Shakespeare e o eurocentrismo



Shakespeare e eurocentrismo

Neste ponto de nosso texto, já é latente que uma das questões fundamentais deste trabalho não é a busca pelo centro estável da origem da modernidade, mas justamente a busca por sua descentralização através da crítica de suas estruturas de poder. Neste sentido, discordamos da afirmação que diz que a “transformação/missão civilizadora” do mundo que a “modernidade empreendeu”, e que para muitos intelectuais só foi possível pela centralidade da Europa Ocidental em todos seus processos, seja válida como explicação da modernidade enquanto conceito histórico hegemônico e fenômeno mundial.

A modernidade enquanto sistema discursivo não pode ser lida pela mecânica relação centro-periferia, mas pela ótica relacional que envolve diferentes níveis de poder subjetivo e material, que não são estáticos, fenômenos meramente territorializados e previsíveis, mas arquiteturas extremamente voláteis em cada momento histórico, em cada sociedade e cultura. Acontece que historicamente esta concepção de Europa como “centro” irradiador de saber e de modelos culturais se tornou hegemônica, especialmente entre os intelectuais que tentavam encontrar caminhos para a modernidade européia. Por isso, não será estranho que no século XIX muitos autores europeus e latino-americanos escrevam textos sobre a relação metrópole/colônia, América/Europa, civilizado/bárbaro e que esta relação se utilize de metáforas oriundas da peça A Tempestade na dicotomia civilização/barbárie.

Esta estreita e subjetiva relação entre a Europa e suas colônias será alimento para inúmeros relatos de viagens, mitos de legitimação e para todo um aparato discursivo em relação a este “Novo Mundo”. Caliban e Próspero encenaram a “barbárie” e a “civilização” do mundo colonial, um assumindo as práticas “civilizadas” da colonização e o outro adentrando quase inconscientemente as relações de poder do colonialismo.

Para Anna Maria Gentili, há que se fazer uma diferenciação entre o colonialismo e a colonização. O colonialismo é o aprimoramento do processo de colonização, enquanto que o segundo conceito é um processo “de expansão e conquista de colônias, e a submissão, por meio da força ou da superioridade econômica, de territórios habitados por povos diferentes dos da potência colonial”. O colonialismo define “a prática institucional e política da colonização” e de seus “sistemas de domínio”. A modernidade não é um plano maquiavélico e diligentemente alicerçado por filósofos e intelectuais europeus para dominar o mundo, surge muito mais como um argumento histórico desordenado e não planejado, que se reforça por inúmeras influências, instabilidades, retrocessos etc.

Com a transformação da Europa, de sua economia e de seu pensamento em função do colonialismo que alguns de suas nações impuseram ao mundo, o conceito de modernidade acabou ganhando status de horizonte de expectativa fundamental para quase todas as construções subjetivas e materiais. Inúmeros intelectuais se utilizaram do termo modernidade para diferentes argumentos políticos e econômicos. A modernidade se fixa no imaginário colonial como um paradoxo, ao mesmo tempo em que é argumento do colonialismo e de dominação é também a possibilidade da obliteração do próprio colonialismo que a sustentou.

Percebemos que do imaginário oriundo do processo de colonização e colonialismo surgem dois dos textos que influenciariam Shakespeare ao escrever a peça A Tempestade, ambos apresentando as características desta transformação, mudança da mentalidade européia a partir da relação entre a chegada de Colombo à América e o mundo político/religioso europeu. Frente àquele continente havia um “Novo Mundo” também de possibilidades e medos, uma imagem fosca da Europa, alimentando seus mitos através de sua materialidade, construindo um imaginário nunca antes experimentado pelo europeu. O “novo mundo” era o seu Outro, sua outra parte, sua ilha utópica, distante, possível... Em nenhum momento poderia passar despercebido aos autores do período Elisabetano.

Bárbara Heliodora, na obra A expressão dramática do homem político em Shakespeare, demonstra o estreito vínculo da produção shakespeariana com as questões políticas e com a ética dominante de seu tempo, cujos valores eram primordialmente calcados em valores teológicos. Heliodora lembra que “Shakespeare, inclusive, viveu numa época em que a política não era aceita como atividade independente, havendo por isso mesmo uma permanente ligação entre os aspectos políticos e os morais e religiosos”.52 Qualquer alteração em um dos planos provocaria mudanças nos outros. Como tentaremos demonstrar, a peça A Tempestade é a parte final de um longo caminho de maturação do homem político e colonial em Shakespeare. É o amadurecimento de uma dupla imagem construída: a ilha de Caliban existe entre a Inglaterra de Elizabeth – Europa em mutação – e os canibais de Montaigne – imagens refletidas nos paraísos utópicos de uma ilha caribenha recriada por Thomas Morus –. A Tempestade foge à imagem superficial do mundo político apresentado em outros autores do período, mas para perceber estes traços é necessário compreender o universo contextual que a envolve:

O próprio Shakespeare disse, no Hamlet, que o teatro é um espelho da natureza; sendo o período elizabetano caracterizado por uma intensa atividade política, é inevitável que também em seu teatro fosse de algum modo refletida. Em parte, ao menos, é justamente essa capacidade de discernimento político que dará à obra de Shakespeare a dimensão que falta a outros autores da época, que não espelharam mais do que superfícies (...).

Tentaremos, num primeiro momento, analisar de maneira bastante breve os antecedentes históricos da peça A Tempestade para depois adentrarmos seu enredo e personagens. Acreditamos que dessa forma será possível construir uma percepção mais apurada da apropriação da peça no discurso intelectual latino-americano em torno de projetos de modernização e identidade.

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Fonte:
Roger Cristiano Baigorra Machado: “EM TÃO PRÓSPEROS QUANTO CALIBANESCOS: PARADIGMAS DE IDENTIDADE PARA A AMÉRICA LATINA A PARTIR DE A TEMPESTADE DE SHAKESPEARE”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Integração Latino-Americana, Área de Concentração em Crise e Conflito, Regulação e Governança da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Integração Latino-Americana. Orientador: Professor Dr. Jorge Luiz da Cunha). Santa Maria, RS, Brasil, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD

Um comentário:

  1. Muito bom post, fiquei muito curioso com esta relação do autor com o eurocentrismo e sua relação com a América. Teu blog é muito bom.

    Abraço.

    Júlio Albuquerque dos Santos.
    Professor Filosofia

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