Sêneca e o Estoicismo



SÊNECA E O ESTOICISMO

Certamente não pretendo traçar aqui um minucioso panorama histórico do estoicismo, mas tão somente registrar as feições gerais dessa escola filosófica, cuja presença se fez notadamente marcante na latinidade. O estoicismo em Roma teve em Cícero e Sêneca os seus mais célebres divulgadores; na verdade, é possível supor que o conhecimento que temos do estoicismo grego só foi possível através dos latinos, dada a continuidade que estes deram à escola de Zenão de Cício. A filosofia estoica apresenta algumas semelhanças com ideias cristãs, daí a apropriação pela cultura eclesiástica durante a Idade Média, das ideias de Sêneca, visto sobretudo como um grande “moralista”. Se bem que Sêneca nunca se privou de fazer críticas, muitas vezes mordazes, às práticas religiosas de sua época, frequentemente manifestando ceticismo e ironia em face daquilo que considerava mera superstição. Sêneca tampouco se importou de ser acusado de incoerência, pois ele mesmo assumia que não era rigorosamente um estoico, mas sim um pensador predominantemente estoico. Eis o que diz o filósofo: “Eu não me prendo a nenhum dos mestres estoicos: eu, também, tenho o direito de dar a minha opinião. Por isso, seguirei este ou aquele; a um outro, pedirei que desdobre a sua proposição, e quando, depois de todos, eu for chamado, talvez não rejeite nenhuma das opiniões antes de mim apresentadas e direi: ‘Além disso, eis o que penso’. De resto, de acordo com todos os estoicos, atenho-me à natureza das coisas; a sabedoria está em não se afastar dela e pautar-se por sua lei e seu exemplo”. Christopher Gill traz à tona essa questão do estoicismo em Roma, afirmando que “segundo uma visão estereotipada, o estoicismo foi filosoficamente pouco criativo durante o império romano. A ‘escola’ tinha um estatuto institucional mal definido e havia certa dose de ecletismo e de fusão de diferentes filosofias (...) A exemplo do que ocorre com todos os estereótipos, também esse contém um elemento de verdade, mas obscurece aspectos importantes, como o estoicismo ter permanecido força filosófica atuante pelo menos durante os dois primeiros séculos da era cristã.” De fato, esse estereótipo é parcialmente reproduzido no texto de Jean Brun, segundo o qual “é necessário dizer que o estoicismo de Sêneca é indulgente, insípido e que se presta a muitas concessões. Sêneca sobressai como escritor quando esboça um retrato psicológico ou descreve a loucura humana; mas o homem, ele próprio, é mais inquietante que a obra propriamente dita.”

No primeiro capítulo deste trabalho foram contrastados os contextos históricos das tragédias gregas e romanas, separadas por um grande vão histórico-cultural, temporal e mesmo geográfico. No tocante à filosofia estoica, é preciso ter uma cautela similar: o estoicismo foi uma doutrina filosófica surgida em Atenas, no séc. IV a. C., conforme já mencionado em nota anteriormente, criada por Zenão de Cício e desenvolvida por Cleanto e Crisipo, tendo sido introduzida em Roma somente no século II a. C., por obra de Blóssio, Diógenes da Babilônia e Panécio. Mais de três séculos, portanto, separam o pensamento de Zenão e de Sêneca. Pode-se dizer que o estoicismo manteve-se mais ou menos coeso durante todo esse tempo (uma vez que o corpus das doutrinas estoicas, até a época de Sêneca, não tenha sido alvo de qualquer tipo de “cisma” historicamente significativo), mas é natural supor que qualquer corrente de pensamento seja influenciada e adaptada pelas idiossincrasias daqueles que se propuseram a expandi-la e transmiti-la. Sobre o contexto da filosofia estoica em Roma, Christopher Gill afirma ainda que “um dos aspetos notáveis do períodos imperial é a influência exercida pela filosofia — em particular o estoicismo — sobre a literatura romana, inclusive a poesia — um aspecto sem paralelo em outras era da Antiguidade. Porém, no período republicano tardio, a filosofia chegou a desempenhar papel significativo na educação dos gregos e romanos de alta extração social. Na literatura romana, a presença da filosofia, inclusive do estoicismo, fez-se notar no campo da poesia e da prosa do final do século I a.C. e por todo o século Id.C.”

O estoicismo constituía um sistema filosófico muito amplo, abrangendo os domínios da física, da metafísica e da ética. Segundo a mundivisão estoica, o homem é parte da Natureza, e como tal deve refletir a sua harmonia racional, devendo viver em conformidade com essa razão natural, que lhe é revelada por sua própria inteligência, educando suas paixões e cultivando a virtude. Para os estoicos, o verdadeiro sábio é aquele que permanece tranquilo em face das mudanças cíclicas próprias da ordem universal, mantendo-se impassível frente às adversidades e sofrimentos da vida: sempre integrado à natureza, seu objetivo supremo é a impassibilidade absoluta (apatia/ataraxia). A física estoica concebe que tudo seja permeado pelo ignis, o fogo inteligente, o aspecto físico do Universo, do cosmos, que por sua vezes seria dotado de um logos, “a alma” do Universo, a racionalidade imanente a tudo o que existe. A inteligência humana, portanto, faz parte desse logos, da grande racionalidade universal. Depreende-se, pois, que nessa concepção do cosmos todas as partes sejam interdependentes: omnia in omnibus sunt, “tudo está em tudo”, essa curiosa expressão de Sêneca sintetiza, com muita propriedade e elegância, a visão de mundo típica de um filósofo estoico.

De acordo com o monismo filosófico dos estoicos, a divindade é homóloga ao cosmos, ao Universo ordenado, senciente e vivo; em outras palavras, Deus e o Universo são uma coisa só. E podemos evocar as palavras do próprio Sêneca a corroborar tal afirmação: “Júpiter [...] a quem todo nome convém [...] Se desejas chamá-lo Natureza, não pecarás. Ele é aquele de quem todas as coisas nasceram, por meio de cujo espírito vivemos.” Nas famosas Cartas a Lucílio, Sêneca deixa ainda mais patente esse monismo filosófico, integrando o próprio homem à divindade: “Não é preciso elevar as mãos ao céu nem pedir ao ministro do culto que nos deixe formular votos ao ouvido da estátua do deus, como se assim nos fosse mais fácil sermos atendidos: a divindade está perto de ti, está contigo, está dentro de ti!” A esse respeito, Pratt recorda que “a religião de Sêneca, evidentemente, não é uma religião convencional. A divindade estoica é um sinônimo do Universo”.

A oposição estoica entre razão e paixão, virtude e vício — entendidos nessa filosofia, respectivamente, como adequação ou inadequação do comportamento, da mente e das emoções à Natureza — constitui uma chave importante para a compreensão do pensamento senequiano. Vejamos o que o próprio filósofo diz a esse respeito: “A verdadeira felicidade está na virtude. Que lhe aconselhará essa virtude? A não considerar como um bem ou como um mal aquilo que não tiver nenhuma relação com a sua virtude ou com a sua perversidade”. Tendo em vista essa realidade do pensamento senequiano, Pratt sugere que “o dogma estoico concernente ao mal e ao conflito entre razão e paixão fundamenta as peças em vários aspectos, incluindo as passagens corais, a concepção das personagens, a introspecção, o tom, tudo isso num grau que estabelece um distinto conceito do trágico”. Em suma, o teor filosófico das tragédias senequianas parece por demais evidente em todos os aspectos da composição dramática, fato que permite a qualquer leitor atento afirmar que “a demonstração do vínculo entre a dramaturgia senequiana e o estoicismo não depende de nenhuma teoria. É apenas uma questão de expor, como se pretende aqui, que de fato as peças de Sêneca englobam princípios e atitudes que são um produto natural do envolvimento do autor com o estoicismo, o que basicamente modelou a natureza de sua dramaturgia” Ora, tendo em mente todas essas reflexões sobre a natureza filosófica das tragédias de Sêneca, mais acentuadas se tornam as diferenças entre estas e as tragédias de Eurípides: se, grosso modo, as tragédias áticas podiam ser compreendidas sob a perspectiva das concepções filosóficas aristotélicas — segundo as quais o objetivo precípuo da encenação trágica seria despertar a compaixão, permitindo aos indivíduos vivenciar a catarse — tal não se aplica às tragédias senequianas. No seu Tratado sobre a clemência, Sêneca é categórico na expressão de uma opinião negativa acerca da compaixão: “A tristeza é inábil em discernir as coisas, refletir sobre assuntos úteis, evitar os perigosos, avaliar perdas equitativamente. Logo, não se deve ter compaixão, porque é coisa que não ocorre sem que haja sofrimento de alma. (...) Portanto, o sábio jamais se compadecerá, mas socorrerá e será útil.” As seis proposições estoicas comentadas por Cícero no Paradoxa stoicorum também resumem significativamente os pricípios do Estoicismo:

1) “A honestidade é o único bem”
2) “Naquele em que há virtude, nada falta para a vida feliz”
3) “Os erros são todos iguais, e também as ações corretas”
4) “Todo ignorante é louco”
5) “Só o sábio é um homem livre, e todo ignorante é um escravo”
6) “Só o sábio é rico”

Do exposto acima, podemos inferir que um dos principais propósitos de Sêneca seja a dramatização de exemplos positivos e negativos de uma filosofia na qual virtude e vício são absolutamente opostos. Essa é justamente a opinião de Zelia Cardoso: “Como um dos principais divulgadores da doutrina estoica em Roma, Sêneca deu frequentemente às tragédias um caráter parabólico, utilizando-as como exempla que ilustram as consequências do descontrole dos sentimentos e das paixões. E as peças se prestam realmente a esse tipo de exemplificação.” Para Norman Pratt, a filosofia nas peças de Sêneca tem preponderância sobre a dramaturgia, criando um “sistema de comunicação moral entre o dramaturgo e a audiência” e, mais uma vez se distinguindo do universo da tragédia ática, com suas ambiguidades características, as tragédias de Sêneca são bastante marcadas por um chiaroscuro, conforme expressão de Pratt, no qual certo e errado, bom e mau, se mostram muito bem delineados.

Em face de tais considerações, é oportuno evocar a ressalva feita por Lohner, referindo-se à Fedra de Sêneca (também podendo perfeitamente aplicar-se a HF), segundo o qual “esta peça não tem um propósito moralizador num nível rasteiro, visando a glorificar o bem e rejeitar o mal, nem mostra uma visão pessimista sobre a vulnerabilidade da alma humana diante dos ataques das paixões”; tal ressalva, porém, não invalida a concepção do “caráter parabólico” das tragédias de Sêneca, uma vez que, segundo o próprio Lohner, “o objetivo principal do autor, nesta tragédia, era transmitir um determinado ensinamento”. Esse caráter didático do teatro senequiano se torna mais visível quando se atenta ao fato de que as personagens criadas por Sêneca “não são construídas como indivíduos. Suas características estão restritas ao que Sêneca queria mostrar do ponto de vista moral (...) As personagens dramáticas tem uma personalidade declamatória. Elas não são delineadas como indivíduos vivos, mas são criadas como vozes de atitudes e emoções que servem ao propósito do dramaturgo.” Ou seja, não só as peças constituem exempla filosóficos, como as próprias personagens são exempla, per se.

Na tragediografia clássica, a catástrofe é um elemento fundamental para a caracterização do gênero. Nas peças de Sêneca, em especial, a catástrofe é sempre decorrente de uma paixão não controlada pela personagem desencadeadora da ação trágica (com exceção de Hércules em Hercules furens), acarretando para si um sofrimento insuportável, levando-a à loucura e culminando na perpetração de um crime desmedido. Em Sêneca, a catástrofe se dá quando a paixão vence a razão, corroborando a fundamentação estoica dos dramas. A catástrofe é tanto maior quanto maior for a posição ou grandeza da personagem trágica No párodo de HF, essa chave de leitura é sutilmente evocada, quando o coro afirma, no verso 201, que “a virtude excessiva desaba profundamente”, alte uirtus animosa cadit, ou seja, “quanto maior a altura, maior a queda”, como diz o ditado popular; depois da queda, o pleno restabelecimento do sujeito é praticamente impossível, embora as tragédias não terminem necessariamente em morte, e HF é um bom exemplo disso (a peça termina justamente com a partida de Hércules rumo a Atenas, com o propósito de expiar seus crimes, na esperança de se restabelecer.)

Tudo o que vem sendo exposto até aqui visa ressaltar as características das peças senequianas consideradas em si mesmas, e o caráter essencialmente latino desses dramas filosóficos de Sêneca torna-se ainda mais patente quando refletimos sobre a escolha dos conflitos que autor escolheu retratar sob a perspectiva do estoicismo romano: os conflitos retratados poeticamente nas tragédias de Sêneca atingem diretamente a pietasfamiliar, e para os romanos nada poderia ser mais patético do que um ataque à pietas. A “personalidade declamatória” das personagens, conforme expressão de Pratt, atinge, em HF, um altíssimo grau de apelo patético, como pode ser constatado na maior parte do diálogos da peça, nas esticomitias (os diálogos intensos, com frases curtas, lugar comum no gênero trágico desde os seus primórdios), e sobretudo no diálogos entre Hércules e Anfitrião (como por exemplo, nos versos em que Anfitrião pede que o filho o mate, nos versos 1039-1042).

A questão da instabilidade da sorte é outro elemento típico do gênero trágico que na dramaturgia senequiana adquire um enfoque particular, acentuando o caráter filosoficamente reflexivo dessas peças. Segundo Pratt, nas tragédias senequianas o destino, a fortuna e os deuses se interrelacionam de modo a formar uma espécie de “trindade” que controla a boa ou má sorte das personagens; para Sêneca, a atitude correta de um homem bom e sábio “consiste em obedecer aos deuses, em não se encolerizar com os acidentes inesperados, em nunca deplorar a sua sorte, mas sim em aceitar o destino e em cumprir as suas determinações” Cabe lembrar que os “deuses” frequentemente evocados por Sêneca não devem ser compreendidos como as entidades antropomórficas da mitologia, mas sim como os aspectos fundamentais de um mundo imerso na racionalidade universal, conforme já exposto no início deste segundo capítulo. Dito isso, é inevitável que se questione como é possível que um cosmos divinizado, consciente, vivo e sábio, possa permitir aleatoriamente que os mais duros sofrimentos amiúde recaiam em homens bons e virtuosos, ao passo que tantos celerados desfrutem de uma vida tranquila e prazerosa. É no seu Tratado sobre a Providência que Sêneca tenta responder a esse questionamento com argumentos filosóficos: “Por que te admiras de que, para serem fortalecidos, os homens bons sejam golpeados? Uma árvore não é sólida nem forte, exceto a que é batida pelo vento frequente. Pelos maus tratos ela se torna compacta e firma raízes com mais vigor. São frágeis as que crescem num vale ensolarado. Portanto, é útil aos homens bons, para que possam ser intrépidos, debater-se muito em meio a situações terríveis e com alma serena tolerar coisas que em si mesmas não são males, exceto para os que as suportam mal.” Vários outros pontos do De Providentia também fornecem argumentos reparadores sobre as aparentes injustiças da condição humana, mas o trecho supracitado já permite ao leitor conhecer a essência da visão senequiana sobre os males que afligem os mortais.

Muitas outras sententiae e reflexões filosóficas tipicamente estoicas permeiam os textos trágicos de Sêneca, como por exemplo a questão da liberdade interior (Tiestes, v. 348 e ss.: Rex est qui posuit metus, quem non ambitio impotens et numquam stabilis fauor uulgi praecipitis mouet, “Rei é aquele que depôs o medo e os males do peito cruel, aquele a quem não excita a ambição desmedida nem o favor nunca estável do vulgo impetuoso”; e vv. 388-90: Rex est qui metuet nihil, rex est qui cupiet nihil: hoc regnum sibi quisque dat, “Rei é aquele que nada teme, rei é aquele que nada deseja: este reino qualquer um pode dar a si mesmo”); a questão do domínio de si mesmo como ideal supremo (Medeia, v. 176: Fortuna opes auferre, non animum potest, “A sorte pode tomar minhas riquezas, mas não pode roubar minha coragem”) ou ainda o tema estoico da instabilidade da sorte, que aparece explicitamente na fala de Mégara, nos versos 325 e ss de HF.: “Iníqua, a Fortuna raramente poupa as máximas virtudes. Mesmo seguro, ninguém pode se expor, durante muito tempo, a perigos tão numerosos. Quem amiúde atravessa por desventuras, algum dia as encontra.”

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DHÊNIS ROSINA: “CORPO E EDUCAÇÃO: O DIÁLOGO ENTRE AS CONCEPÇÕES DE EPICURO, SÊNECA E SANTO AGOSTINHO”. (Dissertação apresentada por DHÊNIS ROSINA, ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, como um dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. JOSÉ JOAQUIM PEREIRA MELO). Maringá, 2008.

Nota:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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