O melhor papel de Voltaire
De maneira geral, a crítica vê com desconfiança autores que emprestaram sua pena à determinada causa. Presume-se que tal escritor sacrificaria a estética a fim de propiciar maior penetração de seus textos. Estudos célebres já questionaram a questão do autor que de um lado sente-se chamado à participação, de outro preocupa-se em não fazer concessões ao gosto do público.
Muito se escreveu sobre a legibilidade da obra de Voltaire. O ensaísta e historiador da literatura Otto Maria Carpeaux, por exemplo, reconheceu seu estilo “claro, irônico e seco”, mas criticou-o pela ausência de profundidade e de emoção íntima. Parafraseando Faguet, sustentou que a obra do filósofo francês consiste em um “cosmos de idéias obscuras”.
Roland Barthes, por seu turno, deprecia a filosofia do compatriota julgando-a fora de moda e a discussão sobre a Providência, ultrapassada, além de afirmar que muitos de seus inimigos – como jansenistas, socinianos e leibnizinianos desapareceram.
Após lembrar os seis milhões de judeus mortos entre 1939 e 1945, Barthes comenta a proporcionalidade entre a “leveza da arma voltairiana” e as escassas condenações à morte provocadas por crimes religiosos. Ora, o ensaísta desconsidera, a nosso ver, a justificação ideológica que legitimou décadas de perseguições no Antigo Regime – se nos limitarmos ao interregno que separa a revogação do édito de Nantes (1685) ao édito de Tolerância (1787). De fato, Barthes subestima a luta travada por Voltaire contra uma mentalidade ancorada na crença do poder divino dos Reis e avessa a qualquer permeabilidade social – como nos testemunha, aliás, a própria biografia do escritor.
Embora vise a relativizar o papel do patriarca de Ferney como intelectual, o autor de Le plaisir du texte desvenda-nos uma das facetas mais brilhantes da tática voltairiana : a versatilidade que facilitou a grande penetração de seus escritos. Os “petits rogatons, pâtés portatifs, fusées volantes” citados por Barthes, são, na luta pela reabilitação de Jean Calas, as Pièces originales , a “Histoire d´Élisabeth Canning et dês Calas” , a bela carta circular de 1º de março de 1765 destinada à publicação e as inúmeras missivas aos amigos e possíveis simpatizantes da causa que abraçara. Nesses textos, ora o pathos, as referências bíblicas e os exemplos históricos, ora o gosto pelo jogo, pelos disfarces e pelas meias-palavras atraem o leitor ao debate por meio de um estilo leve, agradável e fluido, sem, obviamente, abrir mão da densidade.
É possível divisar uma mudança de perspectiva em relação ao autor que, em 1759, concluía um conto com a frase: “Il faut cultiver notre jardin”. Em Candide, nota- se certo conformismo. Seria inútil a ação para tornar nosso “globule” um pouco melhor, tal o absurdo dos acontecimentos que nos rodeiam. As palavras do discípulo de Pangloss sugerem que o trabalho e a vida apartada do mundo nos auxiliariam a evitar o sofrimento. Esse desencanto do filósofo parece, aos poucos, ceder espaço a uma atitude mais positiva. Não se trata de mudança radical na forma de enxergar o mundo, o pessimismo continua presente em seus escritos. Constata-se, porém, uma alteração sensível em sua conduta.
Em carta já citada de junho de 1763, o filósofo comenta seu desempenho como ator nas tragédias para entretenimento dos genebrinos. Seu papel mais importante, porém, e para o qual se sentia chamado, era o de autor. A propósito, a idéia de seguir um “destino” ganha vigor ao longo dos anos em que se dedicou ao affaire Calas.
Graças a esse processo, Voltaire, provocador e iconoclasta, passou a ser reconhecido em toda a Europa também como defensor dos direitos do homem contra a tirania.
Se as instituições francesas se mostravam frágeis e incapazes de impor o respeito à lei e impedir injustiças, um escritor repararia o erro. Não por acaso, Paul Valéry, em discurso na Sorbonne em 1944, por ocasião do 250º aniversário do nascimento do filósofo, salientou que Voltaire talvez não fosse lembrado se tivesse morrido aos sessenta anos. A despeito do exagero dessa afirmação, ela destaca a relevância do affaire Calas na história do pensamento do século XVIII e na carreira do filósofo poeta. Dessa forma, no período sobre o qual nos debruçamos, verificam-se não apenas mudanças no estilo ou na escolha dos gêneros por parte do escritor, mas uma revisão do seu papel como homem de letras. Assumir a liderança na defesa do infeliz comerciante tolosano impunha-se como um dever, uma “missão” que cabia a ele, enquanto indivíduo conhecido, respeitado e temido por sua obra.
Para tanto, nosso autor se vale não apenas de um conhecimento profundo de elementos bíblicos e retóricos, conforme mostramos, mas também de uma verdadeira busca de encenação de tal saber, numa mise-en-scène que se caracteriza pelo uso de formas variadas em que se sobressai a multiplicidade de “gêneros” do Traité, assim como a utilização de cartas e bilhetes, em que se mesclam atitudes de convencimento, agradecimento e “cooptação”.
É aí que o lastro artístico conta, pois Voltaire sabe, como poucos, fazer do arsenal retórico e da tradição literária uma somatória de elementos que cativam e emocionam, convencem e impressionam qualquer leitor. A verdadeira sarabanda de “estilos” do Traité se apresenta como arma do diretor de cena que, variando o tom discursivo, enfatiza certos dados e os coloca a seu bel-prazer. De par com o filósofo preocupado com a praxis, com o “aqui e agora”, temos o leitor atento dos clássicos, o antigo aluno dos jesuítas, o hábil “causeur” das cortes, o destemido polemista que se vale, a todo momento, da variedade para apresentar sob diferentes ângulos sua visão de um mundo novo que deveria se anunciar como o da tolerância, uma das bases da convivência democrática.
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Fonte:
Ana Luiza Reis Bedê: “Estratégia de uma mise-en-scène: Correspondência (1762-1765) e Traité sur la toléance (1763) de Voltaire”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Francesa do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor
Nota:
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