O universo dramático de "Terras do Sem Fim"

O UNIVERSO DRAMÁTICO DE TERRAS DO SEM FIM

O grande enredo de Terras do Sem Fim é a disputa de terras pelos coronéis do cacau. Porém, a trama é organizada em subenredos que dão ritmo e dinamismo à narrativa. São histórias de amor, de perda, de dor. Resumidamente, pode-se afirmar que o núcleo ideológico do romance se resume nas palavras: terra, cacau, dinheiro e morte. A grande disputa que norteia a narrativa refere-se à posse da mata do Sequeiro Grande, cujo solo era fértil e possivelmente muito lucrativo. Logo, a terra representaria para o seu proprietário muito dinheiro e poder, isto é, o adjetivo fértil determinando o substantivo terra significava lucro imediato, privilégios e prestígio social.

Na disputa, enfrentam-se dois grandes coronéis da região: os Badarós e Horácio da Silveira. A família Badaró pertencia ao partido que governava o Estado e pretendia aumentar sua produção, entretanto tinha como grande empecilho uma pequena propriedade, que pertencia ao aliado de Horácio, Firmo. Essa propriedade justamente era a mata do Sequeiro Grande, de solo fértil. Em função da inimizade que Horácio nutria pelos Badarós, obviamente havia uma incitação para que a venda não se realizasse.

O primeiro capítulo da narrativa de Amado inicia com a inscrição Terra adubada com sangue, um subtítulo sugestivo, o qual antecipa a trama e o desfecho da narrativa. O romance Terras do Sem Fim está dividido em seis capítulos, “O Navio”, “A Mata”, “Gestação de Cidades”, “O Mar”, “A Luta”, “O Progresso” – e esses divididos em subcapítulos. A trama tem início com a saída de um navio do porto de Salvador para a cidade de Ilhéus. Nele partiram personagens que buscavam o mesmo destino de vencerem na vida por meio do cacau. Para isso seguiam o seu destino que era Tabocas, um município de Ilhéus.

É representativa a forma como a despedida no porto e posterior viagem são narrados. O tom que predomina é o melancólico, “a canção é triste como um presságio de desgraça. O vento que corre sobre o mar e arrasta consigo e a espalha em sons musicais que parecem não terminar”.(p.25) Ao partirem em busca do sucesso, os aventureiros tiveram que se desenraizar. Então, o tom do lamento refere-se também à despedida do espaço conhecido: “outras terras ficaram distantes, visões de outros mares e de outras praias ou de um agreste sertão batido pela seca […].”(p.26)

O capítulo que inicia a trama do romance, Navio, apresenta alguns personagens e anuncia dramas que serão aprofundados ao longo da narrativa, todos relacionados com o trabalho e o trabalhador. E, sobretudo, relata uma viagem carregada de emoção, pois levava a promessa do sucesso nas terras do cacau, bem como a incerteza da realização: “buscar o ouro que compra a felicidade. Esse ouro que nasce nas terras de Ilhéus, da árvore de cacau. Uma canção diz que jamais voltarão, que nessas terras a morte os espera atrás de cada árvore.”(p.26). Os personagens, que eram os passageiros do navio, assumiam papéis sociais diferenciados: enquanto uns eram coronéis (título que conferia uma autoridade similar a do padre e a do juiz nas terras do cacau), outros eram trabalhadores. Havia também os aventureiros e as mulheres que trabalhavam com a prostituição. Dentre os passageiros, estava o coronel Juca Badaró, dono da fazenda Sant’Anna, cuja localização assumiu grande importância para a narrativa amadiana, uma vez que motivou as disputas pelo poder. A meta da viagem do coronel era buscar os homens que haviam sido contratados para trabalhar em suas terras produtoras de cacau.

No capítulo A Luta, depois de muito sangue derramado, o poder trocou de mãos, ocorrendo a ascensão da oposição e a conseqüente queda da situação, representadas, respectivamente, por Horácio da Silveira e Sinhô Badaró. Ajudado pela intervenção do governo no estado da Bahia, Horácio venceu a disputa e tomou posse da tão disputada mata, tornando-se o proprietário das terras de Sequeiro Grande. Já o destino dos Badarós foi chorar a morte de Juca, morto em tocaia durante essa guerra.

Com o poder reorganizado e os ânimos acalmados, quando tudo se encaminhava para um período de tranqüilidade na terra do cacau, Horácio descobriu a traição de sua mulher – por intermédio da leitura de antigas cartas - com o seu advogado. Decidiu, com isso, fazer justiça, não fugindo do método tradicional do lugar para resolver pendências: tocaia. A morte do advogado configura-se como uma das passagens mais bonitas da narrativa, pois é representativa do desejo da liberdade que todos naquela terra nutriam. No delírio final do bacharel, homem e mulher aparecem juntos e livres para viverem com liberdade o amor que o cacau impediu que acontecesse. O narrador amadiano assim simboliza a libertação do casal:

Ester vai na garupa do seu cavalo, de onde veio ela? Virgílio solta a rédea, deixa que o cavalo corra. O vento corta seu rosto, Ester vai segura na sua cintura. Uma história de espantar. Irão para o fim do mundo, os pés livres do visgo de cacau mole que os prende ali. (p.298)

O Progresso é o capítulo que finaliza a trama na narrativa e a absolvição do coronel Horácio pela morte de Juca Badaró. A chegada de um bispo em Ilhéus aponta para algumas mudanças, na ordem social do lugar. Além disso, uma história passa a ser construída no imaginário de um menino.

A narrativa se desenvolve principalmente nas cidades de Tabocas, que fica no distrito de Ilhéus; de Ferradas, que é o núcleo político do coronel Horácio; e, finalmente, na cidade de Ilhéus, considerada o centro econômico e a própria capital baiana para os seus habitantes. A representação espacial nessa narrativa reproduz a divisão de classes sociais, fato esse já percebido no início do romance, no navio, que estava dividido igualmente em setores de acordo com a posição social dos passageiros. O navio tinha a primeira, a segunda e a terceira classes. A sociedade do cacau também assim se dividia, ou seja, os coronéis formavam a primeira classe; os juízes, advogados e delegados pertenciam à segunda; e os trabalhadores ficavam na última classe. Tal separação apresenta-se durante toda a narrativa.

Ao descrever o espaço físico destinado aos patrões e aos trabalhadores, o narrador aponta para um contraste que ratifica a superioridade de uma classe sobre a outra. Os coronéis moravam em casas espaçosas, confortáveis, semelhantes às casas-grandes da época da escravidão, reproduzindo seu poder, sua imponência e de sua família sobre o povo. No outro extremo, estavam os trabalhadores os quais habitavam casebres desprovidos do conforto mínimo, um espaço indigno para quem era a ferramenta indispensável para a obtenção do lucro para os patrões: “a casa não tinha mais que uma peça, as paredes de barro, o teto de zinco, o chão de terra. Ali era sala, quarto e cozinha, a latrina era o campo, as roças, a mata”(p.99). O espaço da casa-grande às vezes era ocupado também por trabalhadores. Entretanto, isso se justifica por uma situação de favorecimento, de apadrinhamento, enfim, uma generosidade que não objetiva a ajuda, mas, antes disso, a humilhação do trabalhador.

O romance de Jorge Amado apresenta características épicas. Lígia Militz da Costa entende que, devido à forma como a narrativa foi elaborada, em função da grandiosidade de suas ações, isto é, as lutas pelas terras do cacau, pode ser relacionada com a epopéia. A autora então analisa o romance de Amado a partir da estrutura da epópéia:

uma proposição em que se enuncia o tema (“terras, dinheiro, cacau e morte”- primeira parte): uma quase ‘invocação’ no endeusamento da mata, da natureza primitiva (segunda parte); a ‘narração’ que é a estória das lutas, e o ‘epílogo’ que é a parte final, fecho da ação, com a vitória do herói mais forte poderoso.

Diante de tal categorização, é difícil precisar a quem caberia a tipologia de heróis. De acordo com Militz da Costa, seria o coronel que venceu a disputa pela terra, tal como acontece no epílogo da epopéia, em que o herói chega triunfante. Horácio é o coronel que venceu a disputa e por isso seria o herói da epopéia amadiana. Todavia, acredita-se que são os trabalhadores mais pobres do lugar os que melhor encerram as qualidades superiores. Eles vivem toda a problemática que a prática do trabalho manual encerra, somada aos infortúnios de serem vítimas de uma sociedade injusta, o qual não lhes assegura uma existência digna.

Outra leitura possível refere-se à generalização da heroicidade na narrativa, ou seja, o estatuto de herói passaria a ser dividido entre todos os personagens, porque são os heróis do trabalho, os quais buscavam, por meio da cultura do cacau, altamente valorizada no meio internacional, realizar os grandes feitos da sobrevivência e do lucro. Apesar de ser possível antever a queda do valor do produto e a perda de poder dos coronéis para os exportadores, o narrador amadiano coloca esse sempre como o fruto do sucesso, uma vez que se faz a rima cacau, poder e dinheiro. Logo, nesse espaço do cacau, todos são perdedores.

Nesse romance, o trabalho, como força produtiva, está presente a partir de dois grupos de personagens: o dos patrões e o dos trabalhadores. Os patrões são os coronéis, que manipulavam pessoas e espaços, enfim, todos ao seu redor. Já aqueles que pelos coronéis são comandados formam o grupo dos trabalhadores. Eles se dividiam entre o trabalho nas lavouras de cacau; nas tocaias; na prostituição; nas casas dos coronéis e no trabalho autônomo. Nesse último grupo estão os médicos, advogados e integrantes da igreja. Na verdade eles se formam como um grupo em função do patrão que têm em comum. E todos, patrões e trabalhadores, nessa sociedade, estão à mercê do cacau.

Além da família Badaró e de Horácio, havia outro grupo de coronéis importantes para o desenrolar da narrativa, outros proprietários de Tabocas, que viam, na localização geográfica de suas terras, o fator determinante para se unirem na disputa pela terra. A aliança se formou entre os coronéis Horácio da Silveira, da Fazendo Bom Nome, localizada em um extremo do rio, e o coronel Maneca Dantas, da Fazenda dos Macacos, situada entre a propriedade dos Badarós e as de Horácio. Já o coronel Teodoro Martins, das Baraúnas, cuja fazenda estava localizada mais acima, perto das terras dos Badarós, inicialmente não tomou partido. Todavia acabou por apoiar os Badarós.

A impossibilidade da compra e o interesse econômico despertado pela posse da terra justificavam a conduta dos coronéis, isto é, diante da recusa de Firmo, sua morte começou a ser planejada. Sinhô – o patriarca da família - tentou encontrar outra forma para solucionar a questão, no entanto acabou se decidindo pelo método tradicional, ordenando a execução. Para realizá-la, escolheu o negro Damião, trabalhador da fazenda que executava esse tipo de serviço para a família. Percebe-se que nessa sociedade comandada pelos coronéis, eles, além de deterem os meios de produção, colocavam-se na condição de juízes e, investidos da autoridade que o cacau lhes proporcionava, decidiam a hora da morte de seus desafetos.

Em função da disputa pela terra que se estabeleceu, o capitão João Magalhães, o qual mentiu ser engenheiro, recebeu o convite de Juca Badaró para ajudá-lo a conquistar as terras de Sequeiro Grande. Ao longo da narrativa, o aventureiro primeiramente interessou-se pelos dotes financeiros de Don’Ana Badaró, a única filha de Sinhô, mas acabou apaixonando-se por ela. Assim como eles, alguns casais vão se formando, criando um universo paralelo às disputas, um universo de desejo erótico na narrativa de Amado. Dentre esses casais, a mulher de Horácio da Silveira, Ester, apaixona-se pelo Dr. Virgílio Cabral, porém a esposa do coronel morre, vítima de uma febre. Essa perda fragiliza a luta de Horácio durante algum tempo.

Dr. Virgílio Cabral foi o advogado enviado pelo partido para defender Horácio e ajudá-lo a tomar posse da terra em disputa. Para isso, utilizou-se de uma falsa medição de terras e subornou o escrivão Venâncio para que esse registrasse as matas de Sequeiro Grande em nome de Horácio. Com a descoberta da estratégia, o coronel Teodoro das Baraúnas mandou incendiar o cartório. Esse fato foi o estopim para a guerra que mobilizou as pessoas do lugar.

Ao término da narrativa, o povo do lugar demonstra certo assombro ao observar os cacaueiros e constatar a rapidez do crescimento das mudas que foram plantadas nas terras disputadas. Geralmente, um cacaueiro levaria em torno de cinco anos para atingir o ponto de colheita, contudo, daquela vez, quatro anos foram suficientes. A explicação logo é encontrada: “Nasciam frutos enormes, as árvores carregadas desde os troncos até os mais altos galhos, cocos de tamanho nunca visto antes, a melhor terra do mundo para o plantio do cacau, aquela terra adubada com sangue. (p.304)

Enfim, essas são as histórias que compõem o romance Terras do Sem Fim, considerada a melhor obra da primeira fase de Jorge Amado. História de personagens que se enfrentaram para obtenção da terra que lhes daria poder e dinheiro. Nas páginas de Amado, depreende-se um retrato do Brasil antigo e atual que é palco de interesses de uma elite imoral e indiferente aos anseios do povo, o que “configura um universo ‘semifeudal’ ou de um ‘feudalismo brasileiro’ em pleno século XX.”

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Fonte:
LISIANE PINTO DOS SANTOS: “RELAÇÕES DE TRABALHO EM TERRAS DO SEM FIM, GAIBÉUS E TERRA MORTA: UNIVERSOS QUE SE TOCAM”. (Tese apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Jane Fraga Tutikian). Porto Alegre , 2008.

Nota
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