] todo indivíduo histórico está arraigado, de modo logicamente necessário, em idéias de valor” (WEBER, 2001a, p. 131).

A premissa transcendental de qualquer ciência da cultura reside não no fato de considerarmos valiosa uma “cultura” determinada, mas na circunstância de sermos homens de cultura, dotados da capacidade e da vontade de assumirmos uma posição consciente em face do mundo e de lhe conferirmos um sentido. Seja qual for este sentido, ele influirá para que, no decurso de nossa vida, extraiamos dele avaliações de determinados fenômenos da vida humana e assumamos, perante eles, considerados significativos, uma posição positiva ou negativa. (WEBER, 2001a, p. 131, grifos nossos)

Nesta passagem temos trechos significativos. Ser um homem de cultura significa assumir posições e lhes conferir um sentido e se relaciona com o problema do conhecimento porque responde à necessidade de se ter um pressuposto de seleção perante o real infinito. Significação é um processo cognitivo, é uma dimensão do sujeito que lhe confere um modo de lidar com a infinitude do real, dado que a “relação com os valores” (Wertbeziehung) em Weber se coloca como o critério de seleção, como o “pressuposto valorativo” que orienta a seleção de traços do real. Nas palavras do autor, “basta lembrar que a expressão relação com valores refere-se unicamente à interpretação filosófica que precede à seleção e à constituição empírica” (WEBER, 2001b, p. 377). Sua importância para o problema é que “por certo sem as idéias culturais de valor do investigador, não existiria nenhum princípio de seleção [...]” (WEBER, 2001a, p. 132).

Há um reconhecimento do sujeito enquanto um intercruzamento de diversas camadas, portanto. De início, reconhecemos as atribuições epistêmicas e todo seu repertório no interior da lógica (como vimos em nossa intersecção com o Racionalismo Crítico). Como instância vizinha, temos a possibilidade de apreensão do concreto, e, em coexistência, a influência da subjetividade via suas faces, tais como a parcialidade, a valorização, a hierarquização e a significação, (Bedeutung). Esta segunda classe de elementos tem em comum o fato de reforçar a voz de expressão de um conjunto de filiações mundanas no qual o próprio sujeito se insere. Weber o exprime na questão da luta entre “pontos de vista” ou na metáfora da luta entre os “deuses e os demônios de cada um”, que tem em comum o caráter de serem irreconciliáveis. Sua ênfase recai nos valores, nos pontos de vista e nas perspectivas, todos eles sendo irreconciliáveis, porque cada qual parcial.

Isto significa a impossibilidade de afirmação do sujeito transcendental kantiano. Embora Weber não o caracterize nas minúcias, sua concepção de sujeito é histórica. A referência ao caráter irreconciliável dos valores revela isso. Valores são historicamente datados e indissociáveis de relações concretas no chão dos interesses. O intercruzamento dos valores com sua possível derivação a partir da constelação de interesses políticos e econômicos presentes no sujeito é sempre referida em seus escritos. Sobretudo nas conferências sobre a “Política como vocação” e a “Ciência como vocação”, que exaltam uma ênfase ética (de um isolacionismo neutro), por parte do intelectual, de separar sua atividade de cientista de sua atividade política e de suas convicções políticas, advindas de seus próprios interesses ou de sua inserção em círculos de interesse. Veremos isso posteriormente, em outro nível de colocação do problema, não enfocado no sujeito cognoscente. Aqui, nos limitamos a enfatizar que as idéias e os valores (os pontos de vista) podem ser associados a interesses concretos, pois, neste momento, isso não nos interessa enquanto questão de pesquisa. Nosso ponto consiste em observar a “dança de confronto” weberiana, em outras palavras, a colocação de um problema epistemológico fundamental, do qual veremos as principais implicações em outros níveis.

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Fonte:
LUCAS CID GIGANTE: “EPISTEMOLOGIA, CONSTRUÇÃO CONCEITUAL E COMPARAÇÃO HISTÓRIA EM WEBER”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/ARARAQUARA, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Sociologia. [Linha de pesquisa Cultura e Ideologia] [Orientador: José dos Reis Santos Filho] [Bolsa Capes]). Araraquara – SP, 2006.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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