As anotações sobre Franz Kafka

"ANOTAÇÕES SOBRE KAFKA"

– Quem é você? – perguntou K.
Com menosprezo – não estava claro se o desdém cabia a K. ou às suas próprias palavras – ela disse:
– Uma moça do castelo.
Tudo isso tinha durado só um instante, à direita e à esquerda de K. já se postavam os dois homens; ele foi puxado para a porta em silêncio mas com toda a força, como se não existisse outro meio de entendimento. Alguma coisa nisso alegrou ao velho e ele bateu palmas. Também a lavadeira riu entre as crianças que de repente começaram a fazer barulho como loucas. Kafka, O Castelo

A obra de Kafka se encerra num enigma, diz Adorno, e esse enigma requer, desesperadamente, interpretação. Adorno se coloca diante do enigma e destaca vários elementos da obra de Kafka para retirar dela uma interpretação que deve ser diferente do que se entende tradicionalmente como tal. Sua análise funciona como a lupa de um detetive que, aos poucos, com perspicácia e vontade, segue as pistas deixadas pelo escritor: o seu falso simbolismo, a sua desesperada literalidade, sua gestualidade, a descrição da hierarquia social, a obsessão pelo tribunal e pela lei, a proximidade com o Terceiro Reich, seu hermetismo, a teologia etc.

Kafka se expressa repudiando a expressão reificada, a qual já não permite experiência, e por conseqüência, resistência à vida danificada. A expressão por parábola obriga uma proximidade entre o leitor e as figuras do romance, mas a agressividade aí em jogo impede a identificação do leitor com tais figuras. É necessária outra experiência estética para ler Kafka, daí sua expressão possuir um potencial de resistência ao fetichismo: Kafka move a expressão como um impulso que rompe a alienação e arranca o leitor de seu costumeiro conforto.

Para entender a relação entre a expressão em Kafka e a nova experiência que sua arte pede, vale apontar que Benjamin, para quem a questão da experiência é um tema central, mostra que a pobreza de experiências que os artistas do final do século XIX e início do século XX se depararam diz respeito a mudanças na própria percepção coletiva e individual, de forma que a experiência do sofrimento não pode ser comunicável em seu sentido tradicional. O conceito de experiência em Benjamin é Erfahrung, explica Gagnebin, o que expressa algo que se desenvolve no tempo e liga várias gerações, em oposição ao tempo do trabalho no capitalismo, deslocado e entrecortado, ou seja, trata-se da tradição que pode ser mantida para a formação dos indivíduos de uma coletividade. Tal palavra vem do radical fahr, “usado ainda no antigo alemão no seu sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante uma viagem.”

Mas Benjamin, ao analisar a sociedade burguesa do fim do século XIX, fala de um novo conceito de experiência, em oposição a Erfahrung: trata-se da vivência, Erlebnis, e que consiste em eventos assistidos pela consciência do indivíduo isolado, mas que não deixam vestígios, ou seja, que não enriquecem o eu. Assim, se a experiência do sofrimento precisa ser narrada, isso não pode ocorrer em seu sentido tradicional, é preciso haver mudanças na produção e na recepção da arte para que isso se torne possível. Benjamin diz que “algumas das melhores cabeças” se ajustam à pobreza de experiências: “Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século.” Kafka, por exemplo, narra, apesar de todas as dificuldades desse ato, pois ele consegue pôr em palavras, primeiramente, como esse mundo é. Ele faz parte daqueles que necessitam de “poucos meios” para dizer algo novo:

A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seu sedifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo.

O ensaio de Adorno aponta alguns elementos dessa expressão kafkiana, e num determinado momento a psicanálise é chamada para integrar a análise, para dizer acerca de determinados aspectos, até mesmo em relação à nova expressão em suas bases pulsionais. Ela traz luz ao enigma de Kafka – surgindo porque o objeto da análise a pede e clarifica somente o aspecto que cabe a ela clarificar – e seu eco é sentido até o final da análise. Com isso, Adorno mostra a importância e os limites da psicanálise para a interpretação de Kafka e da própria arte. Como a psicanálise é inserida, em que momentos e quais são os aspectos da obra que ela focaliza são as questões que cabe aqui perseguir.

Como já dito, Kafka se exprime pelo repúdio à expressão. Malgrado este fato, sua obra não ficou imune à indústria cultural, pois diz Adorno que Kafka foi tornado popular devido a várias interpretações de sua obra, mas que tais interpretações não fazem justiça a ela. Kafka teria sido rebaixado “a escritório de informações sobre a condição eterna ou atual do homem, removendo com desenvolta familiaridade justamente o escândalo pretendido pela obra.” Ao acrescentar mais uma opinião, corre-se o risco de alimentar a falsa fama de seu trabalho, mas a obra de Kafka não pode ser reduzida às interpretações que dela fazem os existencialistas, por exemplo. Dizer que a vida do homem “é obscura” e que “está contida no nada”, ou ainda que transmitir qualquer idéia de resignação é muito pouco diante daquilo que ela tem a expressar. Com isso, evidencia-se como é difícil a arte resistir como tal, pois mesmo os procedimentos de Kafka, que promovem uma proximidade até mesmo agressiva com o leitor, não a protegeram contra a tendência de integrá-la ao status quo. Essas tentativas de interpretação insistem em se justificar procurando em Kafka um simbolismo realista, diante do qual Adorno se coloca contrário, pois em Kafka não se pode falar em símbolo: cada frase é literal, e cada frase significa. Os símbolos exigiriam que esses dois aspectos se misturassem, mas em Kafka eles se distanciam e nesse distanciamento surge um ofuscante raio da fascinação.

Adorno se remete a Benjamin quando este definiu a obra de Kafka como parábola, já que ela não se exprime pela expressão, mas pelo repúdio a ela: “cada frase provoca a reação “é assim”, e então a pergunta: de onde eu conheço isso? O déjà vu é declarado em permanência.”

As parábolas de Kafka são herméticas: lembram algo familiar, o já visto, e, então, exigem interpretação, mas elas não aceitam nenhuma. Aliás, pode-se dizer que as parábolas ajudam a compor o seu princípio hermético, bastante discutido por Adorno e Benjamin. Daí porque a literalidade se encontra afastada do significado: a interpretação não é tolerada. Com isso a distância estética entre a obra e o leitor é diminuída, este último se choca com o narrado, tamanha é a excitação de seus sentimentos provocada pelo ofuscante raio da fascinação. Esse encurtamento da distância estética impede a habitual identificação do leitor com os personagens – como ocorre nos romances comerciais da indústria cultural, nos quais a vida do personagem em nada difere do cidadão “médio”, exceto por alguns detalhes – e nisso Kafka se aproxima dos surrealistas. Nas parábolas animais de Kafka, por exemplo, esse encurtamento da distância estética obriga o leitor a se identificar com o personagem, mas numa situação absurda, o que provoca um choque: ele passa a se sentir como inseto. O leitor que insistir na interpretação “deve arriscar sua cabeça, ou então tentar derrubar a parede com a própria cabeça.” Ele estará preso até encontrar a correta interpretação. Esse aspecto de Kafka, seu princípio hermético, faz de sua obra uma literatura emancipatória, pois vai contra a consciência alienada que já não pode perceber claramente o horror em curso. Adorno destaca o repúdio à forma de expressão fetichizada, na qual o leitor se identifica com o herói e segue pela narração fixado a ele, numa experiência empobrecida. Kafka exige, com uma expressão que anula a si própria, uma nova postura do leitor.

O princípio hermético em Kafka possui uma dupla função: é o meio pelo qual sua obra denuncia a reificação, expressando-a pela forma da arte, e também uma maneira de resistir a ela. Em cada linha de sua obra ele traz as relações arruinadas entre os homens, expondo as subjetividades vazias, e ainda se configura de forma a resistir ao fetichismo que avança sobre as artes, já que impede a apropriação da obra pelo leitor. A este é vedado o prazer filistino de possuir a literatura de Kafka. O princípio hermético cria um mundo fechado: o leitor aceita a totalidade criada pelo artista ou está excluído deste mundo, pois não lhe é permitido o momento parcial da obra, como acontece com a arte fetichizada que perde sua dignidade em sua fragmentação. Tal princípio se configura como resistência porque se choca com o esquematismo que a indústria cultural intenta impor ao indivíduo. Conforme aponta Duarte, a arte autônoma contrasta com o processo de fabricação da arte de massa porque não é dominada pelos imperativos do lucro e da geração de conformidade ao status quo, ao contrário, vai contra tais imperativos.

Nesse sentido, Kafka também se aproxima dos surrealistas em outro aspecto importante: o uso sistemático do choque para romper a barreira com o leitor e ir ao seu encontro. Aliás, no surrealismo, Adorno indica uma afinidade com a psicanálise, que consiste “na tentativa de trazer à tona, por meio de explosões, as experiências infantis.” Já em Kafka sua técnica de produzir choques implica impedir uma relação contemplativa entre leitor e obra, fazendo até mesmo com que o leitor tema “que o narrado venha em sua direção, assim como as locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional do cinema mais recente.”

A questão do uso sistemático do choque na arte foi explorada também por Benjamin, em seu estudo sobre Baudelaire, sendo a psicanálise importante para se pensar tal uso. É interessante, nesse estudo, que um tema da psicanálise que Freud talvez nunca imaginou que se tornaria relevante na esfera estética, passa a ganhar relevância nesse âmbito com a análise de Benjamin. A teoria freudiana do escudo protetor de estímulos, apresentada no quarto capítulo de “Além do princípio do prazer” (1920), muito bem lembrada por Benjamin ao analisar Baudelaire (“Alguns temas em Baudelaire”), embora de uma forma um tanto imprecisa, conforme apontou Rouanet (Édipo e o anjo), ilumina a resistência de uma arte como a de Kafka contra a reificação. Naquela obra, Freud expõe sobre a consciência como protetora do aparelho psíquico contra os choques. Para Freud, “a consciência surge em vez de um traço de memória”, o que permitiria uma distinção entre experiência e vivência. Kafka, ao promover o choque, atinge estratos profundos da memória, pois os estímulos escapam ao filtro da consciência reificada. O passado e, conseqüentemente, sua vida, é novamente trazido à luz, e o que foi perdido como simples prolongamento da forma mercadoria possui chance de ser novamente ligado à vida do indivíduo, às suas experiências, ao presente.

Afastada a possibilidade de uma simbologia na obra de Kafka, Adorno irá tratar da sua gritante literalidade: “a autoridade de Kafka é a dos textos. Somente a fidelidade à letra pode ajudar, e não a compreensão orientada.”

Nem mesmo Kafka teria entendido o quanto suas palavras e metáforas ganhavam vida própria, pois ele mesmo chegou a falar contra sua literalidade. Este é um bom elemento para refletir acerta da autoria como sendo apenas um momento da obra, e não sua totalidade: o autor não é o seu dono e seu conhecedor absoluto. A partir do surgimento da obra, sua interpretação é apenas mais uma interpretação possível, nem sempre a mais correta: “o artista não é obrigado a entender a sua obra, e há razões suficientes para se duvidar que Kafka tenha entendido a sua.” Percebe-se, aqui, a recorrente preocupação de Adorno em colocar o artista defronte sua obra e rigorosamente diferenciá-los, como fez também com Schoenberg.

Assim, os escritos teóricos de Kafka também não importam para o entendimento de sua obra. Tomar a filosofia do autor como o teor metafísico daquilo que ele elaborou seria para Adorno um erro, pois ela se esgotaria em algo datado, necessariamente reduzido e que não se desdobraria no tempo. Por isso, o princípio da literalidade impede a intrusão de elementos externos para a interpretação adequada, vislumbrando, assim, o verdadeiro valor de suas palavras e metáforas. Seria este princípio, lembra Adorno, algo da tradição judaica relacionado à exegese da Torá.

A literalidade dá lugar ao estranho e ao ambíguo, arrancado de si qualquer elemento onírico. Adorno lembra que Kafka retirou de O processo uma passagem de um sonho, sendo esta colocada em Um médico rural. Em contraste com o sonho, todo o romance é então confirmado como real, e o que há de estranho precisa ser tomado literalmente, e não como se fosse um sonho. Mas os sonhos que foram preservados em O castelo e América são às vezes também tomados literalmente, o que faz com que o próprio sonho seja eliminado. Mas não é o estranho, ou mesmo o monstruoso, que assusta quando tomado como realidade, mas sim a naturalidade de tais ocorrências. Para exemplificar esse aspecto, Adorno lembra a passagem de O castelo em que o agrimensor expulsa seus auxiliares do seu quarto e eles retornam pela janela, sendo esse estranho episódio tomado como natural, um fato que é apenas comunicado: “o leitor deveria se relacionar com Kafka da mesma forma como Kafka se relaciona com o sonho, ou seja, deveria se fixar nos pontos cegos e nos detalhes incomensuráveis e intransparentes.” Aqui já há um elemento que faz pensar acerca da relação da arte de Kafka com a ciência que descreveu o processo de formação onírica. Kafka teria percebido, talvez de forma distinta de Freud, que é difícil um sonho se mostrar mais confuso que a realidade descrita por sua arte. Mas se Kafka construísse sonhos tão confusos, depois das descrições freudianas eles não mais provocariam a crítica em relação ao que os gerou, pois a ciência autorizada a falar dos sonhos não conduz radicalmente a essa crítica. Por outro lado, o sonho belo está tão distante da realidade que se poderia duvidar dos mecanismos de sua formação. Adorno fez uma bela consideração sobre isso em um aforismo das Minima moralia:

Quando despertamos no meio de um sonho, mesmo que seja dos piores, ficamos decepcionados e temos a impressão de termos sido enganados quanto ao melhor. Mas, sonhos felizes, bem-sucedidos, a rigor há tão poucos quanto, nas palavras de Schubert, música alegre. Mesmo o sonho mais belo encerra como uma mácula sua diferença da realidade, a consciência da mera aparência daquilo que ele proporciona. Daí serem precisamente os mais belos sonhos como que mutilados. Essa experiência está fixada de um modo insuperável na descrição do teatro natural de Oklahoma na América de Kafka.

Os dedos de Leni, personagem de O processo, os quais estão ligados por uma membrana, ou a aparência de tenores dos executores de K. no mesmo romance, são elementos que também devem ser detidamente observados, pois trazem riqueza muito maior do que digressões sobre as leis. E não é apenas a literalidade contida na linguagem que oferece riqueza expressiva, mas também o modo de representação: os gestos em Kafka são de grande importância: eles “servem muitas vezes como contraponto para as palavras: o pré-linguístico, que escapa a toda intencionalidade, serve à ambigüidade, que como uma doença devora todos os significados.”

É preciso se deter nas experiências que estes gestos ocultam: “às vezes, as experiências sedimentadas nos gestos seguirão a interpretação que deveria reconhecer na sua mímese um universal reprimido pela consciência humana.” São nos gestos, nas cenas montadas por Kafka em sua literalidade que deve se deter o trabalho do leitor, um trabalho novo nunca antes solicitado. Somente assim o enigma de Kafka seria decifrado.

Rejeitada uma rasa interpretação aos moldes da indústria cultural de qualquer simbologia nos escritos de Kafka e ressaltada a importância de sua literalidade, dos gestos e das cenas é preciso então iniciar uma outra forma de interpretação. Todavia, Adorno já antevê uma possível objeção a esta sugestão de via interpretativa, uma objeção que apontaria as experiências contidas nos gestos e cenas como meras projeções ocasionais e psicológicas do artista. Seus escritos seriam uma espécie de racionalização da própria doença. É aí que Adorno coloca em cena a psicanálise: “essa objeção só pode ser refutada pela reflexão sobre a relação entre a obra de Kafka e a psicologia.”

Não se poderia afirmar que toda a obra de Kafka poderia ser interpretada psicanaliticamente, pois essa interpretação, diz Adorno, pediria outras ad infinitum. Mas também não se pode afirmar que Kafka não tem nada a ver com Freud. Nessa afirmação já se percebe o cuidado de Adorno para colocar Freud ao lado de Kafka, pois se há algo em comum entre eles – e então a psicanálise pode auxiliar a decifrar o enigma de Kafka – a dose excessiva de tal aproximação levaria à falsa leitura da arte literária.

A obra de Freud lembrada por Adorno para compará-lo a Kafka é “Totem e Tabu”, de 1913, uma das obras fundamentais da psicanálise, já que nela Freud busca fundamentar com indícios antropológicos o que seria o núcleo da neurose e o elemento fundador da civilização: o complexo de Édipo. A concepção de hierarquia é a primeira submetida à comparação e uma passagem de “Totem e Tabu” é citada e comparada a uma passagem de O processo e outras de O castelo.

Freud mostrou, em “Totem e Tabu”, como a relação entre pessoas de diferentes níveis hierárquicos é pautada por ambivalência de emoções. Um rei desperta inveja por sua posição privilegiada, resultando disso uma forte hostilidade, embora inconsciente. Esta é mantida sob repressão graças à “intensificação excessiva da afeição, que se expressa em solicitude e se torna compulsiva.” Porém, no fragmento de Freud que Adorno destaca, o psicanalista explica que quando a distância hierárquica é menor, o temor do poder oculto (mana) também o é. Faz-se conveniente aqui reproduzir o fragmento de Freud destacado por Adorno, já que ele conduz diretamente ao mundo dos cartórios decadentes de Kafka:

O tabu de um rei é forte demais para um dos seus súditos porque a diferença social entre eles é muito grande. Mas um ministro poderá servir, sem qualquer dano, de intermediário entre eles. Se traduzirmos isto da linguagem do tabu para a da psicologia normal, significa algo mais ou menos assim: um súdito, que teme a grande tentação que lhe é apresentada pelo contato com o rei, pode talvez suportar tratar com um alto funcionário do qual não precisa ter tanta inveja e cuja posição poderá até mesmo lhe parecer acessível. Um ministro pode atenuar sua inveja do rei pela reflexão sobre o poder que ele próprio exerce. Assim acontece que diferenças menores entre as quantidades da tentadora força mágica possuída por duas pessoas devem ser menos temidas do que as maiores.

A semelhança com Kafka é sentida quando se pensa nas intrincadas redes de funcionários dos cartórios nas quais Josef K. precisa penetrar para cuidar de seu processo, personagens que muitas vezes perfazem o papel de um ministro intermediário que teoricamente pode influenciar uma decisão superior. Ou mesmo diante da lei o poder do mana se faz sentir em suas várias gradações, tal como em Freud:

Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro se posta ao lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. Eu sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro.”

Em seguida, Adorno mostra que a expressão usada por Freud, délire de toucher (angústia de contato), descreve com exatidão o encanto sexual que une os homens em Kafka, sobretudo os inferiores e os superiores. Em Freud, o desejo de contato que se manifesta na infância – geralmente direcionado aos órgãos sexuais e logo reprimido pelos pais – não encontra pronta resolução psíquica devido à frágil constituição psíquica da criança. O desejo é reprimido e banido para o inconsciente, mas nunca abolido. Forma-se uma situação de difícil equilíbrio num constante conflito entre proibição e pulsão. A atitude do sujeito para com o objeto é de ambivalência, pois o gozo supremo seria o tocar, realizando o ato, mas ao mesmo tempo ele o detesta porque entra em choque com suas aspirações pessoais e valores morais. A proibição é consciente e o desejo inconsciente, daí a manutenção da ambivalência. Entre os personagens de Kafka, as relações de ambivalência suscitam e bloqueiam ao mesmo tempo a aproximação, gerando o encanto sexual descrito por Adorno, o que os mantêm unidos.

O complexo que descreve a ambivalência de emoções pela figura paterna, a tentação do assassinato, é também aludido por Kafka:

Na conclusão do capítulo de O castelo no qual a dona da pensão explica ao agrimensor que é absolutamente impossível falar com o senhor Klamm em pessoa, este fica com a última palavra: “‘O que então a senhora teme? A senhora não tem medo de Klamm, não é?’ A dona da pensão acompanhou com os olhos, em silêncio, enquanto ele descia a escada e os auxiliares o seguiam”.

É digno de nota que Adorno e Benjamin, que em suas análise apontaram para a questão da hierarquia, do conflito com as autoridades, e a tensa relação com o pai (O veredito), não fizeram referência a uma obra de Kafka: a Carta ao pai, que se relaciona diretamente com muitos dos temas tratados por eles e que ilumina ainda mais esse conjunto de coisas. Esta carta, endereçada à única pessoa a quem Kafka não a entregou para ler, infelizmente foi publicada somente em 1957, juntamente com os escritos póstumos, ou seja, após a elaboração dos trabalhos de Adorno e Benjamin, conforme aponta Gagnebin.

Trabalhos de Freud como “Totem e Tabu”, “Moisés e o Monoteísmo” e “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” são escritos, segundo Adorno, que carregam a mesma literalidade impressa nas obras de Kafka, pois em Freud:

(…) cenas arquetípicas como a do assassinato do pai pela horda primordial, a narração ancestral de Moisés ou mesmo a observação pelas crianças da relação sexual dos pais não são entendidas como sínteses da fantasia, mas como eventos reais. Nessas excentricidades, Kafka segue Freud até o absurdo.

Com isso, Adorno destaca que também a psicanálise pede uma interpretação adequada, uma fidelidade à letra e um cuidado com o verdadeiro valor das palavras. Seus conceitos possuem uma importante especificidade que não são redutíveis a interpretações apressadas. Adorno vai a outro extremo da análise nessa formulação, pois ele evidencia o impulso mimético que existe na própria obra científica de Freud, por meio da semelhança de algumas de suas formulações com algumas formulações de Kafka, embora este vá além de Freud, até o absurdo. Sabe-se que Freud apreciava muito a literatura, inclusive chegando a ganhar um prêmio literário com seu trabalho “Totem e tabu”, o que, aliás, em nada lhe agradou, conforme informa o editor inglês de sua obra. Consta ainda que certa vez, em carta endereçada ao poeta e dramaturgo vienense Arthur Schnitzler, referiu-se a ele como sendo o seu duplo.

Outro ponto abordado por Adorno é que se Kafka procura se afastar da psicologia, a psicanálise também o faz, na medida em que descreve o indivíduo a partir de seus impulsos amorfos e difusos: o Ego a partir do Id. Ela se faz distinta do especificamente psicológico. A personalidade, lembra Adorno, na psicanálise se transforma de entidade substancial em mero princípio organizatório de impulsos somáticos. A psicanálise não se detém na subjetividade do indivíduo, como faz a psicologia, mas vai além, procurando no que há de mais primitivo e essencial, as bases para a formação da subjetividade. Também Kafka não se detém na fachada e alcança as profundezas, o estado bruto: “(…) o mero ente que emerge na esfera subjetiva através do colapso total de uma consciência alienada, que renuncia a qualquer auto-afirmação.”

As matérias-primas para os escritos de Freud e Kafka se encontram no que é negado pela realidade: “os estigmas com que a sociedade marca o indivíduo são interpretados como indícios da inverdade social, são lidos como o negativo da verdade. A força de Kafka é a da demolição.”

Freud e Kafka se especializaram em destruir a “fachada acolhedora” do homem, cada vez mais sujeita ao controle racional. Uma mostra disso é o déjà vu a que são levados os leitores de Kafka por sua obra: o permanente déjà vu, que é o déjà vu de todos. Daí se deriva o sucesso de Kafka, diz Adorno, o sucesso questionado por ele no início de suas “Anotações sobre Kafka”: a falsa fama, uma popularidade que se transforma em traição, justamente porque destila o universal, poupando-se o esforço da reclusão mortal. Mas por que o déjà vu leva Kafka a conhecer a fama?

Para Adorno, o objeto oculto da arte de Kafka talvez seja o domínio técnico do déjà vu. Mas a importância do déjà vu nesse artista apenas é compreendida com ajuda da psicanálise. Freud, auxiliado pelos trabalhos de Ferenczi e de Grasset, compreende que a origem do fenômeno do déjà vu – ou o inexplicável sentimento de familiaridade diante de uma determinada experiência – deve ser buscada nas fantasias inconscientes. Frente a um acontecimento semelhante ao que causara anteriormente uma repressão, a lembrança reprimida é novamente revivida, mas ela é incapaz de acessar a consciência, devido à censura: “Conseqüentemente, a analogia entre os dois casos não podia tornar-se consciente e sua percepção foi substituída pelo fenômeno de ‘ter passado por aquilo tudo antes’, com a identidade sendo deslocada do elemento realmente comum para a localidade.”

Kafka, assim como Freud, fala de um mundo no qual o desejo sofre inúmeras censuras, mas os escritos de Kafka insistem sempre em instigar aquilo que jaz oculto no homem. Daí o porquê do déjà vu ser declarado em permanência, o que ajuda a pensar também no permanente sentimento de que Kafka expõe o “é assim”, pedindo interpretação, mas recusando-a, porque suas narrativas vão habitar até mesmo onde a razão interpretativa não pode chegar, nas lembranças que foram esquecidas para que o indivíduo melhor pudesse se adaptar ao mundo que não mais o aceita com suas características propriamente humanas, como a realização satisfatória de seus desejos.

Em Um médico rural, pode-se ler o seguinte fragmento:

Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Seu exterior lembra pouco o tempo em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia. Seja como for, quem está familiarizado com as circunstâncias percebe alguma coisa. Não obstante, faz pouco eu vi na escadaria até um oficial de justiça muito simples admirar, com o olhar perito do pequeno freqüentador habitual das corridas de cavalos, o advogado quando este, empinando as coxas, subia um a um os degraus com um passo que ressoava no mármore.

Um leitor acostumado com uma literatura anterior ao século XX diria que a obra de Kafka é insana. Mas seu hermetismo é justamente uma proteção, segundo Adorno, contra a loucura: em um mundo em que a loucura é a norma, sua bruta exposição pela arte – a dificuldade de individuação, a regressão à animalidade – causa grande choque.

“Os gestos perpetrados são em Kafka instantes congelados.” Adorno empreende decifrar a forma que dá expressão à força kafkiana e aponta a introdução de antigos tableaux da esfera do circo em sua obra; é como se um gesto fosse fotografado para ser preservado: pode-se ver a imagem congelada de dr. Bucéfalo equilibrado em suas patas traseiras e subindo as escadas de mármore. Os tableaux fazem parte do princípio hermético de Kafka, os quais se pautam na literalidade como extrapolação. Quando o escritor transforma situações extremas em linguagem dá mostra do que pode ser a esperança em sua obra, já que assim a imagem do que atinge o indivíduo consegue encontrar expressão na literalidade extrapolada de Kafka.

Se seu princípio hermético coloca a imagem do mundo deteriorado com um triste “assim é”, mas o mantém isolado, algumas imagens são tão violentas que permitem romper este isolamento, pois parecem mostrar claramente o mundo. Adorno cita como exemplo obras como Metamorfose e Na colônia penal, momentos em que situações extremas se transformam em linguagem, uma literalidade exagerada. Assim, a chave para a interpretação dessas obras estariam nelas mesmas. Na primeira, o homem que é um inseto do tamanho de um homem não é metáfora quando visto por uma criança: “se o olhar infantil do pavor fosse inteiramente isolado e apreendido, os adultos apareceriam enormes e distorcidos, com pernas imensas e com cabeças pequenas e distantes.” Ela mostra a imagem do homem diante do processo de desumanização de que é vítima. A linguagem extrapolada do artista é a forma como seus impulsos encontram expressão: “A técnica literária de Kafka se apega, por associação, às palavras, da mesma forma como a técnica proustiana da lembrança involuntária se apega às sensações, mas com o resultado oposto: em vez de rememoração do humano, há a prova exemplar da desumanização.”

Sua obra dá mostras de uma tendência à regressão até mesmo biológica, ou dirige o homem para a tomada de consciência de que são coisas, da perda da sua identidade. Kafka dá à forma de sua obra a expressão do humano numa época em que devido à mesmice, à repetição do sempre idêntico, ele regride à animalidade. Daí a pertinência de suas parábolas em que seres entre o humano e o animal são os elementos principais, seres que parecem insignificantes, como se fossem um carretel de linha, mas que chegam a ser a preocupação do pai de família:

Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas. (…) “Como você se chama?” pergunta-se a ele. “Odradek”, ele responde. “E onde você mora?” “Domicílio incerto”, diz e ri; mas é um riso como só se pode emitir sem pulmões. Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas.

Schwarz, a respeito dessa cena kafkiana, diz que “seu arabesco delicado e breve é violentíssimo e morde o nervo de uma cultura inteira. Não explica, mas implica a vida burguesa com tal felicidade, que ela sai triturada, de uma cena simples e doméstica, um pouco fantasiosa”, e com muita perspicácia e um certo humor, diz que “se Kafka fosse revolucionário, não fabricaria bombas, mas supositórios”. Kafka mostra a dificuldade de individuação por meio de seus tableaux,: elas expõem os seres aos pares, “muitas vezes com a marca do infantil e do bobo, oscilando entre a bondade e a crueldade.” As cenas congeladas de Kafka expõem o “reino do déjà vu” em que figuras como sósias, revenants, bufões e dançarinos hassídicos chegam a provocar pânico por exporem a fraqueza do indivíduo alienado. Mas tais tableaux não são apenas rememoração do desumano, mas também imagens do que estava por vir: “homens fabricados em linhas de produção, exemplares reproduzidos mecanicamente semelhantes aos ípsilons de Huxley.” Provavelmente Adorno se refere aí às imagens das brutalidades fascistas as quais foram possíveis devido à perda do Eu. Assim, não há nada de insano na obra de Kafka. Ao contrário, seu princípio hermético é exatamente uma proteção contra a loucura, como já dito, contra a imitação de sua obra numa época de mesmices.

Kafka conhece a loucura para poder expressá-la como conhecimento e aí mais uma vez ele o faz de forma distinta da ciência. Com seu hermetismo, ele expõe a gênese social da esquizofrenia: “as motivações triviais que a dona da pensão e finalmente também Frida fazem ver ao agrimensor lhe são estranhas – o futuro conceito psicanalítico do ‘estranhamento do Eu’ foi extraordinariamente antecipado por Kafka.” Adorno mais uma vez coloca Kafka à frente de Freud, mostrando que a psicanálise não explica totalmente o artista, mas que este tem muito a dizer sobre o psiquismo, inclusive onde não chega o olhar da ciência. É notável perceber que Adorno identificava na forma expressiva tanto de Kafka como de Stravinski uma tendência à esquizofrenia, ao embotamento afetivo, à perda de contato com a realidade, embora no escritor ela se torne material para uma arte que tenta resistir a ela, diferente do compositor que a segue como tendência sem questioná-la.

Kafka expressa imagens de um mundo deteriorado, imagens de um homem que regride cada vez mais à animalidade e vive como um inseto. Essa expressão kafkiana sem dúvida provoca angústia no leitor que enfrenta a visão de tais imagens, mas essa angústia é específica: diz Adorno que a angústia evocada por Kafka é aquela que precede o vômito, o que permite vislumbrar a sua visão acerca do mundo pequeno-burguês, cada vez menos humano. O homem como um parasita é retratado pelo artista, conforme já dizia Benjamin, mas Adorno diz que o momento parasitário é deslocado de modo singular: “quem se metamorfoseia em percevejo é Gregor Sansa, e não o seu pai. Quem parece supérfluo não são os poderosos, mas os heróis impotentes, nenhum deles presta um serviço socialmente útil.” Adorno atribui esse deslocamento a sua “escrita invertida”.

De maneira sórdida, os que sustentam a sociedade é que são retratados como parasitas, enquanto os poderosos, os donos do poder, os quais no estágio econômico da sociedade descrita por Kafka seriam os reais parasitas e supérfluos, aparecem como homens justos. O melhor exemplo desse deslocamento Adorno extrai de O processo:

As autoridades anotam até mesmo que o escriturário acusado Joseph K., preocupado com o processo, não consegue trabalhar direito. Esses heróis rastejam por entre propriedades há muito tempo amortizadas, que lhes concedem existência apenas como esmola, na medida em que sobrevivem além da conta. O deslocamento é moldado segundo o costume ideológico que glorifica a reprodução da vida como um ato de graça dos “empregadores”, que dispõem sobre ela. Ele descreve um todo no qual aqueles que a sociedade aprisiona, e que a sustentam, tornam-se supérfluos.

Adorno diz que o todo descrito por Kafka é composto como um sistema, um sistema lógico e desprovido de sentido. Dizendo somente o mero necessário, Kafka profetiza o futuro em sua negatividade, sua “escrita invertida” decifra uma lei infame: “a perfeita inverdade é a contradição de si mesma, por isso ninguém precisa contradizê-la explicitamente.” Hoje pode-se observar como a profecia de Kafka era conseqüente no que tange aquele que sustenta a sociedade ser visto como um parasita, pois quem não encontra mais colocação no esquema produtivo é deixado à margem dele e visto como parasita social que vive às custas dos que efetivamente trabalham ou dos programas sociais governamentais. No final da era liberal, em seus esqueletos, Kafka já vislumbra o que seria o horror da época dos monopólios. É esse instante histórico que Kafka apreende e destaca como se fosse invariante; ele não ousa falar sobre a história porque acredita que ela ou está condenada, ou ainda nem mesmo começou.

Já foi dito que o princípio hermético de Kafka também antecipava o que estava por vir. É tal o caráter profético desse autor que ele já foi tomado como realista ao ter sua obra referida ao Terceiro Reich. Além de antever o terror e a tortura que tomariam a Europa, anteviu também algo da organização política ligada ao fim da era liberal: “‘Estado e Partido’: assim este bando de conspiradores com função de polícia se reúne em sótãos e mora em restaurantes, como Hitler e Goebbels no Kaisserhof.” Há elementos em Kafka que parecem realmente fazer referência às perseguições nazistas: “certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum.” Momentos como esse parecem antecipar o que se passaria com as vítimas do nazismo: desconhecer o veredito que as tornavam vítimas, o que possui menos sentido do que as descrições de Kafka: “os documentos do tribunal, sobretudo os autos de acusação, permaneciam inacessíveis ao acusado e à sua defesa, por isso geralmente não se sabia, ou pelo menos não se sabia com precisão, contra o que a primeira petição precisava se dirigir.”

Kafka teria descrito os sistemas político e econômico que levaram o burguês à sua própria ruína, à perda de sua própria individualidade, sendo que nem mesmo tenha encontrado um sucessor. Esse é mais um aspecto em Kafka que ajuda a expor a decadência do indivíduo. O conto de Gracchus, um homem de força que foi incapaz de morrer, mostra o que ocorre com a burguesia e o inferno criado por ela própria: os mortos-vivos dos campos de concentração, humanos que representavam um meio-termo entre a vida e a morte: “como na épica pelo avesso de Kafka, o que pereceu ali foi o parâmetro da experiência, a vida vivida até o fim. Gracchus é a perfeita refutação da possibilidade expulsa do mundo: a de morrer em idade avançada, após ter vivido plenamente.” Kafka mostrou que em sua época existem coisas piores do que a morte. Diante das provações que o homem regredido à animalidade é exposto, a morte, que lhe daria paz, parece estar fora de seu alcance:

Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel? Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a idéia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa.

Em “A posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno diz que o romance está qualificado para apontar a reificação, pois ele toma como objeto o conflito entre os homens e as relações petrificadas. Quanto mais os homens se alienam, mais enigmáticos eles se tornam uns para os outros. O romance toma esse estranhamento como sua matéria: a obra de Kafka o faz, e no esforço de mostrar a essência ele se torna assustador e estranho, como sua A metamorfose e Na colônia penal, por mostrar o estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais. Esse estranhamento cotidiano foi perfeitamente captado por Kafka em sua narrativa “Uma confusão cotidiana” e que foi bem interpretada (e traduzida) por Modesto Carone. Segundo o autor, esse conto é medular na obra kafkiana, pois expõe exemplarmente algo basilar nela: o esforço que o herói faz para chegar ao seu objetivo que nunca é alcançado. Seu narrador é chamado de insciente, pois desconhece tanto quanto o leitor o enredo a ser narrado, mas com essa técnica o leitor se depara com o conceito de alienação, trabalhado de forma artística por Kafka no interior de sua obra. Ele narra a ocasião em que duas pessoas precisam se encontrar para fechar um negócio, mas apesar do contato físico que chagam a ter, o encontro não se dá de forma adequada. Os conceitos de espaço e tempo são distorcidos e o leitor não possui quase nenhum ponto para se ancorar ao longo da narrativa. Mas o que é bastante alarmante é o fato de que tudo o que acontece para impedir o encontro entre duas pessoas não é uma exceção, mas algo comum, conforme diz Carone: “somos informados de que o incidente retratado não só não constitui uma exceção, mas também que a confusão resultante é coisa corriqueira e muito disseminada.” Com isso, Kafka mostra a impossibilidade da troca de experiência, ou seja, narra a impossibilidade da narração. Ele justifica o emprego paradoxal do termo épica expressionista, segundo Adorno, pois ele narra um sujeito que não existe enquanto tal. Se o sujeito não vive mais experiências, seu ego não se desenvolve, permanece um espaço vazio, e tudo o que passa por ele obedece à lei da repetição intemporal. É nesse sentido que se pode interpretar a falta de relação com a história em sua obra. Embora exista um momento em que uma voz incorpórea, como diz Carone, emite um conselho a um dos envolvidos, tal conselho soa como algo que não pode ser ouvido, não pode haver encontro no mundo de desencontros narrado por Kafka: “nenhum conhecimento acumulado, nenhuma soma de experiência, é capaz de funcionar como critério de avaliação e medida num mundo em que não se pode confiar em nada.” Como diz Adorno, a pura subjetividade necessariamente alienada é objetivada e expressa pela própria alienação, o que mostra uma curta distância entre os homens e o mundo das coisas:

O princípio hermético é o princípio da subjetividade completamente alienada. (…) O que está contido na bola de vidro de Kafka é mais coerente e portanto mais cruel ainda do que o sistema lá fora, porque no espaço absolutamente subjetivo e no tempo absolutamente subjetivo não há lugar para algo que poderia perturbar o seu próprio princípio, o da alienação inexorável.

Não se sabe se Odradek respira com pulmões ou se é feito de madeira, também não se sabe se ele poderá morrer. Nesse mundo de Kafka em que há uma indiferenciação entre homem e coisa, em que não apenas a vida, mas também a morte foi expulsa, o conceito de erotismo não poderia ser deixado intocado por Kafka, segundo uma interpretação de Adorno que novamente tange a psicanálise: “Kafka fez do seu próprio sentimento neurótico de culpa, de sua sexualidade infantil e de sua obsessão com a ‘pureza’ um instrumento para corroer o conceito estabelecido de erotismo.” As mulheres em Kafka geralmente são tratadas como simples objetos sexuais, e as relações já são o reflexo do que ocorre nas grandes cidades, no que diz respeito à ausência de escolha e de memória acerca dessas relações. A sexualidade é trazida ao plano meramente fisiológico e ao mesmo tempo em que é liberada, não havendo resistências no encontro entre homens e mulheres, ela é também dessexualizada. Todavia, Adorno ainda vê algo esperançoso em Kafka em relação à realização da felicidade, pois o sujeito fechado em si mesmo ainda pode ser amado, como os prisioneiros em O processo, que são alvos das inclinações das mulheres, ou como o agrimensor em O castelo, que recebe a afeição de Frida.

Por fim, Adorno aponta escritores que influenciaram Kafka ou que estavam também produzindo em sua época, o que é interessante por mostrar que não se pode ser original e novo sem acompanhar uma tradição, e que o “gênio” criador não retira sua obra do seu psiquismo isolado, como num passe de mágica. Assim, Adorno aponta, por exemplo, Poe, Walser, Lessing e Kierkegaard. Sem saber se Kafka o conhecia, Adorno aponta semelhanças também entre sua obra e a de Sade. Ambos seriam escritores do Iluminismo, mas Kafka, de uma forma um tanto distinta de Sade: o golpe de esclarecimento em Kafka é o “assim é”, mostrando como as coisas acontecem na realidade, em seu cotidiano e sem alimentar ilusões sobre o sujeito que descreve.

---
Fonte:
NIVALDO ALEXANDRE DE FREITAS: “ALGUMAS RELAÇÕES ENTRE ARTE E PSICANÁLISE A PARTIR DA TEORIA CRÍTICA “. (Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Escolar. Orientador: Prof. Dr. José Leon Crochí). São Paulo, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Um comentário:

  1. Não pendurar o diploma no pescoço é ótimo. Não é melancia, né?

    au revoir

    ResponderExcluir

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!