Uma ontologia espinosana de ser humano na Medicina

UMA ONTOLOGIA ESPINOSANA DE SER HUMANO NA MEDICINA

Antes de entrar na discussão de uma ontologia específica, preciso definir, preliminarmente, qual o conceito de ontologia que adoto no presente estudo e, mais especificamente, o que entendo por ontologia espinosana.

Em sentido mais geral, a ontologia é entendida como a parte da filosofia que estuda o ser enquanto ser, ou coisas consideradas em si mesmas. (LALANDE, 1999, p. 767). Já na perspectiva de sua evolução histórica, esse conceito tem uma definição mais precisa, quando é discutido como uma das versões da metafísica. De acordo com o dicionário de filosofia de Abbagnano.

Uma ontologia assim entendida, nitidamente distinta da teologia, não implicava nenhum ontologismo, franco ou disfarçado, contra os dados da experiência. Ao contrário, essa ontologia começa a ser considerada como a exposição organizada ou sistemática dos caracteres fundamentais do ser que a experiência revela de modo refletido ou constante. (ABBAGNANO, 2003, p. 664).

Dessa afirmação depreendemos que a ontologia, como uma das concepções fundamentais da metafísica, rompe com a tradição teológica e afirma as condições do ser na medida em que é possível identificar suas propriedades gerais, como existência, duração, inerência, possibilidades. Partindo dessa compreensão de ontologia, poderíamos perguntar se existe uma ontologia espinosana específica ou, pelo menos, diferente de uma ontologia cartesiana. De minha parte, acredito que sim.

Para formular um conceito de ontologia especificamente espinosana, vou partir do conceito de inerência, uma das características fundamentais do ente, ou seja, do “ser enquanto ser”. Entenda-se por inerência aquilo que está intimamente ligado ao ser, que faz parte do ser e não pode ser separado dele sob pena de perder a condição de ser.

Na perspectiva de Espinosa, a inerência do ser somente pode ser compreendida na medida em que se conhece a natureza da causa do ser. Em Espinosa – conforme já explicado anteriormente – a causa está imanente no efeito, e o efeito não pode ser separado da causa; e, por sua vez, esse efeito é impulsionado pela causa que não é cessante. Em conseqüência, temos que a inerência do ser, na ontologia espinosana, é a Natureza Naturante como causa, imanente na Natureza Naturada em forma de efeito.

Já na ontologia cartesiana, esses conceitos são totalmente diferentes. Embora a inerência do ser também possa ser entendida pela sua causa, esta é transitiva: causa e efeito estão separados; a causa é cessante e o efeito passa a ter vida própria, o que é assim definido por Chauí: “Na causalidade transitiva, causa e efeito são duas realidades perfeitamente determinadas, isoláveis e isoladas, porque a causa se separa do efeito logo após produzi-lo”. (Chauí, 1999, notas bibliográficas, p. 10). De acordo com essa concepção filosófica, causa e efeito têm substâncias de natureza diferente. A causa tem sua substância ligada a um Deus transcendente, e o efeito dessa causa tem sua substância ligada às coisas da natureza, só que substância subtraída de qualquer transcendência. Em Descartes, esta é uma das razões de a causa estar separada do efeito e de ser cessante, pois causa e efeito têm substâncias diferentes e habitam mundos de natureza diferente. Enquanto a causa transcende a realidade objetiva do ser, o efeito, que é propriamente o ente cartesiano, é do mundo da experiência material.

Após apresentar, sucintamente, o conceito de ontologia espinosana e compará-lo com a ontologia cartesiana, passo a propor, em linhas muito gerais, uma concepção de ontologia espinosana de ser humano na medicina. Inicio pela posição espinosana sobre a questão entre alma e corpo e sua relação com a inerência. Como vimos anteriormente, em Espinosa a alma é a idéia do corpo: corpo e alma compõem uma unicidade no ser humano. Considerando, pois, que a alma é a idéia do corpo (o corpo humano propriamente dito e toda natureza como extensão), o ser humano possui uma inerência que é resultado da internalização de todas as suas circunstâncias. Tomando essa concepção como um princípio orientador, passo a discutir algumas características fundantes de uma ontologia espinosana de ser humano na medicina, sem ignorar o que a experiência concreta pode nos revelar.

O ente ou ser humano ao qual me refiro é, por um lado, o paciente, e, por outro, o médico. Entretanto, aqui vou privilegiar a discussão do ser que emerge do olho imanente do médico através de lentes espinosanas. Então, a partir de Espinosa, quem é esse ser que está na frente do médico? Em primeiro lugar, trata-se de um indivíduo, no sentido de ser indiviso. É alguém que se encontra ali por inteiro. Ele até pode ser constituído por partes, órgãos e sistemas, mas o médico não pode considerar alguma parte isoladamente sem considerar o indivíduo como um todo. Portanto, o indivíduo que está na frente do médico não é um ser isolado que pode ser separado das suas circunstâncias. Ele traz, inerente no seu ser, a sua condição de vida. Conseqüentemente, o indivíduo precisa ser visto pelo médico como um sujeito histórico; embora tenha uma vida singular como indivíduo, vive numa família, numa comunidade, numa sociedade.

Esse indivíduo tem uma história, vive numa relação de trabalho, vive num meio onde um conjunto enorme de fatores se torna imanente a ele. Dentre esses fatores, os mais importantes são aqueles citados no conceito de saúde definido na Oitava Conferência Nacional de Saúde. “Em sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e o acesso a serviços de saúde”. (BRASIL, 1986). Visto sob o ponto de vista de uma gnosiologia, esse indivíduo é repositório de um conhecimento não necessariamente revelado para ele, mas que pode ser objeto de investigação.

Nesse sentido, uma ontologia espinosana de ser humano na medicina também dialoga com a teoria do conhecimento marxista, na medida em que o médico, dentro dessa perspectiva teórica, precisa considerar a singularidade do paciente como uma “unidade do diverso”, o que se aproxima da tradição epistemológica clássica, da Crítica da Economia Política de Marx:

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação. (MARX, 1978, p. 117).

Nessa proposição de Marx – repito – é possível identificar uma aproximação epistemológica com Espinosa. Para este autor, a alma é a idéia do corpo, enquanto para Marx, o pensamento é a síntese do concreto. Nos dois casos, a construção do conhecimento está na relação do sujeito com a realidade, que é subjetivada como causa imanente no efeito. O pensamento, como efeito do concreto pensado por Marx, ou como idéia da alma, por Espinosa, cumpre função estruturante, ao mesmo tempo em que é estrutura em reconstrução permanente. Dessa maneira, tanto em Espinosa como em Marx, o olho está imanente no objeto; olho e objeto são concomitantemente causa e efeito em relação dialética, não tendo, portanto, a menor possibilidade de serem separados; pensamento e objeto estão intrinsecamente ligados da mesma maneira e pelas mesmas razões filosóficas do que alma e corpo são inseparáveis em Espinosa.

De acordo com o que apresentei acima, está claro que advogo a possibilidade da existência de uma ontologia espinosana de ser humano na medicina; não na medicina como um todo, mas uma parte da medicina que adota características específicas que, em seu conjunto, conformam o Sub-Campo Generalista.

Quando o médico atende um paciente, podem ocorrer vários níveis de intervenção: na Medicina Fragmentária, com suas especialidades focais – como já foi visto anteriormente – se interessa prioritariamente pelo foco da doença, isto é, por uma determinada parte ou órgão do paciente; ao lado dela, porém, existem outros modos de intervenção no trabalho médico, dentre os quais destaco a perspectiva da Medicina de Família e Comunidade no Brasil.

Essa Medicina Integral é resultante da evolução de um falso dilema entre a atenção às necessidades do indivíduo quando adoece e o trabalho de intervenção na comunidade, de caráter coletivo e preventivo. Sant’Ana afirma que “Pode parecer existir um abismo intransponível na prática de atenção primária entre o que se considera atenção individual e atenção coletiva. Mas nós, Médicos de Família, acreditamos que não”. (SANT’ANA, 2004). A partir dessa posição, podemos verificar que há um gradiente de abrangência que circula entre o individual e o coletivo. Há também uma pretensão de que todo esse espaço possa ser trabalhado, que não é necessário enfocar somente um lado da questão; ou, melhor do que isso, que o trabalho com o indivíduo tem inerente a potência do coletivo; que o trabalho de caráter coletivo não precisa subsumir o indivíduo.

De acordo com um dos meus entrevistados, trata-se de um falso dilema, pois os dois extremos da intervenção – no indivíduo e no coletivo – não podem e nunca deveriam ser separados, da mesma maneira que não deveriam ser separadas as ações curativas e preventivas.

Eu não consigo fazer uma separação entre o atendimento individual e o atendimento coletivo; é um falso dilema porque, na verdade, o que está colocado é que o adoecimento e o processo de cura não podem ser desvinculados do processo normal de vida, onde essas coisas não são separadas. (Entrevista nº. 12 com um médico).

Esse médico, com sua inerência profissional, ao transitar nesse gradiente entre o individual e o coletivo, bem como entre a prevenção da doença e sua cura, faz emergir o paciente como sujeito histórico da integralidade na medicina. Esse paciente é unidade das determinações sociais que ajudam a compor a inerência desse ente. Esse ente possui uma aparência e uma essência. A essência desse ente, pelo poder das lentes espinosanas do Olho Imanente, pode ser desvelada. Como esse ente é um ser humano, na perspectiva de uma ontologia espinosana, a possibilidade de capturar essa essência somente pode ocorrer numa relação entre seres humanos exercitando suas totalidades, no caso, como médico e paciente, inseridos num determinado modelo assistencial. A inerência ontológica desse ente se materializa no encontro: entre a especialidade de Medicina de Família e Comunidade, que, poderá vir a ser uma disciplina (área de conhecimento), com a área de atuação profissional que é a Atenção Primária em Saúde, como local quase exclusivo de atuação desses profissionais. Alguns aspectos dessa prática profissional – além dos já apresentados no item “Sub-Campo Generalista” deste estudo – estão presentes nos comentários postados por uma especialista da disciplina, integrante da lista de discussão da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade:

As práticas se embasam no paradigma da complexidade/integralidade, na prática médica centrada na pessoa, na inter-relação de fatores bio-psico-sociais no processo saúde-adoecimento, na neuroimunopsicologia, na clínica de qualidade, na busca de autonomia para o cidadão, sua família e a comunidade, na sua base familiar e comunitária desses processos, paradigma no cuidado. (Lista de discussão da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - sbmfc@grupos.com.br - mensagem postada em 01/02/2004).

Esse comentário não é um discurso meramente teórico ou abstrato, isto é, distante da realidade. Exemplo, disso é o seguinte caso clínico de uma paciente, apresentado na lista de discussão da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC):

Uma senhora de 45 anos, epiléptica (em uso de terapia combinada e em alta dose de anti-epilépticos; não faz acompanhamento médico por opção), deambula pela sua comunidade obnubilada, desorientada e eventualmente em surto psicótico. A sua família está desagregada (filhos saíram de casa e mudaram de cidade devido à agressividade do pai – este é alcoólatra). A Equipe já entrou em contato com os filhos e não obteve sucesso e/ou adesão ao tratamento de sua mãe. Problema em questão: Paciente não quer ter seguimento pela unidade, bem como o seu cuidador (marido) o qual se “responsabiliza pela paciente”. Entretanto paciente é levada por vizinhos seguidamente à Unidade Básica de Saúde, na maioria delas por Ataque Epiléptico ou Surto Psicótico, refletindo em quatro internações psiquiátricas nos últimos dois meses e duas fugas hospitalares. E aí, meus colegas da MFC? Quais são os nossos limites em observar uma paciente piorando, a qual não possui capacidade de discernimento, sendo cuidada por um alcoólatra? Peço a gentileza dos colegas nesse problema que envolve múltiplas abordagens. Grato. (Lista de discussão sbmfc@grupos.com.br, mensagem postada em 29/06/2005).

No caso relatado, podemos entrever muitos problemas: revela um tipo de complexidade para a qual a tecnologia médica tradicional tem poucas respostas; mostra a necessidade de o médico saber trabalhar em equipe e articular ajuda em outros níveis do sistema de saúde e em outros setores da sociedade, tais como Serviços Sociais, Ministério Público. Fica bem claro que o problema da paciente não é somente dela, pois têm uma necessária relação com a família, vizinhança, comunidade e a sociedade como um todo. Trata-se de um tipo de complexidade em que o ente precisa ser pensado muito além do nível biológico, envolvendo habilidade de uma clínica ampliada, que engloba conhecimentos, da medicina, psicologia, ciências sociais, e conhecimentos econômicos, ambientais, culturais, religiosos entre outros. O caso apresentado também derruba a onipotência médica, revelando que a resposta da medicina pode ser organizada em qualquer ponto do processo saúde-doença, mesmo que os resultados sejam limitados.

O ser humano precisa de ajuda, mesmo quando essa ajuda tem um caráter predominantemente humanitário. É nesse ponto que se revela outra ontologia de ser humano no trabalho do médico, uma ética médica impregnada pela vontade e necessidade de ajudar, de cuidar do outro, mesmo em circunstância desalentadora. É isso que move o médico a buscar forças e a não desistir, a investir em “casos” em que a idéia de um ser humano autônomo considerado na sua totalidade parece estar muito distante e em que a perspectiva de resultados positivos é pouco promissora.

Ponto de vista idêntico ao apresentado acima também transparece em trecho da resposta de um colega na discussão do caso em pauta: “Tivemos um caso semelhante com um desfecho muito ruim, e o que eu poderia sugerir não é baseado no sucesso, mas não deixa de ser uma tentativa”. (Lista de discussão sbmfc@grupos.com.br, mensagem postada no dia 29/06/2005). Quando o mediador fundamental do trabalho médico é um princípio de humanidade, onde o outro, independente da sua condição, é sempre legítimo e o foco principal da atenção, estão criadas as condições éticas para o desenvolvimento de relações humanas que podem promover o ser humano em sua totalidade, condição esta válida para pacientes e médicos.

Em síntese, uma ontologia espinosana de ser humano na medicina acontece quando o olho de fora transita e se transforma no olho de dentro, fazendo a costura das partes de todo gradiente de vida na busca da totalidade108. Nesse ponto, é interessante trazer para a discussão a ontologia cartesiana, que visualiza somente a hipertransparência orgânica, no quadro de Uriart, que se encontra na página X. Pelo Olho Imanente com suas lentes espinosanas a pintura adquire substancialidade, textura e dramaticidade vital. Num primeiro plano, podemos ver o olho kepleriano de Vermeer, que procura a vida nos detalhes das cores vivas do glóbulo passando pelo capilar, produzindo um contraste vibrante entre o azul e o vermelho. Cada minúcia de cor e relevo mostra, com riqueza, a estrutura recôndita de uma minúscula parte do corpo humano. Já o olho kepleriano de Rembrandt convida a sair da superfície para penetrar, pelas ondas da textura, na profundidade do tecido, rompendo a barreira do estritamente biológico para entrar em sintonia com o orgânico, como vida imanente espinosana. A hemácia dentro do capilar, como foco central do quadro, como a íris do olho, como túnel da profundidade dramática da vida, sofre uma dupla ruptura epistemológica e se transforma, de um lado, em janela da alma e, de outro, em janela do mundo, permitindo que toda estrutura subjacente, com sua imanência, se revele como Natureza Naturante, transformando-se de causa em efeito para ser Natureza Naturada. E, dessa maneira, estão criadas as condições para o Olho epistêmico, restabelecer as conexões de todas as partes, mesmo as mais minúsculas, para formar uma totalidade, que se constitui na relação dinâmica e equilibrada entre o tempo, como duração e o espaço, como conjuntura viva e contraditória.

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Fonte:
Odalci José Pustai: “ORDEM” DE-VIDA PARA O MÉDICO PENSAR O PACIENTE: UMA ONTOLOGIA ESPINOSANA DE SER HUMANO NA MEDICINA”. (Tese apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação sob orientação da Professora Doutora Carmen Lucia Bezerra Machado, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2006.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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