Uma proposta para deixar o “eu” com corpo grotesco

UMA PROPOSTA PARA DEIXAR O “EU” COM CORPO GROTESCO

Na análise feita dos poemas acima, explicitamos algumas características que indicam o movimento decadentista como elemento de incentivo à poética do corpo grotesco. Não nos prendemos apenas ao grotesco bakhtiniano. Ao contrário, aplicamos a teoria sob o ponto de vista de outras tentativas também profícuas no estudo do grotesco. Com isso, evitamos o reducionismo da obra literária, pois ao final das contas o mais importante é ampliar o horizonte de sua compreensão.

Desse modo, gostaríamos ainda de apontar superficialmente outros textos que possuem alguma característica motivadora do corpo grotesco. Em “Psicologia de um vencido”, percebemos a monstruosidade como elemento da corporalidade grotesca e, nesse mesmo poema, identificamos elementos que se referem à terra, tais como o “verme” e a “frialdade inorgânica” — expressões que se relacionam com o baixo material e corporal, assim como a ação de “comer”, por parte dos vermes. A palavra que não sai, estudada anteriormente, também tem relação com o universo grotesco e, no caso deste poema, ela aparece como sensação de ânsia talvez ideal, mas ânsia que “escapa pela boca”.

Em “O Lázaro da Pátria”, prevalece o artifício da comparação constante do homem com animais (“Deixa circunferências de peçonha / Marcas oriundas de úlceras e antrazes”; “Todos os cinocéfalos vorazes / Cheiram seu corpo. [...]”) e essa zoomorfização é marcadamente grotesca. Temos, ainda, a podridão ou um mundo marginal como elementos constitutivos do universo do poema (“Filho podre de antigos Goitacases”; “A hedionda elefantíasis dos dedos” e “Riem as meretrizes no Cassino, [...]”). Além disso, não podemos esquecer que a hanseníase é popularmente conhecida como “mal de Lázaro”, e as doenças e deformações corporais são matéria grotesca.

No poema “Idealização da humanidade futura”, ocorre o contato direto do ser lírico com o universo fantástico de seres apodrecidos dentro de um livro (“No húmus dos monturos, / Realizavam-se os partos mais obscuros [...]”; “Como quem esmigalha protozoários / Meti todos os dedos mercenários / Na consciência daquela multidão...”; e, “Somente achei moléculas de lama / E a mosca alegre da putrefação”). A materialidade grotesca se torna evidente nesta representação do contato do corpo lírico (aparentemente saudável) com o húmus, a mosca e a putrefação. Há, também, partos obscuros que representam um mundo de degradações altamente carregado de elementos grotescos e que poderiam ser relacionados com o decadentismo.

“Versos a um cão” apresenta-nos um cão diferente, que possui traços humanizados (“Alma de inferior rapsodo errante! / Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a / A escala dos latidos ancestrais...”; “Latindo a esquisitíssima prosódia / Da angústia hereditária dos seus pais!”). Novamente a antropomorfização aparece como elemento de corporalidade grotesca. O ser antropomorfo é uma espécie de quase-humano, mas ainda um animal, portanto, passando por um estágio de sua evolução, a inversão da lógica universal traz um corpo individual inovador e em choque constante com o corpo universal. O procedimento comparativo entre homem e animal se mostra intencional, afinal, até o terceiro verso qualquer leitor pensa ser uma referência a qualquer ser humano. Daí, podemos perceber o intuito de confundir o ser humano com um animal.

“O Deus-Verme” aponta no título a sua relação com a corporalidade grotesca. Em algumas camadas da sociedade, o título do poema soaria como uma blasfêmia — o que diz respeito ao discurso de louvor-injúria no universo grotesco. Destarte, temos uma concepção de que Deus está diretamente ligado ao metafísico, não ao terreno. Também não é habitual conceber a idéia de que o criador “almoça a podridão das drupas agras” e “rói vísceras magras”, portanto, indica que o poema tem uma ligação bem mais estreita com o baixo material e corporal.

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Fonte:
Rogério Caetano de Almeida: “O CORPO GROTESCO COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO POÉTICA NAS OBRAS DE AUGUSTO DOS ANJOS, MÁRIO DE SÁ- CARNEIRO E RAMÓN LÓPEZ VELARDE”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. José Horácio de Almeida Nascimento Costa). São Paulo, 2007.

Nota
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