Drummond: um narrador nato na pele do cronista



Drummond: um narrador nato na pele do cronista

As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Fernando Pessoa

O cronista ocupa o espaço mais independente da imprensa, respira desprendimento e comenta despreocupadamente as notícias publicadas sem se ater às burocracias informativas que engessam o jornalismo.

Em “A dura sentença” (Auto-retrato e outras crônicas, 1989), Drummond abastece-se do fato como ponto de partida para misturar literatura e vida real, recordar episódios pitorescos e mostrar o lado poético do cotidiano.

A crônica relata um “momento trágico” na vida de Arnaldo, um jovem condenado a viver dois anos e oito meses no xadrez por ter roubado um beijo. O literato inicia o texto dizendo que, embora desconhecesse “os termos da sentença do juiz de S. Paulo” (ANDRADE, 1989, p. 125), ela parecia-lhe um pouco puxada.

A revelação nos instiga a pensar que Drummond soubera do episódio por meio da imprensa, pois cita o local onde ocorreu o caso e, em outros momentos da crônica, revela que o nome do magistrado envolvido na questão era Eliezer Rosa, e que os beijos – haviam sido mais de um - aconteceram em ritmo acelerado. Além do teor jornalístico contido nas informações registradas no texto, o acontecimento em si é um crime excepcional, que geralmente chama a atenção do jornalista de ofício. Outro aspecto que reforça nossa convicção de que o mote do texto seja um recorte de jornal, é o fato de Drummond residir no Rio de Janeiro, e que, por esse motivo, dificilmente deveria conhecer os personagens dessa história. Mas como sabia detalhes, provavelmente tenha lido sobre o episódio na imprensa. A quantidade de informações apresentadas na crônica ainda nos leva a crer que o caso rendeu apenas uma nota, pois o escriba do cotidiano afirma desconhecer o teor da sentença, demonstrando que a cobertura deve ter sido superficial – pois se trata de um assunto menor se comparado ao teor de seriedade de outros assuntos cobertos pelo jornalismo.

Na opinião de Drummond, a punição a Arnaldo estava sendo muito severa. O cronista consentia que o moço recebesse um corretivo, pois aquela sequência de beijos necessitava da aprovação da jovem, de maneira expressa ou subentendida. Mas um castigo daquela ordem era um exagero. Nem mesmo o broto, vítima do beijo, exigiria que o ladrão de beijos ficasse tanto tempo detido na cadeia. O escritor comporta-se como um analista comportamental e avalia o caso de forma ponderada:

Arnaldo moveu-se por seu exclusivo apetite, sem consultar o da outra parte, e foi repelido. Para naturezas delicadas, é a maior punição. Arnaldo não será um delicado, carece de advertência penal para coibir a afoiteza. Mas quase 3 anos de sol quadrado por um beijo, simples ou continuado, eis segundo um erro, menos compreensível que o primeiro (ANDRADE, 1989, p. 125).

A palavra “apetite” caracteriza a vontade que tomou conta de Arnaldo e que o motivou os beijos não correspondidos. Nas entrelinhas, a moça é comparada por Drummond com um prato suculento, que aguçou os desejos do réu. O termo delicado indica fragilidade e o cronista empregou a expressão “naturezas delicadas” para salientar que o criminoso era uma pessoa sentimental e emotiva. No entanto, o rapaz havia ignorado esses traços de sua personalidade quando beijou o broto à força. O ato desrespeitoso pedia uma punição formal, estabelecida por uma autoridade, para educar o próprio rapaz e ensiná-lo a controlar seus desejos.

Contudo, quase três anos na prisão, era uma pena muito rígida, no ponto de vista do cronista. Na opinião dele, o equívoco do magistrado era menos compreensível que o crime cometido pelo rapaz, já que o juiz utilizou a razão para elaborar os termos da sentença, enquanto Arnaldo havia agido de modo irracional, guiado pela emoção.

Na continuidade do discurso, Drummond aponta que os magistrados deveriam tratar dos casos de beijos roubados de forma isolada, pois a aplicação do “metro indiscriminado” (ANDRADE, 1989, p. 125), ou seja, a adoção de uma pena padrão, gerava injustiças. Cada caso possui sua particularidade e não existe uma unidade de medida para pesar as ações humanas.

Ao contrário do magistrado, Drummond procurou apreender o caso em sua totalidade, atuando como um jurista do cotidiano:

Na fisionomia de uma e outra parte encontrará talvez profunda razão do ato, que, se não o torna inocente, pelo menos o explica. Nem todas as manifestações são libidinosas ou faunescas; umas trazem o selo do arrebatamento estético, identificável ao que o homem tem mais alto. A lei e a prudência ensinam a sofrear tais impulsos administrativos, quando se trata de obras de arte vivas, mas há ocasiões em que o terrível impacto da beleza faz esquecer conveniências, códigos, família, pátria, sociedade e tudo mais, e leva a exprimir o êxtase da maneira informal. A mulher objeto da homenagem devia sentir-se orgulhosa, mas o que sucede frequentemente é chamar o vigilante ou dar com a bolsa na cara do esteta (ANDRADE, 1989, p. 125-126, grifo nosso).

O cronista acreditava que o semblante e o perfil das duas partes poderiam revelar a motivação verdadeira de Arnaldo para aqueles beijos roubados. O juiz simplesmente classificou o gesto do rapaz como obsceno, sem realizar uma análise mais apurada, que poderia ter culminado na absolvição do réu. Como acreditava na inocência de Arnaldo, Drummond investe em um jogo de palavras com o intuito de defendê-lo.

Para o pensador do cotidiano, a manifestação de Arnaldo era nobre e não carregava vestígios criminosos. No texto, a palavra “selo” possui o sentido de “certificado de qualidade” e foi empregada propositadamente pelo cronista para enaltecer aquele gesto. É como se os beijos “deferidos” à moça carregassem uma identificação, assim como os produtos trazem nas embalagens selos que comprovam sua procedência ou certificação. O selo implícito colado nos beijos de Arnaldo comprovava que o rapaz havia se apaixonado repentinamente por conta da exuberância da moça. Arnaldo agiu movido pela emoção que a beleza do broto despertou nele. O gesto fora inspirado pelo sentimentalismo de seu autor e não tinha sido realizado por instinto, como se fosse uma atitude animalesca, como considerou o juiz. Nem mesmo a rapariga soube interpretar a manifestação de carinho que recebera. Não entendeu que suas aptidões físicas entusiasmaram Arnaldo. Na verdade, o ato que ela entendeu como falta de respeito era uma forma de elogio. Portanto, ela se comportara como vítima quando, na verdade, era uma musa para Arnaldo.

Drummond escreve a crônica como se estivesse de “papo furado” com os colegas na mesa de um bar e inicia a narração de outra história, menos candente, mas semelhante ao caso de Arnaldo. Dessa vez, conta sobre o romancista Osvaldo Alves, provavelmente um amigo do literato. A suposição decorre de uma inscrição que aparece entre parênteses no texto e que dizia que o romancista havia voltado ao Rio de Janeiro e que estava devendo um novo livro a seus leitores. Drummond age como se estivesse cobrando do colega a novidade literária – uma atitude que demonstra que os dois eram bastante íntimos.

Alves escrevera um conto que relata sobre
(...) um cidadão no ônibus, tão vidrado pela estupenda cabeleira de uma desconhecida que se levanta e vai afagá-la num ato de adoração. A moça estava acompanhada, o cidadão percebera isso porém não se importou com as conseqüências: o gesto valia bem umas bolachas, que de resto não foram aplicadas, seja porque a intenção de Osvaldo (perdão: do personagem) desarmasse os acompanhantes da senhorita, seja porque a capacidade física do personagem (senão do próprio Osvaldo) desaconselhasse a reação. Episódio bastante lírico e abonador para o rapaz do conto, mas não sei quantos anos o juiz daria a Osvaldo, fora do conto (ANDRADE, 1989, p. 126).

Ironicamente, Drummond denuncia Alves e revela que o conto assinado por ele era autobiográfico, ou seja, o personagem e o autor eram as mesmas pessoas. Fazendo uma relação com o caso de Arnaldo, Drummond reflete sobre como o juiz analisaria o afago de Osvaldo e que sentença ele teria recebido do magistrado: “Claro que expansões estéticas dessa ordem ficam sujeitas ao azar das interpretações; seus autores podem ser confundidos com tarados ou engraçadinhos” (ANDRADE, 1989, p. 126).

Drummond emenda um episódio no outro, como se uma história o fizesse lembrar de outra. Acreditamos que o escritor recorre a um processo associativo que é permitido à literatura e pode fazer com que o cronista se desprenda da sua cadeira na redação do jornal, “lançando-se quase a um movimento proustiano de rememoração involuntária” (BULHÕES, 2007, p. 58), como nesse trecho em que ele resgata de seu baú de memórias um sujeito que

(...) se gabava de dirigir sempre uma palavrinha doce a toda mulher que encontrasse no caminho. Tinha na roupa e no rosto sinais de amarrotamento, mas estava satisfeito com o método. - E qual a média de resultados favoráveis? perguntei-lhe.
- Oh! Muito boa: um e meio por cento.
Meio por cento - explicou eram casos de aparente receptividade, seguidos de repulsa ao tornar-se manifesta a ausência de sentimentalismo da iniciativa. “Mulher é tão romântico”, concluiu (ANDRADE, 1989, p. 126, grifo nosso).

A prosa de Drummond carrega traços da narrativa oral, pois ele escreve como se estivesse “proseando” com o leitor. Além de utilizar o travessão para indicar os diálogos, repete até mesmo uma frase com erros gramaticais; algo aceito na comunicação oral, mas repreendido na comunicação escrita, mais rígida com as normas da língua culta.

Em tom de conversa amistosa, o texto segue de forma não linear. O cronista passa repentinamente da história do galanteador para o caso de Arnaldo, voltando a debater sobre a sentença do juiz. Nesse momento, a preocupação do cronista é com o futuro do ladrão de beijos. O literato estava mesmo impressionado com a pena cruel e pensou na possibilidade de o moço se traumatizar e nunca mais repetir seu gesto. Por medo da repreensão, o rapaz corria o risco de ficar sem beijar ninguém, ainda que um alvará do juiz o autorizasse a fazê-lo. Nas palavras de Drummond, o rigor da punição “é um desestímulo total ao beijo, em si, coisa sem pecado, necessária ao equilíbrio psicossomático e, em conseqüência, ao equilíbrio social do País” (ANDRADE, 1989, p. 126).

Isso significava que se Arnaldo deixasse de praticar aquela expressão de afeto, outras pessoas seriam prejudicadas, pois permaneceriam sem ser beijadas. Aquilo era prejudicial para a qualidade de vida de todas as pessoas, uma vez que, aos poucos, o mau hábito se alastraria, atingindo toda a sociedade. O país ficaria mais triste, povoado de indivíduos carentes, devido à falta de manifestações carinhosas.

O cronista adota sua ironia fina costumeira para criticar os termos dispostos pelo magistrado: “nosso humano e sutil juiz Eliezer Rosa daria despacho mais sóbrio” (ANDRADE, 1989, p. 126). No entendimento do literato, o juiz não era humano. Primeiro, porque não havia entendido o comportamento de Arnaldo, seu semelhante, agindo como se não conhecesse o sentimento dos homens. Segundo, porque o juiz não estava se importando com as consequências que a pena acarretaria à raça humana. Parecia que aquele representante das leis era alguém de outra espécie. Tampouco o magistrado havia sido sutil, uma vez que não havia sido minucioso naquele julgamento. Como comentamos anteriormente, na opinião do cronista, Rosa aplicou uma pena indiscriminada, e não teria atuado com perícia no processo de acusação do criminoso incomum.

Todavia, Drummond era um ser humano “delicado” e não desejava acabar com o beijo. Ao contrário, era favorável e pretendia estimulá-lo. O cronista, se fosse magistrado, cumpriria a função de “juiz de paz” e, por isso, recomendaria uma pena alternativa para o autor dos beijos furtados:

(...) obrigaria Arnaldo a ajoelhar-se na Avenida Copacabana, às 5 da tarde, aos pés de cinco mulheres feias, e ofertar a cada uma delas uma rosa, no tom mais respeitoso possível; e abster-se de beijar sua própria namorada, se a tivesse, durante três meses (ANDRADE, 1989, p. 127)

A sentença idealizada por Drummond melhoraria a auto-estima daquelas moças desprovidas de aptidões físicas, que dificilmente sentiriam o gosto doce de serem surpreendidas numa tarde comum, com um gesto romântico. O cronista estabeleceu até o horário, no final da tarde, quando as ruas estão cheias, para que a ação fosse executada diante de um público expressivo. A outra parte do castigo serviria para que Arnaldo aprendesse a frear seus impulsos, tornando-se um homem inofensivo na presença de uma “obra de arte viva” – como se referiu Drummond na crônica aos brotos dotados de uma beleza fora do comum.

A operação que faria com que as cinco moças se sentissem cortejadas e o tempo de reclusão imposto a Arnaldo eram suficientes para que o rapaz compreendesse que “deve usar de cortesia máxima com as damas, principalmente quando se quer obter delas “o que deu para dar-se a natureza” (Camões, Lusíadas, Canto IX)” (ANDRADE, 1989, p. 127).

O cronista não escolheu a citação de Camões por acaso, apenas para ilustrar a ideia de que as mulheres devem ser tratadas com gentileza e bajulação. Os galanteios são vistos pelo cronista como o melhor caminho para se obter das damas reconhecimento e ou correspondência dos sentimentos.

O verso citado por Drummond corresponde à Ilha dos Amores, trecho de Os Lusíadas em que Vênus recompensa os heróis com belas ninfas. A concretização amorosa é uma das maiores conquistas dos lusíadas em toda a empreitada marítima. A Ilha, que corresponde aos cantos IX e X, representa o encontro do amor no paraíso, compreendido como momento de glória para os navegadores. O relacionamento entre as nereidas e os portugueses não representa uma orgia desmedida. Ao contrário, é a realização do amor, do desejo de amar e ser amado. Evidentemente há uma entrega aos prazeres da carne, mas é um prazer fruto do amor, que preenche a alma e purifica.

Assim como no poema de Camões, na crônica de Drummond, o amor, manifestado através do desejo, faz o mundo recuperar sua harmonia. As dificuldades das navegações, em Os Lusíadas, se aproximam das desavenças da vida moderna, no entendimento de Drummond. Desta forma, tanto na escrita do português quanto na crônica do brasileiro, encontramos uma mensagem final em comum: só o amor - mesmo que seja carnal e que dure apenas um instante – pode livrar o mundo da sorte do desconcerto.

E, para finalizar esse pensamento, Drummond encerra a crônica com uma frase em tom poético, que mostra uma manifestação plena de amor: “o melhor beijo é quando nenhuma das duas bocas o dá na outra: ele mesmo se dá nas duas, inevitável, alheio a uma ou duas vontades, superior a ambas, como um decreto divino” (ANDRADE, 1989, p. 127).

A narrativa drummondiana carrega consigo vários vestígios da estética literária: é nutrida de acasos, de variações, e as construções são sempre imprevistas, como no final do texto, em que o literato constrói uma imagem sobre o beijo. As palavras do cronista são “palatáveis” de tal modo que despertam sensações no leitor, que se sente estimulado a beijar.

Ao nos depararmos com a prosa drummondiana, pensamos no caráter catártico da literatura, capaz de transformar o leitor. O escritor nos faz ver o mundo com outros olhos, nos ensina a valorizar as manifestações de carinho, o lado poético do cotidiano, que geralmente classificamos como “banalidades”.

Sabemos que a função básica do jornalismo é informar a população sobre os acontecimentos mais relevantes do mundo todo. Mas não podemos ignorar que o campo jornalístico é limitado, e que nossa sociedade requer uma reflexão sobre esses acontecimentos, que influenciam nossa vida. Ouvimos no rádio, assistimos pela televisão e lemos nos jornais, na revistas e na internet, em tempo real, um grandioso número de notícias. Temos muita informação disponível, o que falta para o leitor é uma orientação, um explicação sobre aquilo que se esconde atrás dos fatos.

Certamente, diante de uma notícia curta, que relata a prisão de um homem que beijou uma mulher à força, muitos de nós não questionaríamos a pena do juiz, por olhar para apenas um lado da verdade e acreditar que o magistrado estava apenas fazendo o seu trabalho para zelar pelos bons costumes. Falta ao jornalista de ofício e a nós também, leitores de jornal, a capacidade de investigar a verdade íntima do ser humano, pois a objetividade e a imparcialidade do jornalismo nos acostumaram a lidar com as informações prontas. Sem receber argumentos dos meios de comunicação, estamos perdendo nossa capacidade de pensar sobre os acontecimentos. Ao contrário, o cronista tece seu texto de forma subjetiva, busca um sentido, uma explicação para o fato, dividindo com o público suas angústias sobre os acontecimentos que o cercam. Essa é a grande virtude da crônica: o desejo latente de falar - no sentido de debater - com o leitor. O próprio Drummond compreende que a crônica estabelece um “monodiólogo”, pois o cronista, na elaboração do seu texto, reflete sozinho, expondo suas ideias, mas se comporta como estivesse participando de uma conversa íntima com o interlocutor. Já as notícias funcionam como um monólogo, pois não reclamam a participação do outro, a interpretação dos fatos. Essa característica da crônica, de se importar com o destinatário, nos faz repensar nas teorizações feitas por Walter Benjamin no estudo em que ele discute a respeito do desaparecimento da figura do narrador. De acordo com o teórico, o surgimento das narrativas escritas privou os homens da faculdade de intercambiar o saber. Conforme Benjamin, a difusão do romance, viabilizada pela invenção da imprensa, culminou na morte da tradição oral. Ele explica que a arte de narrar está extinta e salienta que “basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo do que nunca” (1987, p. 197). De fato, temos que concordar com o intelectual que as formulações do discurso jornalístico, que já foram discutidas nos capítulos anteriores, colaboram para educação convencional que pode tornar o homem medíocre, uma vez que só caminham para a informação e não para a formação.

Todavia, em nossa linha de raciocínio, a crônica recupera a reciprocidade, o compromisso, a permuta de ideias entre o escritor e o leitor, pois não segue modelos pré-fabricados (como as regras rígidas do discurso jornalístico, isento de opinião) que empobrecem as experiências comunicáveis, como denuncia Benjamin. Tampouco a crônica se aproxima do romance, cuja escrita é feita por “um indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes” (BENJAMIN, 1987, 201).

A crônica possui a vantagem de estar nas páginas do jornal diariamente, fator que lhe possibilita uma comunicação imediata entre leitor e cronista. Ambos mantêm um contato constante, tanto que muitos textos de diversos autores são escritos como uma resposta às cartas dos leitores. Na crônica “O leitor e o lido” (Moça Deitada na Grama, 1987), Drummond demonstra que tem um contato íntimo com o leitor, pois conta que atende telefonemas de leitores que desejam sugerir ou discutir os assuntos publicados em sua coluna.

A crônica é um encontro permanente com o outro, é o único momento de intimidade entre redator e leitor dentro do jornalismo, que permite que um homem da imprensa coloque suas ideias com desembaraço, como percebemos no texto em que estamos analisando. O cronista não projeta a voz como o romancista, pois escreve com uma finalidade diferente. Ele dirige-se direto ao público, à glória fugaz dos jornais. Mais distante das arcádias literárias que os outros gêneros, a crônica ajuda a “estabelecer ou restabelecer uma dimensão das coisas e das pessoas”, como escreveu Antonio Candido no ensaio “A vida ao rés-do-chão” (1992).

De acordo com os ensinamentos de Benjamin sobre o narrador, podemos entender também que a crônica de Drummond é tecida de acordo com a natureza da verdadeira narrativa, pois demonstra uma “dimensão utilitária”. As frases finais, que projetam a imagem de um beijo apaixonado, podem ser lidas como um provérbio, por exemplo. Além disso, Drummond se aproxima do narrador nato, aos moldes de Benjamin, porque possui bom senso, como notamos quando ele propõe um castigo a Arnaldo que incentivasse o romantismo, ao invés de levar para a cadeia um cidadão inofensivo, enquanto criminosos de verdade estão soltos na rua.

Para Benjamin “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (1987, p. 200), considerando que aconselhar nem sempre é responder uma pergunta, mas dar continuidade a um episódio. Se o jornalista registra o fato, seu começo, meio e fim, o cronista cria uma verdadeira história, reconstruindo o real, construindo a identidade de seus personagens e imaginando um desfecho para o enredo baseado nos fatos apresentados na mídia. Em “A Dura sentença”, Drummond foi além e estabeleceu redes de intertextualidade entre a notícia e acontecimentos originários de outros suportes, vindos da literatura (como no conto de Osvaldo Alves) e das experiências pessoais.

A crônica não se detém no relato do caso de Arnaldo, pois a possível publicação da imprensa foi apenas um pretexto que motivou a elaboração do texto. Drummond muda o curso da narrativa para o beijo, pois o cronista possui um olhar que estranha o mundo, que vê o detalhe, aquilo que é aparentemente descartável. Por esse motivo é que Marcelo Coelho afirma que a crônica é uma espécie de avesso, de negativo da notícia. Se “o jornalista est preocupado em transmitir a informação, (...) na crônica o assunto é de menos” (2002, p. 156).

Drummond transforma o miúdo em grandeza quando minimiza o fato e prioriza o beijo, entendido por ele como uma expressão do afeto e do amor. E com uma boa dose de lirismo o cronista organiza o vácuo entre o útil e o fútil.

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Fonte:
GIOVANA CHIQUIM: “QUANDO A NOTÍCIA VIRA FATO LITERÁRIO: AS CRÔNICAS DE DRUMMOND INSPIRADAS NO JORNALISMO”. (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção ao título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon). Londrina, 2010.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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