O escritor menos a obra

O ESCRITOR MENOS A OBRA
A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Carlos Drummond de Andrade

Da obsessão autobiográfica do poeta mineiro passo às pretensões biográficas desta tese e de seus “problemas existenciais” passo aos problemas teóricos deste estudo. Pois reencontro, aqui, dobrada na superfície dessa obra, a minha própria obsessão: um desejo de biografia. Deparo-me, no entanto, com duas ordens de questões, distintas, mas imbricadas.

Como estabelecer uma linha transversal capaz de atravessar as demandas de uma tese de doutoramento, regida pelas normas da pesquisa e do trabalho científico, e o desejo de um ensaio biográfico? Não seria preciso, antes, refletir sobre o próprio estatuto da crítica literária, de modo a problematizar os protocolos de leitura que defendem a disjunção entre sujeito e objeto, saber científico e saber narrativo, teoria e ficção, texto literário e texto crítico?

Qual seria o caminho para se realizar um estudo biográfico acerca de um escritor cuja escrita já se pauta por uma incessante busca identitária e biográfica? Como abordar esse sujeito que reserva em sua obra um valor prioritário à investigação crítica de si mesmo? Esse homem que parece atravessado por um desejo insistente, mas sempre diverso, de se auto-retratar? Esse desejo presente de um ponto a outro de seu trajeto artístico e intelectual, o qual percorre das primeiras às últimas décadas do século 20?

Sou, então, impelido a um desvio necessário. O estudo biográfico é deslocado, revirado, convertido em trabalho acadêmico. Empreender uma leitura multidirecionada das linhas de forças estéticas e políticas que atravessam a genealogia-de-si empreendida por Drummond tornou-se o meu propósito. O que está em causa é a história de uma experiência subjetiva singular: a trajetória literária e intelectual de Drummond, em sua experiência histórica do moderno. Intento averiguá-la seguindo as trilhas da procura ontológica do sujeito da escrita, entretecida como fábula de si mesmo. Parto da hipótese de que seu complexo processo de subjetivação, assentado na travessia de tempos e espaços, na migração do antigo para o novo, da periferia para o centro, apresenta um complexo roteiro de territórios e limiares pelos quais se configuram as práticas discursivas da modernidade cultural brasileira. Trata-se, portanto, da genealogia de uma genealogia.

Embora inclinado à trama autobiográfica do poeta, o estudo que aqui se anuncia não visa a uma abordagem biográfica tradicional, moldada em procedimentos historicistas e/ou deterministas que procuram explicar a obra a partir da vida do autor. Não realizo aqui uma catalogação cronológica e exaustiva dos acontecimentos particulares ou coletivos que compõem a vivência histórica de Drummond. Suas aventuras e desventuras, os pequenos hábitos, os vícios, acidentes e acasos que o individualizam não seriam as causas profundas, nem as verdades externas de seu trabalho, como sugere o imaginário criado em torno das biografias. Não há segredos escondidos detrás de seus escritos, de modo a lhes conferir autenticidade ou justificativa comprobatória, nem tampouco um sentido prévio ou uma origem ainda anterior ao sentido para se descobrir. Reunidos sob um princípio de causalidade e dispostos em uma linha temporal, todos esses elementos de cunho biográfico podem até recompor a história de uma vida ou de uma obra, mas não o vivido encenado na escrita. O que está no fundo do armário ou do arquivo drummondiano, nos desvãos de seus textos, são, antes, os percalços da experiência autoral, as impressões deixadas pelo escritor em sua empreitada, do que os mundos secretos e insuspeitados de sua intimidade.

Ademais, essas experiências culturais e cotidianas do poeta, os episódios de sua vida particular, de sua “vida improdutiva”, como diria Roland Barthes, estão também inseridos na cena de escrita, visto que gozam, como a própria obra, de um estatuto ficcional. Não há nesse processo uma dimensão propriamente extra-textual: a vida pode ser lida como um texto, isto é, as experiências autorais são entendidas como “representações do vivido”, apresentando-se, portanto, como material suplementar de leitura aos textos reconhecidamente literários. Diante dessa perspectiva, em que a bio e a grafia têm o mesmo estatuto, o conjunto de acontecimentos particulares ou gerais, históricos ou existenciais, vividos por Drummond, são tanto causa quanto efeito de sua escrita. O personagem do autor está inserido no jogo de trocas que ligou sua vida à sua criação. Literatura, vida e história aparecem, assim, sobrepostas.

Onde, então, fazer passar a linha do limite? O limite entre a obra e seu autor? Como entrever a história de um sujeito e de sua obra se no processo autoral eles correm sobre o mesmo e indiferenciado plano? Onde começa, onde termina uma poesia que “elide sujeito e objeto”? Como chegar, então, até à identidade estética e política do escritor, se “o verso cristalino / é o que se faz sem poeta”? Para onde dirigir o olhar, se é o autor que parece nascer com o texto e não o contrário? Seria possível seguir os passos de alguém cuja presença já não está garantida?

Entendo que a história de um escritor e de sua obra não pode ser apreendida senão como uma experiência de escrita – a experiência incansável de um devir, de um vir-a-ser. Em uma “vida literária”, o que realmente interessa é o que advém com a escrita, o que está sempre em via de se fazer, o que começa e termina sempre pelo meio, o que está sempre “entre”. O que importa não é o ponto de partida ou o de chegada, a origem ou o pressuposto, mas sim as migrações, o ziguezague, a linha quebrada, o entremeado de caminhos reais e imaginários que, realizados com ou sob a escrita, ordenam e desordenam territórios interiores e exteriores.

A perspectiva teórica que orienta meu estudo volta-se justamente para as tensões que se situam entre o “social” e o “literário”, entre o sujeito histórico e o sujeito da escrita, em suma, entre o corpo e a letra. Entre a escrita literária e o corpo que ela prolonga, anima, traçando-lhe novas significações, novos rumos, terrritorializando-o; mas também desterritorializando-o, deformando-o, a fim de seguir seu caminho órfão e errante de escrita que se separa do corpo-pai para assim revelar-lhe as lacunas e os paradoxos.

O estudo baseia-se, portanto, em uma historicidade descontínua, mais afeito à multiplicidade que à continuidade, mais atento aos descaminhos da escrita que à maturação do artista. Seu intuito não é decifrar linhagens familiares, estabelecer origens ou fins, precisar fontes, influências e heranças literárias, mas pensar estratégias de leitura capazes de abordar uma poesia pautada por distintas temporalidades, por vários passados e presentes; uma escrita na qual o barroco, o clássico e o moderno, o colonial e o pós-colonial, colocam-se como movimentos entre-tecidos, entrecruzam-se e se justapõem na superfície da escrita, mas não sem provocarem defasagens ou deslocamentos mútuos.

Nesse caminho teórico, renuncio de antemão ao canto da sereia, provindo de uma narrativa totalizadora e ininterrupta, que deseja agrupar as diversas séries discursivas a partir de uma lei de coesão. A meta traçada consiste em investigar como se operam as passagens, as transformações estéticas, políticas e subjetivas da existência literária do poeta, abandonando os nexos causais que aspiram a uma totalidade. Afinal, o pensamento de um escritor não evolui progressivamente, mas procede por crises, cortes e fluxos elaborados nos agenciamentos culturais. Assemelha-se mais “a uma cadeia vulcânica do que a um sistema tranqüilo e próximo do equilíbrio”, sobretudo o pensamento de Drummond, que parecia obedecer a movimentos descontínuos, com suas guinadas surpreendentes, como, por exemplo, as ocorridas na passagem de Brejo das almas para Sentimento do mundo ou na de A rosa do povo para Claro enigma.

O que proponho aqui é uma espécie de biografia teórica, na verdade, uma quase biografia, ou mesmo, a biografia de uma obra e de seu pensamento, a qual, assentada na transdisciplinaridade e na diluição das fronteiras entre o ficcional e o factual, procura avaliar as condições de possibilidade e os significados dessa obstinada inquirição de si com a qual o sujeito drummondiano abre-se ao mundo moderno. Não se trata, portanto, de reconstituir uma individualidade, mas de demonstrar os agenciamentos discursivos que a tornaram possível. Não se trata de perguntar o que um poema ou um livro quer dizer, a partir de um código de aferição que é sempre contingente e, por isso, limitado, mas sim de investigar quais eram as suas condições de enunciação, quais eram os desejos e os agenciamentos discursivos que o atravessam, quais as conexões políticas, estéticas e subjetivas que foram por ele deflagradas. Enfim, estudar quais seriam os mapas culturais traçados com sua escrita.

Nessa empreitada, dirigi-me aos arquivos, a fim de examinar o que Jacques Derrida nomeou como as impressões do autor. Ao longo da pesquisa, realizei um levantamento documental no acervo pessoal do poeta itabirano, alocado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, assim como em jornais e revistas dos anos de 1920, nos quais pude encontrar seus primeiros poemas e artigos. Reuni, assim, bilhetes, cartas, anotações, recortes de jornais, crônicas, resenhas críticas, entrevistas e manuscritos relativos à produção literária e/ou intelectual do poeta, que formam um volumoso e interessante material textual, quase todo ele inédito.

A partir desse corpus, ensaio uma leitura assentada na junção de elementos ficcionais, teóricos e biográficos, sobrepondo os considerados textos “menores” aqueles propriamente literários, estabelecidos em sua obra completa. O que me interessa é justamente o contato e a fruição de sua extensa e diversificada produção literária e cultural. A dimensão fragmentada e parcial dos acervos literários, com seus pequenos relatos, seus registros enganosos, seus silêncios e vazios revelam-se particularmente interessantes para a reconstrução das subjetividades que neles atuaram. A esse respeito, considero, junto com Blanchot, que o escritor nunca sabe se sua obra está ou não realizada, o que ele terminou em um livro será retomado ou destruído em outro, como se elaborasse um único e mesmo texto – ainda que composto por vários títulos – sempre inacabado e permanentemente re-escrito, mesmo quando se trata de diferentes gêneros. Tomo, então, a obra drummondiana, seja ela em prosa, seja em verso, crônicas ou contos, textos publicados ou inéditos, anotações particulares ou correspondências como uma única e rizomática teia textual.

Esse procedimento de leitura revela-se tanto mais fecundo em Drummond quanto mais se nota o jogo de repetição e diferença por ele armado. Como bem observou Silviano Santiago, valendo-se da metáfora de Brás Cubas, – a “teoria das edições humanas” – a poesia drummondiana revela-se uma espécie de “errata pensante”, sempre por fazer-se, repetindo-se em diferença, como se buscasse incansavelmente sua melhor “edição”. Com efeito, em Drummond, “toda forma / nasce uma segunda vez e torna / infinitamente a nascer.”

Em esclarecimento final, procurei abordar o ato literário drummondiano – sua prática, destinação e articulações – sob a vigência de sua busca ontológica e filosófica, no âmbito de sua identidade moderna. Nesse sentido, vale ainda dizer que evito enquadrar-lhe em uma teoria ou em uma corrente filosófica, definidas de antemão como parâmetro hermenêutico, como se sua poesia apenas comprovasse conceitos que lhe são externos. A proposta é analisar os significados do pensamento filosófico do escritor mineiro em sua interpelação discursiva das configurações modernas que lhe coube experimentar. Não obstante, tomo como referencial teórico os trabalhos de Michel Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze – escolha que se deve não apenas ao valor e à contemporaneidade dos conceitos e operadores por eles formulados, mas também pelo lugar determinante que reservaram à literatura ao formulá-los.

Esta tese desenvolve-se, portanto, nas fronteiras da literatura com a história e a filosofia. É desse lugar liminar que me volto à obsessão autobiográfica drummondiana, à sua genealogia, a seu nome escrito com “tinta de fantasma”, a fim de relacionar teoricamente as noções de sujeito, escrita e cultura.

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Fonte:
Roberto Alexandre Do Carmo Said:“QUASE BIOGRAFIA: poesia e pensamento em Drummond”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras – Literatura Comparada. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural. Orientador: Prof. Dr. Wander Melo Miranda). Belo Horizonte, 2007.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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