A questão da raça no “tempo euclidiano”



A questão da raça no “tempo euclidiano

No fim do século XIX, o cruzamento das raças era uma questão fundamental para se pensar os destinos da nação. Nos anos de 1870 começa a penetrar com força no Brasil um “novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental” (SCHWARCZ, 1993, p.14). Essa pesquisadora argumenta que tal “moda cientificista” entra no “país por meio da literatura e não da ciência mais diretamente” (p.32) e cita livros como “A Carne” de Julio Ribeiro; “O Ateneu” de Raul Pompéia e “A Esfinge” de Afrânio Peixoto, que, sob seu ponto de vista, apresentam personagens condicionadas por máximas deterministas inspiradas nas teorizações de Charles Darwin e Herbert Spencer.

A acolhida no Brasil dessas teses deterministas, segundo as quais a raça e o clima determinavam e marcavam, indelevelmente, a vida dos sujeitos (suas potencialidades, fraquezas, bem como, seus próprios destinos), tornava a miscigenação um dos grandes temas no final do século XIX. Duas teses deterministas tinham força à época: uma era tida como “geográfica” e advogava “a tese de que o desenvolvimento cultural de uma nação seria totalmente condicionado pelo meio” – o clima e o solo (SCHWARCZ, 1993, p.58); a outra era vista como “racial”, sendo denominada como “darwinismo social” ou “teoria das raças”. Para essa última, a mistura das raças era vista como provocadora de uma degeneração progressiva. A pesquisadora Schwarcz (1993) argumenta que Euclides da Cunha recebeu influências dessas duas teses deterministas, as quais estariam articuladas em seus escritos. Trataremos, logo adiante, mais especificamente sobre isso. Considero ser importante destacar, agora, que se por um lado tais teses aproximavam as elites intelectuais e políticas brasileiras do mundo europeu, de outro, essas expunham, também, “as fragilidades e especificidades de um país já tão miscigenado” (SCHWARCZ, 1993, p.35).

Cabe destacar também que duas vertentes marcaram os modos de pensar-se sobre raça no século XIX. De um lado estava a visão monogenista que fora predominante até meados do século XIX. O homem, segundo essa versão, teria se originado de uma fonte comum havendo, apenas, um gradiente de separação entre seus tipos, sendo que esse ia do mais perfeito ao menos perfeito. Essa visão admitia, então, a possibilidade de desenvolvimento das raças, pois suas diferenças refletiriam, apenas, graus diversos da escala de perfeição. Cumpre apontar, também, que essa vertente monogenista recebeu influência da obra humanista de Rousseau (século XVIII), na qual era postulado que os homens nasciam iguais e se diferenciavam na cultura. Do outro lado, as teses poligenistas, predominantes ao final do século XIX, propunham a “existência de vários centros de criação, que corresponderiam, por sua vez, às diferenças raciais observadas” (SCHWARCZ, 1993, p.48).

Como argumentou Gustavo Le Bon (1910) – um dos principais pensadores das “teorias da raça” à época:

Sem dúvida a historia dos povos é determinada por fatores muito diversos; está cheia de casos particulares, de incidentes, que se deram e poderiam não se ter dado. Mas ao lado destes incidentes fortuitos, destas circunstancias acidentais, há grandes leis permanentes, que dirigem a marcha geral de cada civilização. As mais gerais, as mais irredutíveis destas leis permanentes provêem da constituição mental das raças (...) Cada raça possui uma constituição mental tão fixa como a sua constituição anatômica (p.10 e 15).

O continente americano, o chamado Novo Mundo, já havia sido palco de um controverso debate no século XVIII sobre sua inviabilidade (ou viabilidade), negatividade (ou positividade) e degeneração imanente (ou capacidade de progresso). O pesquisador Antonello Gerbi (1996) faz um minucioso estudo das controvérsias que colocaram de um lado Buffon, De Paw e Hegel, para os quais a América era naturalmente imatura, impotente, degenerada e inferior, e de outro Humboldt e Barton, para os quais tais teses não tinham sustentação alguma. Pelo contrário, estes últimos autores pretenderam marcar positivamente a vida e os seres do Novo Mundo. Acredito não ser necessário, por ora, alargar esse debate. Cito-o, aqui, de forma extremamente sucinta, para marcar que no século XIX ainda fervilhava um debate sobre o progresso ou a degeneração do Brasil. Naquele tempo, a questão da viabilidade ou não de um país marcado pela mistura de raças era central. Afinal, o Brasil estava fadado à degeneração provocada pela miscigenação (conforme apregoavam as teses darwinistas sociais) ou poderia avistar o progresso e a civilização no seu futuro próximo? Esse era um dos dilemas que perseguiram o viajante (Euclides da Cunha) pelas terras e águas amazônicas.

No “tempo euclidiano”, portanto, as explicações raciais deterministas – que classificavam os sujeitos em raças superiores e inferiores (fadadas à degeneração) – eram hegemônicas. O pesquisador Ricardo Ventura Santos (1998), em um instigante ensaio, argumenta que em Os Sertões Euclides da Cunha enfatizava que o meio físico brasileiro apresentaria uma grande variabilidade climática refletindo “populações com fisiologias diferenciadas” (p.241). O contraste climático entre o norte e o sul do Brasil era visto como determinante da composição racial dos indivíduos. Assim, no “norte o clima dificilmente permitia a aclimação de tipos superiores, como os europeus, daí porque ser o selvagem bronco. Já o clima do sul, (...) favoreceria a aclimação das raças superiores” (p.241). Nessa acepção, os paulistas foram produzidos como destemidos, aventurosos, dominadores e representados na figura dos bandeirantes que adentraram e conquistaram os sertões brasileiros.

A mestiçagem fora produzida como possuindo um efeito degenerativo nas raças. Porém, o sertanejo fora visto como retrógrado (à margem da civilização), mas não como um degenerado (como Euclides da Cunha via as populações do sul contaminadas pelo elemento negro). Este aspecto lembra a quase célebre frase de Os Sertões, já citada na Introdução desta tese: “é (o sertanejo) um retrógrado; não é um degenerado” (CUNHA, 1988, p.93). Na direção desse aparente paradoxo, como poderia ao mesmo tempo em que no Brasil havia um fervoroso sentimento de devoção pelo progresso e pela civilização a raça miscigenada sertaneja ter sido produzida como elemento racial único, robusto e forte, enfim, concebida como possuidora de atributos que poderiam levar a um desenvolvimento moral superior alcançando a plenitude da vida civilizada (SANTOS, 1998, p.243)? É sobre esse, aparente, paradoxo que me detenho a seguir.

Antes disso, quero esclarecer que não fiz um inventário muito detalhado dos discursos sobre raça no início do século XX, pois preferi ir marcando algumas “contextualizações” no decorrer da escritura do texto. Fazê-lo exaustivamente, agora, tiraria o foco central deste capítulo que é lançar um olhar sobre a articulação entre a Amazônia e a raça na obra de viagem à floresta de Euclides da Cunha. Não quero também dizer, aqui, de um modo simplista e linear que Euclides da Cunha compartilhava desse ou daquele entendimento que circulava sobre raça à época. Acredito ser essa uma impossibilidade. O que quero ressaltar é que havia várias questões em jogo no processo de produção da raça na literatura amazônica euclidiana. Espero conseguir mostrar, agora, um pouco da complexidade dessa história.

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Fonte:
LEANDRO BELINASO GUIMARÃES: “UM OLHAR NACIONAL SOBRE A AMAZÔNIA: APREENDENDO A FLORESTA EM TEXTOS DE EUCLIDES DA CUNHA”. (Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Castagna Wortmann). Porto Alegre, 2006.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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