A ética no Talmud


Por: Iba Mendes (2005)

Falar da moral do Talmud como algo isolado e independente, como alguma coisa que não tem relação com o passado e com o futuro, é um grande erro histórico. O Talmud, de um modo geral, não é algo inovador, nem tampouco uma nova doutrina. É, na verdade, um comentário da antiga Torá bíblica, que se amoldou aos novos tempos, à época em que foi escrito, segundo os novos conceitos e as novas circunstâncias, conforme as recentes exigências da vida: espiritual, social, política, econômica etc. Por ser uma nova exegese da Bíblia, não é, logicamente, a mesma coisa que a Bíblia; porém, também não é algo isolado e independente dela. Representa uma fase singular na evolução histórica, um fator determinante no desenvolvimento do povo judeu.

O mesmo se dá com a moral talmúdica. Tal qual o próprio Talmud, ela não deve ser considerada como algo isolado e independente, mas como uma evolução da própria moral bíblica. Esta moral remonta aos tempos mais antigos da história judaica, e suas marcas podem ser percebidas até mesmo nos trechos mais arcaicos da Bíblia. E, não obstante as mudanças operadas ao longo dos tempos, os valores do povo judeu, na sua essência, continuam firmados na a mesma base talmúdica.

Na própria Bíblia é possível perceber algumas modificações no que concerne aos valores morais dos judeus. Tomando como exemplo a guerra, nota-se que, durante o tempo que estes se encontravam em um estágio inicial de sua cultura, suas guerras eram selvagens e bárbaras. Este era seu lema: “Não deixarás nada com vida”. Alguns séculos mais tarde, entretanto, quando o povo judeu havia alcançado um outro nível de cultura e espiritual, na época em que eram influenciados pelos ensinamentos humanitários dos profetas, mudaram nitidamente seus conceitos. Por exemplo, antes de ir guerrear, eram eles orientados a incitar os inimigos para que aceitassem a paz. Quando se sitiava uma cidade, não era permitido destruir as árvores frutíferas. Somente devia participar das batalhas os voluntários, e unicamente aqueles que não tivessem corações fracos e que não fossem tímidos. Ainda sobre a guerra, os talmudistas notaram uma mudança fundamental operada na Torá, muito embora não aceitaram o fato de que esta mudança ocorresse também na esfera histórico-cultural, uma vez que todas as partes da Torá haviam sido outorgadas igualmente por Deus. Trataram então de resolver a questão estabelecendo uma diferença entre a “guerra santa” (isto é, a guerra ordenada por Deus) e a “guerra voluntária” (ou seja, a guerra decretada pela própria vontade do homem). A guerra contra os sete povos que habitavam a Palestina era uma “guerra santa”, porque Deus a havia ordenado, mandando que eles fossem exterminados. As demais guerras deixaram de ser santas, e por isso não seguiram as regras da lei.

A moral judaica, consequentemente, tem passado por diferentes categorias evolutivas. A moral talmúdica é a moral judaica de uma determinada época histórica, ligada diretamente com a que precedeu e que, por sua vez, liga-se a que se segue.

É fato conhecido que a Bíblia não se ocupa de questões puramente especulativas. Não pondera sobre a essência de Deus, sim sobre sua natureza; da mesma forma, não trata da imortalidade da alma humana nem de uma vida após a morte. Sobre isso tem havido inúmeros comentários, explicações e hipóteses. Alguns afirmam que os hebreus daquela época estavam poucos desenvolvidos para se envolverem com assuntos filosóficos, estando, portanto, desinteressados dos grandes problemas do mundo. Seu mundo era reduzido; seus conceitos, limitados; e seu Deus era local, nacional, agindo com exclusividade no meio de seu povo. Outras nações e outros povos possuíam aos seus modos, seus próprios deuses.

Até certo ponto, isto tem algo de verdadeiro, especificamente no que diz respeito ao estado primitivo em que eles viviam e na concepção limitada que tinham de Deus. Nesse aspecto pouco se diferenciavam dos demais povos. Resquícios desta limitação da concepção de Deus podem ser encontrados em inúmeras passagens dos textos mais antigos da Bíblia. Todavia, já no livro de Deuteronômio, provavelmente por idéias especulativas, o conceito de Deus se torna elevado e delicado. O Deus de Deuteronômio já não é o Deus local e nacional, sim o Deus único de todo o universo, o Deus de todos os povos, o Deus do céu e da terra e de tudo o que há dentro deles: “Não há outro Deus além dele”.

O Deus de Deuteronômio não é somente único, mas também incorpóreo, que não pode ser representado mediante imagens: “Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Dt. 5:8). É evidente que tamanha concepção de Deus somente é possível através de idéias especulativas. É bem verdade que o autor não se dá ao trabalho de fundamentar sua concepção filosófica do mundo, não a discute, nem se empenha em demonstrá-la por intermédio de conclusões lógicas; não nos revela o processo ideológico pelo qual chega a essas conclusões; contudo, isso parece até óbvio uma vez que não escreve um tratado filosófico, mas uma ética prática, uma Torá prática. Para uma ética prática não é relevante a representação abstrata de Deus como conceito filosófico, sim sua representação com um ser essencialmente ético, como um Deus de justiça, Deus de misericórdia, Deus de amor. Deus, como concepção filosófica, ocupa um lugar secundário. A Torá como tal não mantém nenhuma relação com a concepção filosófica, embora não a exclua completamente. Neste sentido é possível afirmar que Deus é a fonte da ética judaica. Este é o motivo pelo qual o judaísmo muito mais tarde, através de Maimônides e outros, tentaram converter o judaísmo num sistema filosófico em vez de um sistema ético.

Deus é um ser ético, e por isso que a Bíblia está sempre contra quem não se ajusta ao divino princípio ético: “Justo serias, ó Senhor, ainda que eu entrasse contigo num pleito; contudo falarei contigo dos teus juízos. Por que prospera o caminho dos ímpios, e vivem em paz todos os que procedem aleivosamente?” (Jr. 12:1). / “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a opressão não podes contemplar. Por que olhas para os que procedem aleivosamente, e te calas quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele?” (Hc. 1:13). / “O homem, nascido da mulher, é de poucos dias e farto de inquietação. Sai como a flor, e murcha; foge também como a sombra, e não permanece. E sobre este tal abres os teus olhos, e a mim me fazes entrar no juízo contigo... Se pequei, que te farei, ó Guarda dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim mesmo me seja pesado? E por que não perdoas a minha transgressão, e não tiras a minha iniqüidade? Porque agora me deitarei no pó, e de madrugada me buscarás, e não existirei mais” (Jó 14:1-3; 7:20, 21). Todo o livro de Jó está repleto de queixas contra aqueles que não seguem os princípios éticos. A mesma coisa faz o pessimista autor de Eclesiastes: “Depois voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos que não têm consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles não tinham consolador. Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro; e todos têm o mesmo fôlego, e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade. Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó” (Ec. 4:1; 3:19, 20).

Deus é um ser ético. É, portanto, o “alfa e o ômega” da ética judaica. A finalidade primordial do homem consiste em imitar a esse Deus, bem como em andar nos seus caminhos: “Santos sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv. 19:2).

No Talmud esta idéia se desenvolve de um modo muito mais enfático e vigoroso. Este, da mesma forma que a Bíblia, ocupa-se relativamente pouco de questões especulativas. Isto não significa, entretanto, que os talmudistas as ignorassem. Em várias partes do Talmud é possível perceber com nitidez que eles conheciam perfeitamente a filosofia grega. A filosofia de Platão, por exemplo, é percebida em muitos de seus ensinamentos e nas Hagadot. A afirmação de Shimlai de que a criança, antes de nascer, vê de um extremo do universo ao outro e que este não esquece o instante do nascimento, e que o homem vai recordando pouco a pouco o que sabia anteriormente, remete à doutrina platônica de que nosso conhecimento é aquilo de que a nossa alma já sabia antes, no momento em que se encontrava no mundo celestial. A expressão talmúdica: “O alicate (pinça) tem sido feito conforme o alicate (pinça) primitivo” relembra a doutrina platônica sobre o mundo das idéias. Ademais, o Talmud trata de assuntos relacionados a certas doutrinas secretas, mais especificamente no que se relaciona à cosmogonia e à teogonia. Os talmudistas não proíbem o aprendizado destas doutrinas esotéricas; apenas aconselham que se tome o devido cuidado com elas. Não se deve estudá-las abertamente, mas sozinho e em segredo, e apenas os que estão aptos a não abandonar o caminho reto, àqueles para os quais a concepção filosófica de Deus não lhes acarretará nenhuma conflito ou contradição no que diz respeito aos conceitos éticos. Não apenas os filósofos judeus da Idade Média, por exemplo, Maimônides, sustentavam que os gregos aprenderam suas filosofias com os judeus. O mesmo afirmaram os antigos filósofos judeus da escola alexandrina. Esta afirmação carece naturalmente de todo o fundamento, porém, ela evidencia de todas as formas que os estudos filosóficos não eram estranhos aos judeus, mesmo antes da era cristã, e que muitos israelitas até os consideravam como um assunto puramente judaico.

Os talmudistas conheciam a filosofia, porém esta carece de valor para a ética prática. Desta forma, o Talmud não se ocupa delas. Interessava aos talmudistas muito mais o aspecto ético da natureza de Deus. A questão de: “Para o justo segue o mal e para o malvado segue o bem” era para eles muito mais importante. No entanto, não há neles tanta amargura como se observa na Bíblia, no que concerne a injustiça no mundo, pois para eles há solução para este problema: sabiam de uma vida posterior à morte e de uma recompensa após ela; sabiam também de um castigo no mundo além-túmulo.

Deus é um ser ético. Isto é o essencial. O objetivo do homem consiste, primordialmente, em ser também um ser ético. Deve imitar a Deus e orientar-se por seus caminhos: “Como eu sou misericordioso, assim também sereis misericordiosos; como sou clemente, assim hás de ser clemente tu”. Deus é bondoso até mesmo com aqueles que não são dignos da bondade. Por ser ele assim, deve o homem imitá-lo. Até na sua ira, Deus é longânimo, por isso deve ser também o homem. Deus é pura verdade, e o homem, por sua vez, deve ser sincero. Deus é justo, por isso o homem deve ser também. Aquele que decreta uma sentença de justiça, converte-se em colaborador de Deus na criação do universo.

Deus criou o mundo para o homem. Este é o propósito e o ponto central de toda a criação. “Por isso todo o homem deve sentir-se como se o mundo fosse criado especialmente para ele” e “aquele que sustenta uma só pessoa, é a mesma coisa que sustentar o mundo inteiro”. Nenhum indivíduo possui uma categoria superior a de outro: “Meu sangue não é mais vermelho do que o de outro”. O homem foi criado sozinho, a fim de que nada se engrandecesse à sua frente. A criação do mundo é uma expressão da natureza ética de Deus e encerra uma finalidade ética, uma intenção ética.

Deus faz o bem pelo bem, porque esta é a sua natureza. Não teve ele objetivos na criação; esta é uma projeção de sua natureza ética, de sua bondade e compaixão. E do mesmo modo que Deus não espera nenhuma recompensa pelas boas obras que pratica: “Não sejais como os escravos que servem a seu senhor pelo salário”. O homem deve fazer o bem por amor ao bem e não por um mero galardão: “Tudo que fizerdes, fazei por amor. O que age por amor é superior ao que procede por temor”. “O prêmio por uma boa obra é a mesma boa obra; o castigo de uma ação maléfica é a mesma ação maléfica”. “É preferível uma hora de arrependimento, a uma vida futura no mundo além-terra”. A boa ação constitui por si mesma sua recompensa; a ação perversa é por si só o próprio castigo. Isto não significa, contudo, que o homem não receba sua recompensa pelo bem praticado, ou que não seja castigado por um mal que fez. Isto apenas quer dizer que os motivos que o induz ao bem, devem ser puros, desprovidos de qualquer finalidade egoísta.

O Homem possui o livre arbítrio. A escolha está em suas próprias mãos. Pode fazer o bem e pode realizar o mal: “Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt. 30:19). Partindo do princípio de que Deus é um ser ético, faz-se mister realçar a idéia de que o homem é portador do livre arbítrio. Se o homem não pode escolher seu próprio caminho, se não é senhor de si mesmo, se tudo o que faz é por obrigação é está traçado por antecipação, neste caso ele nada mais é do que um autômato e toda a ética necessita de fundamento. Seu comportamento, bem ou mal, seria em tal caso inteiramente independente dele. Isso quer dizer então que não é o homem quem faz ou deixa de fazer determinadas coisas, mas que estes atos se realizam e deixam realizar-se dentro e por intermédio dele. O judaísmo, de forma rígida, tomando como base o fato de Deus ser essencialmente ético, prega claramente o livre arbítrio humano. E o Talmud se apega fortemente a esta doutrina bíblica, mesmo quando nota a contradição que existe entre a consciência de Deus e o livre arbítrio do homem. “Tudo está nas mãos de Deus, exceto a devoção”.

A conduta de Deus no que concerne ao homem é a de um pai em relação ao filho. Os homens devem amar a Deus como os próprios filhos amam seus pais. Mas, em que consiste o amor de Deus? Em imitar seus atos. Ela ama e se compadece de todos; assim também deve o homem amar a se apiedar de todos. A paternidade de Deus não significa outra coisa senão a fraternidade entre os homens, os quais devem se amar como se fossem filhos de um mesmo pai. “E amarás a teu próximo como a te mesmo”, eis o grande princípio da Torá. “O que para ti não é bom, não o queira para teu próximo, eis aqui toda a Torá. O resto é apenas um comentário”.

É impossível mencionar sequer uma pequena parte de todas as máximas e pensamentos éticos que estão registrados no Talmud. Poderia formar-se livros inteiros com eles. O que propôs aqui foi abordar alguns pontos básicos da ética talmúdica, fazendo uso das citações como ilustração. O que há, além disso, expressa-se na mesma linha: Deus é um ser ético, o universo é um fenômeno ético que tem no centro o homem, o qual, por isso mesmo, deve buscar com todas as suas forças o máximo do aperfeiçoamento ético.

Ao falar de Deus como um ser ético deve entender-se por isso o seguinte: Deus exige do homem que proceda com bondade e que seja justo, não por um mero capricho de Deus, sim porque a bondade e a justiça são a essência do seu ser, são uma conseqüência inevitável de sua natureza. Uma coisa não é boa o mal porque Deus tenha assim feito ou deixado de fazer. Um feito é ético não porque Deus o queira, mas porque ele é ético. Deus, em sua essência, é generoso e justo, e como conseqüência disto, exige que o homem preceda com retidão e justiça. Eis a ética do Talmud.

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BIBLIOGRAFIA
1. Almeida, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo, 1995;
2. Guinzburg, Iser. El Talmud. Biblioteca de Autores Judios, Buenos Aires, 1937;
3. Levinas, Emamnuel. Novas Interpretações Talmúdicas. Tradução de Marcos de Castro. Editora Civilização Brasileiro, Rio de Janeiro, 2002;
4. Levinas, Emmannuel. Do Sagrado ao Santo. Tradução de Marcos de Castro. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001.

NOTA:
Este texto pode ser reproduzido e utilizado livremente, desde que citada a fonte e o autor.

Um comentário:

  1. Por que esse Darwin não e estudado também em Israel? Os Nazistas judeus se acham "o povo eleito" por Deus e não descendendente de macacos de Darwin! Só os Babacas estudam esse Darwin!

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