Benjamin, leitor de Kafka

BENJAMIN, LEITOR DE KAFKA

Neste capítulo, analiso a leitura feita por Benjamin da obra de Franz Kafka, para a partir dela, aproximar seu estudo sobre a narração da obra do escritor pragense. A crítica de Benjamin ao universo kafkiano é de grande relevância, principalmente por conseguir conciliar a experiência teológica com a crítica à modernidade.

É necessário observar que a obra de Kafka esta sujeita as mais diversas interpretações, chegando a ponto de muitos comentadores construírem vários Kafkas. Para a dissertação o importante é a análise feita por Benjamin no ensaio Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário da sua morte e suas correspondências com Gershom Scholem.

A obra de Kafka representa para o século XX a confirmação de uma ruptura com a tradição. Sua literatura é responsável por toda uma nova forma de escrever onde ocorre o desligamento com o naturalismo descritivo que predominava até então.

O homem do nosso tempo não é o homem reificado do século XIX, pelo contrário, ele é o homem em continua tensão face ao desenvolvimento da tecnologia e dos instrumentos de opressão e alienação construídas pelo capitalismo.

Sua obra é fruto de um indivíduo engajado, tanto em uma situação, quanto num momento histórico, por isso autor e personagens se confundem a maior parte do tempo.

Kafka denuncia a incapacidade do homem se comunicar na modernidade (uma interpretação alegórica). É esse dilema que presenciamos nos seus personagens, e é essa angústia que sua obra causa nos leitores desavisados. Como observou Benjamin, numa carta a Scholem em 12 de junho de 1938:

A obra de Kafka é uma elipse cujos pontos centrais e bastante afastados um do outro constituem por um lado, a experiência mística (que é, sobretudo a experiência da tradição) e por outro a experiência do homem das grandes cidades modernas. E ao me referir à experiência do moderno habitante das metrópoles, incluo diferentes aspectos. Por um lado falo do cidadão moderno, entregue a um aparelho burocrático interminável cuja função é comandar por instâncias que parecem imprecisas para os próprios órgãos executivos, quem diria então as pessoas a elas subordinadas. (É fato conhecido que nisto se concentra uma das camadas de significado dos romances, particularmente de O Processo). Por outro lado, quando falo do habitante moderno das grandes cidades, refiro-me aos físicos contemporâneos).

A experiência mística que Benjamin se refere é a Cabala. Segundo sua interpretação o caráter hermético da literatura kafkiana parte dessa tradição. O que para muitos parece confuso nos romances de Kafka é um convite a uma experiência mística. Os estudos sobre a história judaica, até os nossos dias, têm mostrado pouca compreensão para com os documentos da Cabala, em muitos casos os ignoram por completo. No final do século XVIII, os judeus da Europa Ocidental se voltaram para a cultura européia, e a Cabala foi o primeiro elemento de sua cultura a ser sacrificado. O misticismo judaico (simbólico e introvertido) caiu no esquecimento. Na Cabala, a lei da Torá se tornou um símbolo da lei cósmica, e a história do povo judeu, um símbolo do processo cósmico. Segundo Scholem, todo misticismo possui dois aspectos contraditórios ou complementares: um conservador e outro revolucionário. É isso que encontramos na obra de Kafka:

A santidade dos textos reside exatamente na sua capacidade para semelhantes metamorfoses. A palavra de Deus tem que ser infinita, ou, para colocá-lo de modo diferente, a palavra absoluta é, como tal, insignificativa, mas está prenhe de significado. Sob o olhar humano, ela entra em corporificações significativas finitas que marcam inúmeras camadas de significados. Assim, a exegese mística, esta nova revelação concedida ao místico, tem o caráter de uma chave. A chave mesma pode extraviar-se, mas permanece vivo um desejo imenso de procurá-la. Numa época em que semelhantes impulsos místicos parecem ter minguado a ponto de desaparecerem, eles ainda mantêm uma força enorme nos livros de Franz Kafka. E a mesma situação prevalecia há dezessete séculos entre os místicos talmúdicos, um dos quais nos deixou uma impressionante formulação desta. Em seu comentário aos Salmos, Orígenes cita um erudito “hebreu”, presumivelmente um membro da Academia Rabínica de Cesárea, que teria dito que as Escrituras Sagradas são uma grande casa com muitos e muitos quartos, e diante de cada porta há uma nova chave – mas não a própria, a certa. Achar as chaves certas que abrirão as portas – eis a grande e árdua tarefa. Este relato, que data do ápice da era talmúdica, pode dar uma idéia das raízes profundas de Kafka na tradição do misticismo judaico.

Na citação encontramos o Kafka que tanto interessava ao Benjamin, aquele que está inserido na cultura judaica, que a busca como inspiração para a construção de sua obra. Durante muito tempo Kafka foi alvo de discussão das correspondências entre Benjamin e Scholem. Para eles Kafka não pode ser interpretado desassociado da tradição judaica (Cabala). Está presente na obra de Kafka o desejo de criar uma relação entre o secular e o Sagrado, entre o homem comum e o Tzadik (justo). Algo que também faz parte da filosofia benjaminiana, que em todo o momento tenta se libertar da esfera teológica sem sucesso, como observou Adorno em Caracterização de Walter Benjamin. Ambos possuem uma escrita dialética e a preferência pela narração oral. Em O Narrador, Benjamin parece demonstrar uma preferência pela narração oral em favor do valor da experiência Erfahrung, o mesmo encontramos em Kafka, que parte de uma narrativa gestual bem próxima da oralidade.

Acredito que o interesse deles pela narração oral tem influência do movimento hassidico, fundado por Baal Shem Tov. Sustento a opinião primeiramente por encontrar tanto em Benjamin como em Kafka, uma forma de religião muito particular, distante do judaísmo tradicional. O hassidismo é favorecido pela própria realidade ao expressar seus ensinamentos, o Tzadik atua de maneira simbólica, e transforma suas lições em sentenças que as complementam ou contribuem para sua interpretação. No entanto, ele não deveria ser apresentado em ações que se tornam máximas, mas no próprio ato de ensinar oralmente, já que nele a fala é parte essencial da ação. Como observou Martin Buber:

Aqui tocamos aquela base vital do hassidismo, da qual se esgalha a vida entre entusiasmadores e entusiasmados. A relação entre o tzadik e seus discípulos é tão-somente a sua mais intensa concentração. Nesta relação, a reciprocidade se desenvolve no sentido da máxima clareza. O mestre ajuda os discípulos a se encontrarem e, nas horas de depressão, os discípulos ajudam o mestre a reencontrar-se. O mestre inflama as almas dos discípulos; e eles o rodeiam e o iluminam. O discípulo pergunta e, pela forma de sua pergunta, evoca sem o saber, um resposta no espírito do mestre, a qual não teria nascido sem essa pergunta.

A citação parece parte do ensaio O Narrador, quando Benjamin diz que aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. No caso de Kafka, ele obriga o leitor à releitura. Ninguém consegue tirar uma única explicação sem cair na armadilha construída pelo autor.

Cada enigma presente obriga o leitor a buscar explicações, que não são reveladas com clareza, e que nos leva a uma nova leitura partindo de outro ângulo. Muitas vezes surgem de uma mesma passagem várias possibilidades de interpretação, onde se justifica a necessidade de duas ou mais leituras. Este jogo criado por Kafka tem suas próprias regras, e uma delas, é que nada é o que parece a primeira vista.

Seu universo está repleto de personagens alegóricos que de alguma maneira sempre tem algo a dizer. A reabilitação da alegoria na modernidade irá reivindicar as qualificações consideradas antiestéticas, ao mostrar que esse caráter arbitrário, deficiente e conceitual da alegoria define uma arte diferente da concebida pela harmonia clássica, porém legitima talvez a única para a época moderna. Jean Marie afirma:

Walter Benjamin pode ser considerado, com razão, o primeiro teórico a ter buscado essa reabilitação. De inicio, ele estuda a corrente literária à qual o classicismo alemão queria justamente se opor, o barroco, mais particularmente o drama barroco, mostrando a importância essencial da alegoria na visão barroca do mundo. Persuadidos, por razões teológicas, da deficiência de um mundo estigmatizado pela Queda, os autores barrocos recorrem à alegoria como figura retórica que marca, exatamente por seu caráter arbitrário e difícil, as faltas e os dilaceramentos do real.

Podemos dizer que a obra de Kafka encontra-se dentro de um universo barroco. Se para Benjamin, o primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas, ninguém melhor que Kafka para representar o grande narrador. O conto de fadas sabia dar um bom conselho, mas essa nunca foi à intenção de Kafka. O que ele busca é provocar no leitor o desejo de se libertar do mito que tanto podia ser o progresso ou a religião. O conto de fadas foi a primeira medida tomada pela humanidade para se libertar do mito como observou Benjamin:

O mundo mítico, à primeira vista próximo do universo kafkiano, é incomparavelmente mais jovem que o mundo de Kafka, com relação ao qual o mito já representa uma promessa de libertação. Uma coisa é certa: Kafka não cedeu à sedução do mito. Novo Odisseus, livrou-se dessa sedução graças “a um olhar dirigido a um horizonte distante”...“as sereias desapareceram literalmente diante de tamanha firmeza, e, no momento em que estava mais próximo delas, não as percebia mais”. Entre os ancestrais de Kafka no mundo antigo, os judeus e os chineses, que reencontraremos mais tarde, esse antepassado grego não deve ser esquecido. Pois Odisseus está na fronteira do mito e do conto de fadas. A razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito; por isso, os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses poderes. Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas.

Quando Benjamin diz que Kafka se propôs a narrar sagas ele compreendeu na narrativa kafkiana a necessidade de contar a jornada do homem na terra (uma busca de sentido). A existência humana é posta a prova no momento em que diante do sagrado nada faz sentido.

O mundo de Kafka é cinza, repleto de animais patéticos, e burocratas mesquinhos. Onde a tríade judaica formada pela revelação, lei e comentário o definem.

Os protagonistas desse mundo imaginário não podem abrir mão dessas categorias, mesmo não compreendendo ou vivendo de acordo com elas. Essa tríade judaica também está presente na filosofia benjaminiana, em particular no papel do comentador.

Kafka exprime a tragédia pelo cotidiano. Podemos constatar isso principalmente em O Processo e O Castelo, onde tanto K quanto Josef K (que são a mesma pessoa) vivencia sua tragédia no dia-a-dia. O que ele relata não é somente o absurdo do mundo, mas também o absurdo da existência humana. Se o seu mundo é um mundo sem esperança, ainda assim, existe esperança na justiça divina. Benjamin observa:

Kafka escutava o que lhe dizia a tradição e quem ouve intensamente não vê. Este ato de ouvir é cansativo, sobretudo porque só coisas confusas chegam até aquele que ouve. Não há doutrina a se aprender e nem conhecimentos que se possa conservar. O que se capta de repente são coisas que não estão determinadas para nenhum ouvido em especial. Isto inclui um estado de coisas que caracteriza estritamente a obra de Kafka por seu lado negativo (quase sempre sua característica negativa será mais rica de perspectiva que a positiva). A obra de Kafka representa um adoecimento da tradição. Tratou-se de definir a sabedoria, às vezes, como o lado épico da verdade. Assim, a sabedoria é caracterizada como um bem da tradição; ela é a verdade em sua consistência “hagádica”.

Mesmo no momento em que critica a tradição, Kafka não deixa de recorrer a ela. Ele continuou ouvindo a tradição judaica e inspirado por ela construiu sua obra. Hagadá em hebraico significa narrativa ou lendas, as parábolas presentes na obra de Kafka muito se aproximam deste sentido. Segundo Mandelbaum:

Foi o próprio Benjamin que afirmara, em seu texto “O narrador”, que “a sabedoria é o lado épico da verdade”, querendo dar a entender que aquela não é, em si, um bem da tradição, mas uma operação que emerge do contato do homem com ela. Ele agrega nessa carta que “ela [a sabedoria] é a verdade em sua consistência hagádica. Hagadá, em hebraico, quer dizer narrativa, e costuma ser usualmente definida de um modo negativo, ou seja, como toda aquela porção do ensinamento rabínico que não é halahá (caminho, trilha ou lei, toda a tradição legalista do judaísmo expressa em código de lei), mas com a qual guarda uma íntima relação, por ser dela uma expressão exemplar. Toda hagadá é um midrasch, assim como também toda halahá é um midrasch, um modo de expor e desdobrar o texto fundante. A hagadá é complemento do texto fundante em sua versão ficcional.

É a atitude midraschica que envolve a obra de Kafka enquanto escritor que o aproxima de Benjamin enquanto comentador. O exercício do comentário na obra de Benjamin é adornado por um valor teológico profundo que perpassa toda sua obra:

Para Benjamin, o exercício espiritual e cultural do comentário estava profundamente ligado à importante questão da capacidade humana de compreender o passado, de estabelecer uma conexão vívida com ele. Era este, na verdade, o problema básico que cativou a atenção de Benjamin e Scholem ao longo de suas carreiras. Essa questão também estava implícita em Kafka, cuja obra pode ser entendida como a representação definitiva da perda de uma tradição confiante. Nos seus romances e contos, entretanto, Kafka afasta o problema da exegese de qualquer contexto histórico, apresentando imagens atemporais do homem preso num labirinto de mensagens ambíguas, que ele se sente forçado a decifrar. Para Benjamin, o confronto entre exegeta e texto, entre presente e passado, torna-se ainda mais tenso e complexo pelo fato de o observador do presente poder lidar apenas com fragmentos, onde os criadores do texto tradicional pressupunham haver uma totalidade.

No momento em que critica a tradição, Benjamin constata que ela nos chega por fragmentos e nunca completa. Encontramos essa crítica em Experiência e pobreza e em O Narrador, assim como nos estudos sobre Baudelaire, onde denuncia a fragmentação da experiência do homem na modernidade. Em Sobre o conceito da história, ele continua a pensar sobre a importância da exegese num contexto histórico, só que agora ele busca conciliar “mundos distantes” do passado e a compulsão do presente de se apropriar de pequenos fragmentos deste passado para atender as suas próprias necessidades, como observou Alter.

Quando Benjamin diz que a sabedoria em si mesma não é um bem da tradição, mas a operação que resulta do contato do homem com ela, busca mostrar a importância da experiência para a formação do homem. Ao comparar a obra de Kafka a Hagadá, expõe sua carência de valor teológico, mas nem por isso ela deixa de ter relação com a lei judaica. A lei e a justiça são temas presentes no universo kafkiano.

Kafka faz parte de uma geração de jovens judeus que estavam inconformados com a assimilação judaica. Para eles a assimilação era uma forma de negar toda uma tradição milenar de que fazem parte. Assim como Benjamin, ele não é verdadeiramente religioso nem inteiramente assimilado, ele terá por toda a vida uma atitude ambígua quanto à cultura e à religião judaica. Podemos observar sua revolta contra a postura assimilacionista de sua família em Carta ao pai:

Trouxeras ainda contigo alguma coisa do judaísmo da pequena comunidade rural com aparências de judeu, de onde eras oriundo; não era muito e reduziu-se um pouco mais na cidade e no serviço militar, porém as impressões e as lembranças da juventude bastavam, embora fosse estritamente, para levar uma espécie de vida judia, especialmente porque não precisavas maior apoio desse tipo, pois provinhas de uma estirpe muito robusta, e tua personalidade apenas podia perturbar-se com dúvidas religiosas, sempre que não se mesclassem demais com dúvidas sociais. No fundo, subsistia em ti a fé primeira de tua vida: acreditavas na verdade incondicional das convicções de acordo com as tuas idiossincrasias, acreditavas em ti mesmo. E mesmo assim, isso implicava bastante judaísmo, porem demasiado pouco para ser transmitido ao menino que eu era, e se diluía na totalidade enquanto o ias transmitindo; em parte por intransferíveis impressões de juventude, em parte pela sua temida presença.

É a partir de 1910, com a passagem do teatro iídiche por Praga, que ele começa a se interessar mais ativamente pelo judaísmo, estudando a literatura iídiche, A historia dos judeus de Heinrich Graetz e os contos hassídicos, como observou Michel Lowy. Acredito que foi nesse período que ele entra em contato com os contos de Rabi Nakhman. Segundo Lowy:

Antes desta data, a palavra “judaísmo” não figura em seus escritos ou correspondências. Em 1913 visita Martin Buber (em Berlim), com quem se corresponderá durante alguns anos. Num depoimento posterior, Buber lembra-se de ter conversado com ele sobre o significado do Salmo 82, interpretado por ambos como sendo a promessa da punição, pelo poder divino, dos juízes injustos que reinam sobre a terra.

A afinidade intelectual entre Franz Kafka e Walter Benjamin é possível por conta do interesse de ambos pelo judaísmo, claro que um judaísmo muito particular e cheio de contradições. Ao inverter o universo da teologia tradicional, Kafka constrói nos seus textos uma teologia negativa, onde não existe lugar para ruptura messiânica na história. Não há lugar para a esperança na obra de Kafka. Para ele, a vinda do Messias parece estreitamente ligada a uma concepção individualista de fé, desta forma, a redenção messiânica será obra dos próprios homens, no momento em que seguirem a lei interna de cada um, lutando contra as autoridades exteriores e as injustiças sociais. Essa idéia também é aceita por Benjamin, e defendida nas Teses da História:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente pode ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar separados dele por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que a sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.

Se não há esperança na obra de Kafka ao menos existe no valor da transmissibilidade, somente nela a justiça e a verdade poderão ser testemunhadas. Neste ponto, ele resgata o valor da tradição oral (narrativa) presente no judaísmo, ao incorporá-la a sua obra de uma maneira particular. O pessimismo que carrega sua obra é um efeito, mas não a causa. É em decorrência do afastamento do homem dos valores da verdade e da justiça que o mundo de Kafka é tão cinza e sujo. Por isso seus personagens continuamente são vítimas de mentiras (O Castelo) e de injustiças (O Processo).

A questão da transmissibilidade é o ponto chave da obra de Kafka, e tema corrente em O Narrador. Como os valores da verdade e da justiça podem ser transmitidos? Em resposta a carta de Benjamin sobre Kafka, Scholem escreve:

A antinomia da Hagadá, citada por você, não é própria apenas da Hagadá kafkiana, e sim está baseada na própria natureza da Hagadá. Esta obra representa de fato um “adoecimento da tradição” para você? Diria que esse adoecimento reside na própria natureza da tradição mística. A decadência da tradição traz em seu bojo que a transmissibilidade dessa tradição seja o único elemento a manter-se vivo, o que é natural.

Quando a tradição entra em decadência a única coisa que se mantém viva é sua transmissibilidade. A obra de Kafka é uma crítica a tradição (judaica), por reconhecer nela o fracasso da assimilação por parte dos judeus da época. Tendo consciência dessa decadência, ele a mantém viva por meio da narração (que não deixa de ser um exercício da tradição). Scholem conclui:

Há não sei quantos anos, devo haver feito anotações, no contexto dos meus estudos, sobre a questão da pura transmissibilidade, cujo teor gostaria de expor brevemente. Me parece que elas surgem no contexto da questão da “essência” da justiça, do tipo “sagrado” da mística judaica em declínio. É claro e plenamente verdadeiro que a sabedoria é um bem da tradição: como todos os bens da tradição ela é inconstrutível em sua essência. É a sabedoria que, onde se reflete, não reconhece e sim comenta. Se você conseguisse colocar o caso extremo de sabedoria, que Kafka de fato representa, como sendo a crise da mera transmissibilidade da verdade, você realizaria um feito grandioso.

Os contos e romances de Kafka enfocam constantemente, e de diversas maneiras questões como o exílio, a assimilação, a revelação, o comentário, a lei, a tradição e os mandamentos. Só que esses temas adquirem um caráter universal que levam o leitor a refletir alguns deles. O segredo da narrativa de Kafka não está na mensagem, mas na possibilidade da transmissibilidade da verdade. Aqui se encontra sua sabedoria. Tema esse também discutido em O Narrador: Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades.

No momento em que Benjamin toma a memória como a faculdade épica o que está sendo discutido é a possibilidade de transmissão da verdade. Tanto para o Benjamin como para o Kafka a idéia de transmissibilidade da verdade tem um sentido teológico. Mas essa relação possui um caráter estritamente ético, onde a justiça é a principal referência:

As ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até o seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também as do mundo ético sofreram transformações que não julgaríamos possíveis.

As transformações ocorridas no mundo ético se refletem na esfera social. Essa denuncia é feita em Sobre o conceito da história, especialmente na terceira parte, ao constatar na memória um valor social que é parte da responsabilidade histórica:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, levam em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido na história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um de seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à L´ordre ju jour – e esse dia é justamente o do juízo final.

A idéia de redenção possui um valor estritamente teológico. Benjamin concilia a responsabilidade histórica com a memória. Tão somente aqueles que não têm culpa podem recorrer à história como testemunha. Desta forma a reminiscência funda a cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração a geração correspondendo assim à musa épica no sentido pleno. A primeira encarnação da forma épica encontra-se na figura do narrador. Por isso Benjamin encontra na obra de Kafka a arte de narrar por excelência quando diz que ele escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas.

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Fonte:
RICARDO SOUZA CRUZ: “WALTER BENJAMIN: O VALOR DA NARRAÇÃO E O PAPEL DO JUSTO”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Filosofia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Edvaldo Souza Couto, 2008).

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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