Em seu curto texto “Semiologia e Urbanismo”,
Roland Barthes lembra que, para fazer
uma semiologia urbana nesse caso ele se refere à metrópole contemporânea precisaria
de um domínio de estudos em Geografia, História, Urbanismo, Arquitetura e talvez
Psicanálise. Para tanto, é muito pouco provável dar conta de todos esses
assuntos. A solução apresentada pelo autor é apresentar reflexões amadoras, no
melhor sentido da palavra: daquele que ama. Para o autor, a cidade pode ser
entendida como um poema, mas com as
possibilidades de expansão, de mudanças e de re-escritas. O verdadeiro sentido das pesquisas neste campo está em
entender como se forma a linguagem da cidade.
A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala a seus habitantes, falamos nossa cidade, a cidade em que nos encontramos, habitando-a simplesmente, percorrendo-a, olhando-a. Entretanto, o problema é fazer surgir do estado puramente metafórico uma expressão como “linguagem da cidade”. É facílimo metaforicamente falar da linguagem da cidade como se fala da linguagem do cinema ou da linguagem das flores. O verdadeiro salto científico será realizado quando se puder falar da linguagem da cidade sem metáforas (Barthes, 2001: 224).
Gosto da idéia de uma pesquisa amadora. Desde o começo venho conduzindo-a desta forma. Isso não quer dizer menos responsável. No entanto, não sei se é possível, neste trabalho, tentar traçar a linguagem de uma cidade fora do campo das metáforas e situações construídas por Oliveira Paiva. Talvez isso já seja uma limitação e uma lacuna de minha pesquisa. Preferi restringir a bibliografia para a discussão da afinidade entre literatura e cidade, com prioridade, em especial, o fenômeno literário. Por isso, desenvolvo minhas reflexões sobre literatura em todos os capítulos deste trabalho.
Particularmente, a imagem trazida por Barthes nesta proposição textual me faz pensar que a cidade proposta por ele está fixa e estruturada; sem permitir, portanto, ações específicas que modifiquem os códigos desse texto-cidade. Prefiro pensar os fenômenos culturais não apenas como mero efeito superestrutural, mas como elemento presente na organização da sociedade e um campo importante para poder modificar a realidade. A linguagem deve ser pensada como um suporte não apenas de interpretação, mas de veiculação. Conforme lembra Cevasco, vivemos em um momento de proliferação do pós-estruturalismo e tantos outros “pós” como sufixo – e por que não dizer suporte? – teórico em que se enxerga o mundo como um texto. Isso se torna perigoso, por possibilitar a perda da materialidade dos objetos, uma vez que tudo só passaria existir como signos.
O estilo de grande parte da produção contemporânea dá notícia dos problemas que traz uma posição “pós” que privilegia a indecibilidade – e o signo não significa mas faz parte de uma jogo de significações, se não estou aqui nem lá, mas “entre”, não há interpretação no sentidoforte do termo. O raciocínio progride sempre por negação: o teórico não quer “nem isso nem aquilo”, mas sua intervenção não se dá em termos da história real do tempo, em termos de posições políticas que ele recuse, mas das teorias, a conversa entre teóricos substituindo a inter-relação teoria-prática (Cevasco, 2003: 132).
Sinto nas palavras de Cevasco uma profunda crítica e decepção nas produções teórico-acadêmicas contemporâneas: “o esforço parece ser o de negar esta realidade por meio da abstração de uma teoria cujos únicos ganhos políticos são acadêmicos” (Cevasco, 2003: 134). É comum escutarmos com freqüência chavões do tipo “tudo é relativo”. As pesquisas acadêmicas caminham cada vez mais para o incerto. Em alguns casos, levantar a dúvida, por si só, pode trazer reflexões pertinentes, mas eximir-se de um posicionamento pode ser uma forma velada de se esquivar de debates políticos. Opto por deixar claras minhas posições.
Entendo a cultura e a história social na perspectiva do materialismo cultural. Por isso, tenho dificuldade de entender que a realidade possa ser decifrada e interpretada apenas como um texto. Não nego, porém, a existência de signos, desde que esses sejam percebidos e estudados de forma crítica e em constante transformação, nunca estática. Creio ser muito importante perceber tanto a linguagem quanto a significação como elementos indissociáveis de um processo social, em permanente produção e reprodução de vida material e não apenas de sentidos.
Cevasco reforça a idéia de que na perspectiva do materialismo cultural convivem sempre formas de estruturação de significados e valores como a dominante, a emergente e a residual. A primeira nunca é estática, mantém-se em constante movimentação, a fim de prever mecanismos de incorporação e reprodução de formas simbólicas. Eles são fundamentais para a manutenção do sistema dominante. “Cada vez que surge algo que possa desestabilizar essa ordem, isso é combatido e, muitas vezes, adaptado ao sistema vigente” (Cevasco, 2006: 126). Na mesma linha, Adriana Facina afirma que essa perspectiva teórica exige a percepção da linguagem num processo histórico no qual ela é ativa, “não sendo nem uma esfera absolutamente autônoma e, tampouco, uma projeção secundária” (Facina, 2004: 25).
Com relação ao campo da linguagem, prefiro pensá-la dentro do universo da criação, da literatura, “como material configurativo da criação literária e ao mesmo tempo o veículo no qual se realiza a vida humana propriamente dita” (Hamburger, VIII, 1975). Vai ser no confronto entre criação e realidade que se torna um embate bastante rico e interessante para a análise do fenômeno literário. Nesse confronto entre criação e realidade, a cidade se torna um cenário típico da modernidade que contribui para a construção de imagens e representações literárias.
É sempre bom lembrar o pensamento de Marx no que diz respeito ao problema da representação. Para ele, a história das representações muitas vezes aparece como uma primeira etapa imperfeita, como um anúncio, ainda limitado, da materialidade de uma época. Mesmo ciente dessa problemática, Benjamin acredita que a modernidade é uma matéria-prima riquíssima para a experiência das representações. Ao mesmo tempo em que se constroem representações, elas se tornam pontos de ação do escritor ou do intelectual que age sobre o seu mundo a partir de sua obra artística ou de pensamento.
Para finalizar minha reflexão, volto a algumas questões levantadas pelo pensador russo Mikhail Bakhtin. Percebo nas apreciações metodológicas deste autor as idéias mais lúcidas e que melhor representam meus anseios diante do universo acadêmico. Primeiro, Bakhtin afirma que “viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida, significa firmar-se axiologiamente” (Bakhtin, 2003: 174). A afirmação vem em reforço do que estou tentando apresentar desde o princípio das minhas reflexões. Bakhtin defende que o processo dialético se origina da própria ação do diálogo dos indivíduos. O acontecimento do mundo é a participação dos sujeitos no mundo. O mundo, aqui, é apresentado como o próprio conhecimento e não algo naturalizado e pronto.
Bakhtin tem a preocupação de apresentar a obra de arte não como um objeto meramente teórico e sim como um acontecimento artístico vivo. “O momento significativo de um acontecimento único e singular do existir; e é precisamente como tal que ele deve ser entendido e conhecido nos próprios princípios de sua vida axiológica, em seus participantes vivos” (Bakhtin, 2003: 175).
Diversas vezes o autor utiliza a palavra axiológica. Isso só reforça a ideia de que o objeto artístico, no nosso caso, a literatura, tem um valor material de se posicionar diante de um mundo. A arte e o artista têm a utilidade de criar novos mundos sem necessariamente se desprender do universo vivido e utilizado como matéria-prima da criação. “O artista e a arte criam, em linhas gerais, uma visão absolutamente nova do mundo, uma imagem do mundo, a realidade da carne mortal do mundo não é conhecida de nenhum dos outros ativismos criativo-culturais” (Bakhtin, 2003: 176).
Mas se é verdade que o artista cria novo mundo, é verdade também que esse mundo criado só se concretiza no ato da leitura. Sem leitor, não existe obra de arte. Cabe ao artista criar uma nova combinação literária a partir de suas ferramentas. Já o leitor “deve “sentir” o ato criador do autor unicamente no campo da maneira literária habitual, ou seja, também sem sair absolutamente do âmbito do contexto dos valores e do sentido da literatura materialmente concebida” (Bakhtin, 2003: 182).
O fenômeno artístico literário só se completa diante dessa interação entre leitor e autor. Dada essa advertência de Bakhtin, acredito que o leitor contemporâneo deve tomar o cuidado de ao lançar-se em textos passados, como é o meu caso, situá-lo diante do universo de sua criação. Evitando, assim, o anacronismo. Como leitor contemporâneo, devo me resvalar do pretérito, sem negar também a minha condição de leitor em outro contexto axiológico. O autor russo estabelece que a relação do artista com a palavra como tal é um momento secundário. Ele deriva do condicionado de sua relação primária com o conteúdo, ou seja, o dado imediato com o mundo vivido e sua tensão ético-cognitiva.
Bakhtin apresenta, no texto “Metodologia das Ciências Humanas”, o aspecto material do passado como algo que não pode sofrer alterações. A modificação histórica vem a partir do aspecto do sentido, este inacabável e modificado constantemente pelo falante – termo que acredito, na teoria de Bakhtin, poder ser entendido como sujeito, que pode ser associado também ao leitor. O maior desafio nessa minha proposta é entender como se dá a materialidade do sentido ou o sentido da materialidade.
Na teoria dialógica de Bakhtin, autores, leitores e críticos, cada qual em suas limitações, são agentes.
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um determinado coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio artístico devem ser compreendidos no mundo em relação a todos esses valores. O que se conclui não são as palavras, nem o material, mas o conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico constrói o mundo concreto: o espacial com o seu axiológico – o corpo vivo -, o temporal como o seu centro – a alma – e, por último, o semântico, na unidade concreta mutuamente penetrante de todos (Bakhtin, 2003: 176).
O ato de criação determina a posição do autor e marca a relação do escritor com a sua realidade, com a sua forma de encarar o mundo. Todos os elementos, personagens, cenários, condução da narrativa estão a serviço de uma posição literária e material de um escritor que irá compartilhar ou estabelecer o debate com o leitor e crítico. Isso acontece por meio da interação da linguagem. Oliveira Paiva, escritores e artistas de toda uma época são responsáveis, de uma forma geral, por suas criações e pela construção e representações feitas a partir de determinada realidade.
Não seria exagero, portanto, lembrar o velho Marx e seu companheiro Engels, quando apresentam no seu livro conjunto A Ideologia Alemã a questão da linguagem como a consciência real de prática na relação entre os homens. Linguagem e consciência carecem de necessidade e intercâmbio entre os seres humanos. “A imaginação, a representação que esses homens determinados fazem da sua práxis real, transforma-se na única força determinante e ativa que domina e determina a prática desses homens” (Marx e Engels, 2007: 39).
Voltando ao objeto desta pesquisa, não raro, escuto de companheiros e colegas frases do tipo “Fortaleza é uma província”; “Fortaleza é um ovo”; “Fortaleza não deixa nunca de ser uma grande cidade do interior”. Às vezes, cogito, que essas idéias fazem parte de um sentimento coletivo da própria cidade, compartilhado por vários dos seus habitantes. São pensamentos que fluem e migram entre os moradores de Fortaleza e que vão se espalhando e ganhando forma, um discurso material.
Uma cidade deve ser pensada por meio de seus inúmeros discursos. Quando leio e releio os primeiros romances que propiciaram experiência escrita à cidade de Fortaleza, fico a me perguntar se essas primeiras narrativas não seriam também responsáveis pelo que se diz hoje da própria cidade. Essa é uma dúvida com a qual vou permanecer mesmo ao término desta dissertação, pois um romance e um escritor não são fontes suficientes para uma investigação com essas pretensões.
Mas quando leio o romance A Afilhada, há uma reflexão teórica para mim de fundamental importância para a discussão específica da obra. Sendo A Afilhada o primeiro romance que se tem conhecimento sobre Fortaleza, e sabendo que o romance é o gênero textual, por excelência, da modernidade e da burguesia, acredito ser relevante pensar como se dá a relação entre os termos: cidade, romance e modernidade.
Nesta tríade, o conceito de modernidade é central para a análise proposta. Tomamos como ponto de partida a definição do crítico literário Marshall Berman (2007). O significado de moderno está na possibilidade de um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisasem
redor. Esses
benefícios, no entanto, não são gratuitos.
Ao mesmo tempo, ela é uma constante ameaça de destruição de tudo o que
temos, tudo que sabemos, tudo o que somos. “A experiência ambiental da
modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de
religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana” (2007:
24).
O autor estabelece uma divisão de três fases para a modernidade. A primeira acontece no início do século XVI e vai até o fim do século XVIII. Nela, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna e não fazem idéia do que as atingiu. A segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790, principalmente com a Revolução Francesa (1789), marco da expansão e difusão para todo o Ocidente de idéias como liberdade e igualdade. Finalmente, com a entrada do século XX, Berman percebe a terceira e última fase, quando o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial culmina com o modernismo em desenvolvimento, atingindo espetaculares triunfos na arte e no pensamento.
O mais interessante para este trabalho está justamente na transição da segunda para a terceira fase. Ela é o marco da expansão do capitalismo, em que as culturas européias, mais do que nunca, expandem-se além-mar e consolidam o processo de dominação cultural. Fortaleza, assim como várias capitais brasileiras, passou por esse momento. Até hoje, para qualquer discussão, acerca de literatura e/ou urbanização no Brasil, faz-se necessário um passeio pelo período do século XIX, quando o sentimento de modernidade germina no Brasil e ganha asas, a ponto de influenciar vários de nossos pensadores, artistas e intelectuais surgidos no início do século XX.
Berman repara que as afirmações feitas sobre a modernidade por escritores e pensadores do século XX, comparadas às feitas por outros um século antes, são
um radical achatamento de perspectiva e uma diminuição do espectro imaginativo. Nossos pensadores do século XIX eram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna, lutando desesperados contra suas ambigüidades e contradições; sua auto-ironia e suas tensões íntimas constituíam as fontes primárias de seu poder criativo (Berman, 2007: 35).
No próximo capítulo, farei uma discussão sobre a experiência da narração e sua relação com a difusão com o romance e a cidade. O romance, embora seja um elemento moderno e burguês e trazendo uma série de conseqüências desconhecidas ao período da modernidade, advém de uma experiência muito mais antiga: a narração. Também apresento uma discussão entre a relação do intelectual com a cidade moderna. Além disso, estabelecerei uma comparação entre os romances A Afilhada e A Normalista, de Adolfo Caminha, mostrando como os dois escritores, embora envolvidos em um contexto próximo, desenvolvem perspectiva distintas para as suas cidades escritas.
---
Fonte:
Tiago Coutinho Parente: “Uma análise da construção de Fortaleza no final do século XIX, no romance A Afilhada, de Oliveira Paiva”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes). Fortaleza, 2009
Nota:A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala a seus habitantes, falamos nossa cidade, a cidade em que nos encontramos, habitando-a simplesmente, percorrendo-a, olhando-a. Entretanto, o problema é fazer surgir do estado puramente metafórico uma expressão como “linguagem da cidade”. É facílimo metaforicamente falar da linguagem da cidade como se fala da linguagem do cinema ou da linguagem das flores. O verdadeiro salto científico será realizado quando se puder falar da linguagem da cidade sem metáforas (Barthes, 2001: 224).
Gosto da idéia de uma pesquisa amadora. Desde o começo venho conduzindo-a desta forma. Isso não quer dizer menos responsável. No entanto, não sei se é possível, neste trabalho, tentar traçar a linguagem de uma cidade fora do campo das metáforas e situações construídas por Oliveira Paiva. Talvez isso já seja uma limitação e uma lacuna de minha pesquisa. Preferi restringir a bibliografia para a discussão da afinidade entre literatura e cidade, com prioridade, em especial, o fenômeno literário. Por isso, desenvolvo minhas reflexões sobre literatura em todos os capítulos deste trabalho.
Particularmente, a imagem trazida por Barthes nesta proposição textual me faz pensar que a cidade proposta por ele está fixa e estruturada; sem permitir, portanto, ações específicas que modifiquem os códigos desse texto-cidade. Prefiro pensar os fenômenos culturais não apenas como mero efeito superestrutural, mas como elemento presente na organização da sociedade e um campo importante para poder modificar a realidade. A linguagem deve ser pensada como um suporte não apenas de interpretação, mas de veiculação. Conforme lembra Cevasco, vivemos em um momento de proliferação do pós-estruturalismo e tantos outros “pós” como sufixo – e por que não dizer suporte? – teórico em que se enxerga o mundo como um texto. Isso se torna perigoso, por possibilitar a perda da materialidade dos objetos, uma vez que tudo só passaria existir como signos.
O estilo de grande parte da produção contemporânea dá notícia dos problemas que traz uma posição “pós” que privilegia a indecibilidade – e o signo não significa mas faz parte de uma jogo de significações, se não estou aqui nem lá, mas “entre”, não há interpretação no sentidoforte do termo. O raciocínio progride sempre por negação: o teórico não quer “nem isso nem aquilo”, mas sua intervenção não se dá em termos da história real do tempo, em termos de posições políticas que ele recuse, mas das teorias, a conversa entre teóricos substituindo a inter-relação teoria-prática (Cevasco, 2003: 132).
Sinto nas palavras de Cevasco uma profunda crítica e decepção nas produções teórico-acadêmicas contemporâneas: “o esforço parece ser o de negar esta realidade por meio da abstração de uma teoria cujos únicos ganhos políticos são acadêmicos” (Cevasco, 2003: 134). É comum escutarmos com freqüência chavões do tipo “tudo é relativo”. As pesquisas acadêmicas caminham cada vez mais para o incerto. Em alguns casos, levantar a dúvida, por si só, pode trazer reflexões pertinentes, mas eximir-se de um posicionamento pode ser uma forma velada de se esquivar de debates políticos. Opto por deixar claras minhas posições.
Entendo a cultura e a história social na perspectiva do materialismo cultural. Por isso, tenho dificuldade de entender que a realidade possa ser decifrada e interpretada apenas como um texto. Não nego, porém, a existência de signos, desde que esses sejam percebidos e estudados de forma crítica e em constante transformação, nunca estática. Creio ser muito importante perceber tanto a linguagem quanto a significação como elementos indissociáveis de um processo social, em permanente produção e reprodução de vida material e não apenas de sentidos.
Cevasco reforça a idéia de que na perspectiva do materialismo cultural convivem sempre formas de estruturação de significados e valores como a dominante, a emergente e a residual. A primeira nunca é estática, mantém-se em constante movimentação, a fim de prever mecanismos de incorporação e reprodução de formas simbólicas. Eles são fundamentais para a manutenção do sistema dominante. “Cada vez que surge algo que possa desestabilizar essa ordem, isso é combatido e, muitas vezes, adaptado ao sistema vigente” (Cevasco, 2006: 126). Na mesma linha, Adriana Facina afirma que essa perspectiva teórica exige a percepção da linguagem num processo histórico no qual ela é ativa, “não sendo nem uma esfera absolutamente autônoma e, tampouco, uma projeção secundária” (Facina, 2004: 25).
Com relação ao campo da linguagem, prefiro pensá-la dentro do universo da criação, da literatura, “como material configurativo da criação literária e ao mesmo tempo o veículo no qual se realiza a vida humana propriamente dita” (Hamburger, VIII, 1975). Vai ser no confronto entre criação e realidade que se torna um embate bastante rico e interessante para a análise do fenômeno literário. Nesse confronto entre criação e realidade, a cidade se torna um cenário típico da modernidade que contribui para a construção de imagens e representações literárias.
É sempre bom lembrar o pensamento de Marx no que diz respeito ao problema da representação. Para ele, a história das representações muitas vezes aparece como uma primeira etapa imperfeita, como um anúncio, ainda limitado, da materialidade de uma época. Mesmo ciente dessa problemática, Benjamin acredita que a modernidade é uma matéria-prima riquíssima para a experiência das representações. Ao mesmo tempo em que se constroem representações, elas se tornam pontos de ação do escritor ou do intelectual que age sobre o seu mundo a partir de sua obra artística ou de pensamento.
Para finalizar minha reflexão, volto a algumas questões levantadas pelo pensador russo Mikhail Bakhtin. Percebo nas apreciações metodológicas deste autor as idéias mais lúcidas e que melhor representam meus anseios diante do universo acadêmico. Primeiro, Bakhtin afirma que “viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida, significa firmar-se axiologiamente” (Bakhtin, 2003: 174). A afirmação vem em reforço do que estou tentando apresentar desde o princípio das minhas reflexões. Bakhtin defende que o processo dialético se origina da própria ação do diálogo dos indivíduos. O acontecimento do mundo é a participação dos sujeitos no mundo. O mundo, aqui, é apresentado como o próprio conhecimento e não algo naturalizado e pronto.
Bakhtin tem a preocupação de apresentar a obra de arte não como um objeto meramente teórico e sim como um acontecimento artístico vivo. “O momento significativo de um acontecimento único e singular do existir; e é precisamente como tal que ele deve ser entendido e conhecido nos próprios princípios de sua vida axiológica, em seus participantes vivos” (Bakhtin, 2003: 175).
Diversas vezes o autor utiliza a palavra axiológica. Isso só reforça a ideia de que o objeto artístico, no nosso caso, a literatura, tem um valor material de se posicionar diante de um mundo. A arte e o artista têm a utilidade de criar novos mundos sem necessariamente se desprender do universo vivido e utilizado como matéria-prima da criação. “O artista e a arte criam, em linhas gerais, uma visão absolutamente nova do mundo, uma imagem do mundo, a realidade da carne mortal do mundo não é conhecida de nenhum dos outros ativismos criativo-culturais” (Bakhtin, 2003: 176).
Mas se é verdade que o artista cria novo mundo, é verdade também que esse mundo criado só se concretiza no ato da leitura. Sem leitor, não existe obra de arte. Cabe ao artista criar uma nova combinação literária a partir de suas ferramentas. Já o leitor “deve “sentir” o ato criador do autor unicamente no campo da maneira literária habitual, ou seja, também sem sair absolutamente do âmbito do contexto dos valores e do sentido da literatura materialmente concebida” (Bakhtin, 2003: 182).
O fenômeno artístico literário só se completa diante dessa interação entre leitor e autor. Dada essa advertência de Bakhtin, acredito que o leitor contemporâneo deve tomar o cuidado de ao lançar-se em textos passados, como é o meu caso, situá-lo diante do universo de sua criação. Evitando, assim, o anacronismo. Como leitor contemporâneo, devo me resvalar do pretérito, sem negar também a minha condição de leitor em outro contexto axiológico. O autor russo estabelece que a relação do artista com a palavra como tal é um momento secundário. Ele deriva do condicionado de sua relação primária com o conteúdo, ou seja, o dado imediato com o mundo vivido e sua tensão ético-cognitiva.
Bakhtin apresenta, no texto “Metodologia das Ciências Humanas”, o aspecto material do passado como algo que não pode sofrer alterações. A modificação histórica vem a partir do aspecto do sentido, este inacabável e modificado constantemente pelo falante – termo que acredito, na teoria de Bakhtin, poder ser entendido como sujeito, que pode ser associado também ao leitor. O maior desafio nessa minha proposta é entender como se dá a materialidade do sentido ou o sentido da materialidade.
Na teoria dialógica de Bakhtin, autores, leitores e críticos, cada qual em suas limitações, são agentes.
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um determinado coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio artístico devem ser compreendidos no mundo em relação a todos esses valores. O que se conclui não são as palavras, nem o material, mas o conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico constrói o mundo concreto: o espacial com o seu axiológico – o corpo vivo -, o temporal como o seu centro – a alma – e, por último, o semântico, na unidade concreta mutuamente penetrante de todos (Bakhtin, 2003: 176).
O ato de criação determina a posição do autor e marca a relação do escritor com a sua realidade, com a sua forma de encarar o mundo. Todos os elementos, personagens, cenários, condução da narrativa estão a serviço de uma posição literária e material de um escritor que irá compartilhar ou estabelecer o debate com o leitor e crítico. Isso acontece por meio da interação da linguagem. Oliveira Paiva, escritores e artistas de toda uma época são responsáveis, de uma forma geral, por suas criações e pela construção e representações feitas a partir de determinada realidade.
Não seria exagero, portanto, lembrar o velho Marx e seu companheiro Engels, quando apresentam no seu livro conjunto A Ideologia Alemã a questão da linguagem como a consciência real de prática na relação entre os homens. Linguagem e consciência carecem de necessidade e intercâmbio entre os seres humanos. “A imaginação, a representação que esses homens determinados fazem da sua práxis real, transforma-se na única força determinante e ativa que domina e determina a prática desses homens” (Marx e Engels, 2007: 39).
Voltando ao objeto desta pesquisa, não raro, escuto de companheiros e colegas frases do tipo “Fortaleza é uma província”; “Fortaleza é um ovo”; “Fortaleza não deixa nunca de ser uma grande cidade do interior”. Às vezes, cogito, que essas idéias fazem parte de um sentimento coletivo da própria cidade, compartilhado por vários dos seus habitantes. São pensamentos que fluem e migram entre os moradores de Fortaleza e que vão se espalhando e ganhando forma, um discurso material.
Uma cidade deve ser pensada por meio de seus inúmeros discursos. Quando leio e releio os primeiros romances que propiciaram experiência escrita à cidade de Fortaleza, fico a me perguntar se essas primeiras narrativas não seriam também responsáveis pelo que se diz hoje da própria cidade. Essa é uma dúvida com a qual vou permanecer mesmo ao término desta dissertação, pois um romance e um escritor não são fontes suficientes para uma investigação com essas pretensões.
Mas quando leio o romance A Afilhada, há uma reflexão teórica para mim de fundamental importância para a discussão específica da obra. Sendo A Afilhada o primeiro romance que se tem conhecimento sobre Fortaleza, e sabendo que o romance é o gênero textual, por excelência, da modernidade e da burguesia, acredito ser relevante pensar como se dá a relação entre os termos: cidade, romance e modernidade.
Nesta tríade, o conceito de modernidade é central para a análise proposta. Tomamos como ponto de partida a definição do crítico literário Marshall Berman (2007). O significado de moderno está na possibilidade de um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas
O autor estabelece uma divisão de três fases para a modernidade. A primeira acontece no início do século XVI e vai até o fim do século XVIII. Nela, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna e não fazem idéia do que as atingiu. A segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790, principalmente com a Revolução Francesa (1789), marco da expansão e difusão para todo o Ocidente de idéias como liberdade e igualdade. Finalmente, com a entrada do século XX, Berman percebe a terceira e última fase, quando o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial culmina com o modernismo em desenvolvimento, atingindo espetaculares triunfos na arte e no pensamento.
O mais interessante para este trabalho está justamente na transição da segunda para a terceira fase. Ela é o marco da expansão do capitalismo, em que as culturas européias, mais do que nunca, expandem-se além-mar e consolidam o processo de dominação cultural. Fortaleza, assim como várias capitais brasileiras, passou por esse momento. Até hoje, para qualquer discussão, acerca de literatura e/ou urbanização no Brasil, faz-se necessário um passeio pelo período do século XIX, quando o sentimento de modernidade germina no Brasil e ganha asas, a ponto de influenciar vários de nossos pensadores, artistas e intelectuais surgidos no início do século XX.
Berman repara que as afirmações feitas sobre a modernidade por escritores e pensadores do século XX, comparadas às feitas por outros um século antes, são
um radical achatamento de perspectiva e uma diminuição do espectro imaginativo. Nossos pensadores do século XIX eram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna, lutando desesperados contra suas ambigüidades e contradições; sua auto-ironia e suas tensões íntimas constituíam as fontes primárias de seu poder criativo (Berman, 2007: 35).
No próximo capítulo, farei uma discussão sobre a experiência da narração e sua relação com a difusão com o romance e a cidade. O romance, embora seja um elemento moderno e burguês e trazendo uma série de conseqüências desconhecidas ao período da modernidade, advém de uma experiência muito mais antiga: a narração. Também apresento uma discussão entre a relação do intelectual com a cidade moderna. Além disso, estabelecerei uma comparação entre os romances A Afilhada e A Normalista, de Adolfo Caminha, mostrando como os dois escritores, embora envolvidos em um contexto próximo, desenvolvem perspectiva distintas para as suas cidades escritas.
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Fonte:
Tiago Coutinho Parente: “Uma análise da construção de Fortaleza no final do século XIX, no romance A Afilhada, de Oliveira Paiva”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes). Fortaleza, 2009
Nota:A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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