Crônicas cecilianas: um caso de prosa poética



Crônicas cecilianas: um caso de prosa poética

Além das crônicas voltadas para a temática da educação, Cecília produziu outras com
temas diversos, as quais são percebidas, notadamente, a partir da poeticidade que apresentam e da expressão pessoal com que a autora vê e sente o mundo ao seu redor, revelando notas de cunho memorialístico, sem deixar de resvalar o seu caráter de universalidade.

Nessas crônicas líricas encontramos a Cecília viajante, movida pelo desejo de conhecer outras culturas, outros povos, outros lugares, a Cecília que empreendeu inúmeras viagens, percorrendo não apenas o território brasileiro, mas várias partes do mundo, com notável predileção por países do Oriente e também por Portugal. Essa paixão por outras culturas vem de muito longe, do tempo em que Cecília era criança e ouvia as histórias contadas por sua avó, as cantigas na voz de sua babá Pedrina, e, pela contemplação dos tecidos de seda, móveis e utensílios domésticos, bem como pela degustação de certos alimentos, notadamente, os chás, enfim, de tudo que a menina via e admirava propiciava-lhe viagens imaginárias que, na fase adulta, puderam ser concretizadas. Na crônica
―Meus orientes, a escritora declara sua paixão antiga pela cultura oriental:

O oriente tem sido uma paixão constante na minha vida: não, porém,
pelo seu chamado exotismo‘ – que é atração e curiosidade de turistas, mas pela sua profundidade poética, que é uma outra maneira de ser da sabedoria. Como se cristalizou em mim esse sentimento de admiração emocionada por esses povos distantes, não é fácil de explicar em poucas linhas. Mas foi uma cristalização muito lenta, dos primeiros tempos da infância (MEIRELES, 1980, p.36).

Rousseau (2004, p.671) chama-nos a atenção para os diferentes modos de
viajar: ― há muita diferença em viajar para ver terras e viajar para ver povos. O primeiro objeto é o dos curiosos, o outro é apenas acessório. Deve ser o contrário para quem quer filosofar. Cecília Meireles parece ter assimilado bem essas diferenças e, inegavelmente, é com os olhos de poeta e de pesquisadora que a cronista descreve as pessoas e seus hábitos, ou seja, a cultura dos mais diversos povos, lançando-lhes um olhar de respeito e de admiração pela diversidade do que encontra.

As inúmeras viagens realizadas por Cecília Meireles nos legaram um conjunto de crônicas que revelam não a Cecília turista, mas a viajante, ou seja, aquela que tem uma percepção mais profunda das coisas, dos seres e dos lugares, que descreve com emoção, as mais belas paisagens, mas também os problemas e as
desigualdades sociais. Para a escritora, viajar ― expor-se a todas as experiências e todos os riscos, não só os de ordem física, mas, sobretudo, os de ordem espiritual. Viajar uma outra forma de meditar. (MEIRELES, 1998, v.1, p.269).

Boa parte dessa meditação da Cecília viajante pode ser encontrada nos três volumes que compõem o projeto editorial
Crônicas de viagem, no qual ―existe uma teoria do viajar que também uma teoria poética conforme Margarida Gouveia (2001, p. 112).

Cecília Meireles valorizava também as viagens que se fazem sem sair do
lugar, por isso distingue: ― as viagens que se sonham e as viagens que se fazem o que é muito diferente. O sonho do viajante está lá longe, no fim da viagem, onde habitam as coisas imaginadas (MEIRELES, 1998, v. 1, p. 243). Neste sentido, Cecília foi sempre uma viajante constante, na medida em que, sempre procurou, principalmente através da leitura, o conhecimento de outras culturas, de outros povos, de modo que antes mesmo de realizar concretamente uma viagem, ela já dava sinais de conhecer o lugar, antes mesmo de lá estar. Escolhemos um trecho em que Cecília, ao visitar a Índia, fala sobre a Universidade de Shantiniketan, situada em Calcutá, da qual a escritora já detinha informações e nutria uma admiração pelo notável trabalho de educação desenvolvido nesta instituição. Eis as palavras da cronista:

Ela era
e continua a ser como um símbolo, no meu coração. Fundada por um poeta e um poeta que se chamou Tagore! no princípio deste século, que havia de ser tão atordoante, e sonhando realizar o ―sítio de paz que o seu nome exprime, por meio de uma educação integral, intelectual, moral e artística, ao mesmo tempo ligada ao glorioso passado da Índia, à humildade contemporânea e a um futuro que se poderia sonhar fraternal, tudo nesta instituição me chamava: origem, métodos, objetivos (MEIRELES, 1999, v.3, p.211).

Contrariando sua vontade, a escritora não pôde ver de perto a universidade
que tanto admirava e, por isso, ela declara que ― continuarei a guardá-la na imaginação, com suas árvores, seu ensino ao ar livre, sua preocupação de dar aos estudantes uma correta formação interior, e meios de exprimi-la (Idem).

Observamos que a viagem à Índia, registrada num grande número de crônicas e de poemas, notadamente os de
Poemas escritos na Índia (1961), representa, para Cecília Meireles, a síntese do quão importante foi a experiência de conhecer outros lugares. Este autoconhecimento perpassa também o conhecimento do outro, através de um olhar contemplativo que vê os lugares e as pessoas e, ―mais do que a aparência, descobre as for as secretas da vida conforme Jorge de Sá (1985, p.67), em estudo sobre a crônica.

No geral, utilizando-se de uma linguagem leve, a escritora desconstrói a visão de que a crônica configura um gênero menor. Acreditamos que este (pré) conceito se deva à caracterização da própria crônica, seja pela relação que mantém com o jornal, seja pela pequena extensão que apresenta, aliada ao fato de muitos escritores declararem que a escrevem por uma questão de
sobrevivência. Antônio Cândido, em ― A vida ao rés-do-chão, considera esta condição não um caso de mera inferioridade, mas, uma característica que a deixa mais perto da realidade do leitor, ajustando-se à sensibilidade do dia-a-dia:

Em sua despretensão, humaniza e é essa humanização que lhe confere certa profundidade de significado. A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas ou das pessoas. Em lugar de oferecer um lugar excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. É amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais fantásticas e diretas
(CANDIDO, 1992, p. 13,14).

Embora no aludido ensaio, o crítico não faça referência específica à cronística ceciliana, observamos ser bastante perceptível a aproximação entre a verdade e a poesia nas crônicas de Cecília Meireles, notadamente, as que estão em
Escolha seu sonho (1964), obra que será comentada no final deste capítulo.

A poesia se faz presente em boa parte das crônicas cecilianas, a tal ponto que, durante
a leitura, temos a impressão de que estamos lendo um poema, tamanha é a pujança de seu lirismo que nos faz adjetivar seus textos cronísticos de prosa poética.

Há, de modo geral, uma dificuldade na classificação da crônica, dado o hibridismo de sua natureza de texto jornalístico e literário. Isto, todavia, não se constitui motivo de inferioridade para a crônica, pois compartilhamos o pensamento de Octávio Paz quando afirma que classificar não é entender nem compreender:
Como todas as classificações, as nomenclaturas são instrumentos de trabalho. No entanto, são instrumentos que se tornam inúteis quando queremos empregá-los para tarefas mais sutis do que a simples ordenação externa (PAZ, 1982, p.17).

Ainda na esteira do pensamento do poeta e crítico mexicano, concordamos que a poesia, como toda a literatura, se concretiza no ato de experimentação, ou seja, existe para ser experimentada. Desta experiência com o poético consubstancia-se a significância do texto, numa situação em que o leitor se move com liberdade, criando e recriando sentidos para o que é lido, ao mesmo tempo em que, ao confrontar-se com o texto, aceita o convite para mergulhar nas palavras, considerando que, num texto mais lírico, os sentimentos e a forma de expressá-los se tornam mais importantes do que os fatos. Isto acontece porque,
geralmente, as palavras no texto literário provocam ― constelações de imagens no leitor, na expressão de Octávio Paz (Ibidem, p. 27), pois, ao se desnudarem de seu caráter lógico-referencial, sugerem muito mais que informam, motivando o leitor a recuperar certo estado poético que envolveu o escritor na produção do texto. Desta forma, o leitor participa do texto, recriando a obra, ao mesmo tempo em que ―reproduz os gestos e a experiência do poeta (Ibidem, p. 53).

Tratando-se
de Cecília Meireles, não poderíamos esperar outra coisa, senão a presença abundante de crônicas marcadamente caracterizadas como poemas em prosa. Ritmo, imagens, aliterações, anáforas dentre outros recursos, apontados pelos teóricos da poesia, cruzam-se nos fios de palavras, compondo um tecido poético que, muitas vezes, evoca aspectos e fragmentos intratextuais de sua obra em versos.

O modo como a linguagem se estrutura em algumas crônicas, como
― Compensação‘ e ― A arte de ser feliz serve-nos de exemplo, pois encontramos na sua tessitura diversos recursos poéticos, especialmente o paralelismo formal apresentado no início dos parágrafos nas repetições ―Hoje eu queria, na crônica ― Compensação e ―Houve um tempo em que..., na crônica ― Arte de ser feliz (MEIRELES, 2005, p. 20, 21), assemelhando-se a versos que se repetem nas estrofes de poemas. Além disso, Cecília Meireles evoca certas imagens poéticas ligadas às nuvens, ao vento, à água, às flores, dentre outras imagens presentes no universo semântico dos versos cecilianos. Em ―Compensação, a cronista deseja transpor a realidade, transformando-se no que h de leve, de etéreo: ―Hoje eu queria estar entre as nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidade, na sua docilidade de serem e deixarem de ser. Livremente. E no final conclui: ―Hoje eu queria ser esse vento (Ibidem, p.113).

No geral, encontramos em suas crônicas páginas marcadas por fecundo simbolismo, ternura e leveza, seja quando direcionadas ao público infanto-juvenil, seja quando destinadas ao jornal, para o consumo do leitor adulto, características que perpassam toda a sua crônica de natureza diversa, dos livros
Quadrante, (1962), Quadrante II,(1963) e Escolha seu sonho, (1964), publicados em vida, até as coletâneas: Vozes da cidade, (1965), Inéditos, (1967), O que se diz e o que se entende, (1980), Ilusões do mundo, (1982) e Crônicas tomo I, (1997), Crônicas de viagem I, (1998), publicadas após sua morte.

Testemunha e crítica de seu tempo, Cecília Meireles escreve também sob a influência de acontecimentos como a Segunda Guerra mundial que
aterrorizava os espíritos sensíveis como o dela. Na crônica ―Oh! A bomba, publicada inicialmente no jornal Folha carioca, em 11 de agosto de 1945, ela comenta sobre a destruição de valores e sentimentos humanos, como o desejo de ser justo, exemplo que já nem figura nas antologias; a convicção no valor das coisas morais...; o respeito pela condição humana; a alegria de ser fraternal, tudo isto apresentado com um afastamento da função referencial, numa aproximação com a função poética da linguagem. Vejamos um trecho da referida crônica: A bomba atômica não deve causar tanta admiração nem tanto susto. Ela é apenas a representação plástica do que uma parte da humanidade tem surdamente realizado, nesses invisíveis laboratórios que também somos (MEIRELES, 1998, p.189).

Mesmo quando escreve para o jornal, Cecília não abre mão da linguagem literária, conseguindo
exercer a sua capacidade criativa e usar o recurso do humor e da reflexão para captar o fato cotidiano, tornando-o mais leve e atrativo aos olhos do leitor, de modo que a leitura transforma-se num ato de fruição e um exercício de enriquecimento cultural. Além disso, devemos ressaltar, em consonância com Margarida Gouveia, a profundidade reflexiva resultante das experiências vividas e dos fatos circunstanciais presentes nos textos cecilianos:

Nota-se nos escritos de Cecília alguma circunstancialidade, algum acaso de percurso, alguma sugestão pontual de experiência vivida. Isso dá-lhes
um certo ar de ―escritos de circunstância, não no sentido em que habitualmente se confere ao rótulo ―literatura de circunstância – uma conotação de frivolidade, de fortuito e até de superficial , mas no sentido mais profundo em que determinadas circunstâncias (particularmente viagens) geram textos cuja profundidade rejeita qualquer interpretação de superficialidade (GOUVEIA, 2001, p.113).

Acreditamos
que esses atributos fazem com que as crônicas de Cecília Meireles sejam bem recebidas por leitores diversos, podendo ganhar mais espaço nas aulas de leitura de literatura. Este poder de sedução junto aos leitores se evidencia, sobretudo, quando o professor chama a atenção dos leitores para a forma organizacional e os aspectos argumentativos, bem como para os jogos de imagens que tanto propiciam a interação leitor/texto.

Essa interação se deve também ao fato de Cecília Meireles, através de sua vocação para a poesia, a prosa, a pintura, a música, a educação, o jornalismo e a pesquisa, conjugar arte e humanização, evidenciando seu compromisso estético e a sua preocupação com tudo o que diz respeito à vida humana: o sonho, a infância, a liberdade, a justiça, dentre outros. Acrescentamos, a tudo isso, o fato de que seus textos nos apresentam múltiplos modos de ver as pessoas e o
mundo, verdadeiras ―janelas abertas pelas quais nós, leitores, somos convidados também a exercer nosso olhar, vivenciando e ampliando nossas experiências de vida, bem como desenvolvendo nossa sensibilidade.

A esse respeito o Prof. Leodegário de Azevedo Filho, na apresentação das crônicas reunidas em
Obra em Prosa, volume 1, escreve: a sua linguagem poética invade o campo da crônica, com enternecedora suavidade, não apenas em textos de sentido narrativo, que se aproximam do conto, mas também em textos do tipo poema-em-prosa ou, então de cunho folclórico, educacional ou de perfis humanos. Mas também invade o campo das crônicas de viagem, e o gênero se adapta admiravelmente à literatura viageira, e, ainda, o das crônicas de sentido informativo, às vezes, reduzindo-se a simples comentários poéticos da realidade. Em todas elas, o estilo de Cecília Meireles é inconfundível, sobretudo pela leveza de linguagem e pelo sentimento do mundo, tudo envolto no tempo humano, que nada tem a ver com folhinhas ou calendários. Com tais elementos, afasta-se do espírito de reportagem,conferindo alto valor literário às suas crônicas, sempre perplexa diante do espetáculo da vida, dos seres e das coisas, mas também revoltada, às vezes, contra o desconcerto do mundo e as injustiças sociais (MEIRELES, 1998, p. 10,11).

Conforme o crítico Antonio Candido, a crônica um veículo privilegiado
para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas (CANDIDO, op. cit., p.19).

Nesse
sentido, retomando Valéria Lamego, consideramos que as crônicas de Cecília Meireles simbolizam a música, com sua leveza e poeticidade, tocando a sensibilidade do leitor, ao mesmo tempo que são também farpas, ao fazerem a crítica às questões de seu tempo.

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Fonte:
Maria Valdênia da Silva: “AS CRÔNICAS DE CECÍLIA MEIRELES: UM PROJETO ESTÉTICO E PEDAGÓGICO”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do título de Doutora em Letras, área de concentração Literatura e cultura, sob a orientação do Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves). João Pessoa – PB, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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