Pessoa, um intelectual das sensações e criador de máscaras

PESSOA, UM INTELECTUAL DAS SENSAÇÕES E CRIADOR DE MÁSCARAS

Com os nossos estudos acerca da modernidade, foi possível perceber que Fernando Pessoa não se limitou a seguir uma determinada corrente artística ao longo de sua vida nem adotou para a sua literatura este ou aquele modelo literário. O poeta tinha, de fato, tendências vanguardistas, que inovaram e deram origem a uma nova literatura portuguesa.

Em especial no Livro do desassossego, Pessoa implementa elementos de estéticas que contribuíram para a sua formação artística, principalmente elementos vinculados ao Simbolismo/Decadentismo e a outras estéticas com que o poeta toma contato em sua trajetória artística.

A formação múltipla do poeta é a base de sua diversidade, que no Livro do Desassossego se faz notar no hibridismo do texto. Com efeito, é possível perceber, nessa obra, os passos do poeta na transição de uma escritura arraigada ao Simbolismo/Decadentismo, cujos elementos podemos ver na construção da figura de Vicente Guedes e em fragmentos vinculados à estética do sonho e do alheamento, para uma escritura mais condizente com o seu próprio momento histórico, bem representado pela configuração de Bernardo Soares e pelos seus fragmentos de tom intimista e pessimista. Esse tom também existe em Vicente Guedes, mas está relacionado com a sua atitude de recusa do real, baseada em sua postura de dandy, de “homem rico, ocioso, e que, mesmo cansado de tudo, não tem outra ocupação senão correr no encalço da felicidade; de homem criado no luxo” (BAUDELAIRE, 1941, p.45). Enquanto que em Bernardo Soares, esse mesmo tom deriva da não aceitação da realidade de sua dupla condição de poeta e empregado do comércio burguês, não podendo, portanto, entregar-se somente à arte de sonhar, como o fez Vicente Guedes.

É evidente que não há uma fronteira limítrofe entre essas estéticas, separando decisivamente os fragmentos característicos de Vicente Guedes e de Bernardo Soares. O que temos, de fato, nessa obra é o processo de assimilação de elementos de várias estéticas, para a construção de uma obra de arte moderna, caracterizada justamente pela multiplicidade de componentes estéticos.

Como já dissemos, Fernando Pessoa não se limita a uma só estética; é herdeiro daquela mesma diversidade que também caracterizou o poeta francês Charles Baudelaire. Assim como Baudelaire, Pessoa capta os diversos sentidos que traduzem a alma múltipla do homem moderno e atribui-lhes formas próprias na sua obra literária, tornando-a capaz de representar a ambigüidade desse indivíduo moderno.

Segundo Anna Balakian, em seu trabalho O simbolismo (1967, p.30),

[...] devemos reconhecer que a característica mais saliente em Baudelaire é a sua diversidade, sua real ausência de um traço saliente, a virtual reversibilidade e multiplicidade de caráter. (...) Naturalmente, é precisamente esta complexidade que torna Baudelaire uma personalidade interessante, um poeta sobre o qual a crítica pode escrever indefinidamente, porque as facetas são muitas e paradoxais.

É, sem dúvida, essa personalidade paradoxal que possibilitou tanto a Baudelaire quanto a Pessoa, cada um em seu tempo, construir uma obra de arte capaz de criar "correspondências” entre o abismo interior do homem e a desordem do mundo, entre a visão interior e a realidade exterior, entre o subjetivo e o objetivo. Ambos foram poetas do intelecto, preocupados com a inteligência e a capacidade de percepção do artista no seu intuito de representar os sentimentos humanos.

Conforme Anna Balakian (1967, p.35), “Baudelaire define claramente a prioridade que dava ao tipo de imaginação, que é uma evidência mais intelectual do que emocional da criação poética”:

Venho dizendo há muito tempo que o poeta é sumamente inteligente, que é a própria inteligência – e que a imaginação é a mais científica de todas as faculdades, porque só ela compreende a analogia universal ou o que a religião mística chama correspondência. (BAUDELAIRE apud BALAKIAN, 1967, p.35)

Georg Rudolf Lind também soube definir Fernando Pessoa como um poeta do intelecto, um “raciocinador nato e crítico lúcido” (1966, p. 9).

É, de fato, à imaginação e à capacidade de sentir intelectualmente que está ligado o pluralismo de Pessoa. Sua necessidade de sentir tudo de todas as maneiras é manifestada na construção da heteronímia, que satisfaz os princípios segundo os quais o poeta será tanto maior quanto mais impessoal, dramático e fingidor conseguir ser. Segundo o escritor (PESSOA apud COELHO, 1966, p.29),

A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem a vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas podem levar o espírito a esta culminância.

Assim, Pessoa consegue dotar a sua obra de características que, segundo ele, eram essenciais a um poeta moderno, como o fingimento de sentimentos, de emoções e de ações. Por isso, ele cria os seus heterônimos como seres capazes de representar não só as diversas faces do ser humano, mas, sobretudo, como criaturas permeáveis à multiplicidade que é, digamos assim, a grande marca das modernas sociedades do século XX.

Nada mais coerente, num autor que se compraz com o fingimento e com o culto do artifício, que criar máscaras que potencializam os conflitos de uma realidade que tanto incomoda o artista, mesmo que essas máscaras mintam ou neguem a realidade; a mentira e a negação do momento presente são uma forma de gritar à própria vida a necessidade de encontrar um centro, uma unidade no caos do mundo.

Há quem suponha – e Jacinto do Prado Coelho é quem suscita esta hipótese no texto “Fernando Pessoa, pensador múltiplo”, incluso no volume intitulado Páginas íntimas e de auto-interpretação (1966, p. 33) – que Fernando Pessoa teria inventado a heteronímia como modo de suprir a falta de grandes personalidades na época, em especial na literatura portuguesa. Isso pode ter sido, sem dúvida, um dos caminhos que o levaram à criação da heteronímia. Todavia, cremos que o grande estímulo à invenção dos heterônimos foi mesmo a tendência do poeta à despersonalização, à multiplicidade, e a sua ânsia de ser tudo de todas as maneiras, somadas à sua necessidade de criar uma poesia que respondesse à crise de identidade do indivíduo moderno – indivíduo inserido no contexto de um “tipo de civilização em que a emoção, a inteligência, a vontade participam da rapidez, da instabilidade e da violência das manifestações propriamente, diariamente típicas do estádio civilizacional (PESSOA, 1966, 31).

Sendo assim, o poeta passa a dar vida aos vários “eus” que se dispersam na sua alma, criando máscaras que representam as contradições do mundo moderno.

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Fonte:
BEATRIZ MOREIRA ANSELMO: “MÁSCARA E REPREESENTAÇÃO NO LIVRO DO DESASSOSSEGO”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História literária e crítica Orientador: Prof. Dra. Renata Soares Junqueira). Araraquara – SP, 2008.

Nota
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