Cultura, literatura e materialidade



Em seu curto texto “Semiologia e Urbanismo”, Roland Barthes lembra que, para  fazer uma semiologia urbana nesse caso ele se refere à metrópole contemporânea precisaria de um domínio de estudos em Geografia, História, Urbanismo, Arquitetura e talvez Psicanálise. Para tanto, é muito pouco provável dar conta de todos esses assuntos. A solução apresentada pelo autor é apresentar reflexões amadoras, no melhor sentido da palavra: daquele que ama. Para o autor, a cidade pode ser entendida como um poema,  mas com as possibilidades de expansão, de mudanças e de re-escritas. O verdadeiro  sentido das pesquisas neste campo está em entender como se forma a linguagem da cidade.

A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma  linguagem: a cidade fala a seus habitantes, falamos nossa cidade, a cidade em que nos encontramos, habitando-a simplesmente,  percorrendo-a, olhando-a. Entretanto, o problema é fazer surgir do  estado puramente metafórico uma expressão como “linguagem da cidade”. É facílimo metaforicamente falar da linguagem da cidade  como se fala da linguagem do cinema ou da linguagem das flores. O verdadeiro salto científico será realizado quando se puder falar da  linguagem da cidade sem metáforas (Barthes, 2001: 224).  
Gosto da idéia de uma pesquisa amadora. Desde o começo venho conduzindo-a desta forma. Isso não quer dizer menos responsável. No entanto, não sei se é possível,  neste trabalho, tentar traçar a linguagem de uma cidade fora do campo das metáforas e situações construídas por Oliveira Paiva. Talvez isso já seja uma limitação e uma lacuna de minha pesquisa. Preferi restringir a bibliografia para a discussão da afinidade entre literatura e cidade, com prioridade, em especial, o fenômeno literário. Por isso,  desenvolvo minhas reflexões sobre literatura em todos os capítulos deste trabalho.

Particularmente, a imagem trazida por Barthes nesta proposição textual me faz pensar que a cidade proposta por ele está fixa e estruturada; sem permitir, portanto,  ações específicas que modifiquem os códigos desse texto-cidade. Prefiro pensar os  fenômenos culturais não apenas como mero efeito superestrutural, mas como elemento  presente na organização da sociedade e um campo importante para poder modificar a realidade. A linguagem deve ser pensada como um suporte não apenas de interpretação,  mas de veiculação. Conforme lembra Cevasco, vivemos em um momento de  proliferação do pós-estruturalismo e tantos outros “pós” como sufixo – e por que não  dizer suporte? – teórico em que se enxerga o mundo como um texto. Isso se torna perigoso, por possibilitar a perda da materialidade dos objetos, uma vez que tudo só  passaria existir como signos.
O estilo de grande parte da produção contemporânea dá notícia dos problemas que traz uma posição “pós” que privilegia a indecibilidade  –  e o signo não significa mas faz parte de uma jogo de significações, se não estou aqui nem lá, mas “entre”, não há interpretação no sentidoforte do termo. O raciocínio progride sempre por negação: o teórico não quer “nem isso nem aquilo”, mas sua intervenção não se dá em termos da história real do tempo, em termos de posições políticas que ele recuse, mas das teorias, a conversa entre teóricos substituindo a inter-relação teoria-prática (Cevasco, 2003: 132).
Sinto nas palavras de Cevasco uma profunda crítica e decepção nas produções  teórico-acadêmicas contemporâneas: “o esforço parece ser o de negar esta realidade por  meio da abstração de uma teoria cujos únicos ganhos políticos são acadêmicos” (Cevasco, 2003: 134). É comum escutarmos com freqüência chavões do tipo “tudo é relativo”. As pesquisas acadêmicas caminham cada vez mais para o incerto. Em alguns  casos, levantar a dúvida, por si só, pode trazer reflexões pertinentes, mas eximir-se de um posicionamento pode ser uma forma velada de se esquivar de debates políticos. Opto por deixar claras minhas posições. 
Entendo a cultura e a história social na perspectiva do materialismo cultural. Por isso, tenho dificuldade de entender que a realidade possa ser decifrada e interpretada  apenas como um texto. Não nego, porém, a existência de signos, desde que esses sejam  percebidos e estudados de forma crítica e em constante transformação, nunca estática.  Creio ser muito importante perceber tanto a linguagem quanto a significação como  elementos indissociáveis de um processo social, em permanente produção e reprodução de vida material e não apenas de sentidos.

Cevasco reforça a idéia de que na perspectiva do materialismo cultural convivem sempre formas de estruturação de significados e valores como a dominante, a emergente  e a residual. A primeira nunca é estática, mantém-se em constante movimentação, a fim de prever mecanismos de incorporação e reprodução de formas simbólicas. Eles são  fundamentais para a manutenção do sistema dominante. “Cada vez que surge algo que possa desestabilizar essa ordem, isso é combatido e, muitas vezes, adaptado ao sistema  vigente” (Cevasco, 2006: 126). Na mesma linha, Adriana Facina afirma que essa perspectiva teórica exige a percepção da linguagem num processo histórico no qual ela é ativa, “não sendo nem uma esfera absolutamente autônoma e, tampouco, uma  projeção secundária” (Facina, 2004: 25). 
Com relação ao campo da linguagem, prefiro pensá-la dentro do universo da  criação, da literatura, “como material configurativo da criação literária e ao mesmo  tempo o veículo no qual se realiza a vida humana propriamente dita” (Hamburger, VIII, 1975). Vai ser no confronto entre criação e realidade
 que se torna um embate bastante rico e interessante para a análise do fenômeno literário. Nesse confronto entre criação e realidade, a cidade se torna um cenário típico da modernidade que contribui para a  construção de imagens e representações literárias. 
É sempre bom lembrar o pensamento de Marx no que diz respeito ao problema
 da representação. Para ele, a história das representações muitas vezes aparece como uma  primeira etapa imperfeita, como um anúncio, ainda limitado, da materialidade de uma  época. Mesmo ciente dessa problemática, Benjamin acredita que a modernidade é uma  matéria-prima riquíssima para a experiência das representações. Ao mesmo tempo em  que se constroem representações, elas se tornam pontos de ação do escritor ou do intelectual que age sobre o seu mundo a partir de sua obra artística ou de pensamento. 

Para finalizar minha reflexão, volto a algumas questões levantadas pelo pensador  russo Mikhail Bakhtin. Percebo nas apreciações metodológicas deste autor as idéias mais lúcidas e que melhor representam meus anseios diante do universo acadêmico.  Primeiro, Bakhtin afirma que “viver significa ocupar uma posição axiológica em cada  momento da vida, significa firmar-se axiologiamente” (Bakhtin, 2003: 174). A afirmação vem em reforço do que estou tentando apresentar desde o princípio das minhas reflexões. Bakhtin defende que o processo dialético se origina da própria ação  do diálogo dos indivíduos. O acontecimento do mundo é a participação dos sujeitos no mundo. O mundo, aqui, é apresentado como o próprio conhecimento e não algo  naturalizado e pronto.
Bakhtin tem a preocupação de apresentar a obra de arte não como um objeto
 meramente teórico e sim como um acontecimento artístico vivo. “O momento  significativo de um acontecimento único e singular do existir; e é precisamente como tal que ele deve ser entendido e conhecido nos próprios princípios de sua vida axiológica,  em seus participantes vivos” (Bakhtin, 2003: 175). 
Diversas vezes o autor utiliza a palavra axiológica. Isso só reforça a ideia de que o objeto artístico, no nosso caso, a literatura, tem um valor material de se posicionar  diante de um mundo. A arte e o artista têm a utilidade de criar novos mundos sem  necessariamente se desprender do universo vivido e utilizado como matéria-prima da  criação. “O artista e a arte criam, em linhas gerais, uma visão absolutamente nova do
mundo, uma imagem do mundo, a realidade da carne mortal do mundo não é conhecida de nenhum dos outros ativismos criativo-culturais” (Bakhtin, 2003: 176).
Mas se é verdade que o artista cria novo mundo, é verdade também que esse mundo criado só se concretiza no ato da leitura. Sem leitor, não existe obra de arte.  Cabe ao artista criar uma nova combinação literária a partir de suas ferramentas. Já o  leitor “deve “sentir” o ato criador do autor unicamente no campo da maneira literária habitual, ou seja, também sem sair absolutamente do âmbito do contexto dos valores e do sentido da literatura materialmente concebida” (Bakhtin, 2003: 182).
O fenômeno artístico literário só se completa diante dessa interação entre leitor e
 autor. Dada essa advertência de Bakhtin, acredito que o leitor contemporâneo deve  tomar o cuidado de ao lançar-se em textos passados, como é o meu caso, situá-lo diante do universo de sua criação. Evitando, assim, o anacronismo. Como leitor  contemporâneo, devo me resvalar do pretérito, sem negar também a minha condição de leitor em outro contexto axiológico. O autor russo estabelece que a relação do artista  com a palavra como tal é um momento secundário. Ele deriva do condicionado de sua relação primária com o conteúdo, ou seja, o dado imediato com o mundo vivido e sua tensão ético-cognitiva. 
Bakhtin apresenta, no texto “Metodologia das Ciências Humanas”, o aspecto
 material do passado como algo que não pode sofrer alterações. A modificação histórica vem a partir do aspecto do sentido, este inacabável e modificado constantemente pelo  falante – termo que acredito, na teoria de Bakhtin, poder ser entendido como sujeito,  que pode ser associado também ao leitor. O maior desafio nessa minha proposta é entender como se dá a materialidade do sentido ou o sentido da materialidade. 
Na teoria dialógica de Bakhtin, autores, leitores e críticos, cada qual em suas
 limitações, são agentes.
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um  determinado coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio  artístico devem ser compreendidos no mundo em relação a todos esses  valores. O que se conclui não são as palavras, nem o material, mas o  conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico constrói o mundo concreto: o espacial com o seu axiológico – o corpo  vivo -, o temporal como o seu centro – a alma – e, por último, o  semântico, na unidade concreta mutuamente penetrante de todos  (Bakhtin, 2003: 176).

O ato de criação determina a posição do autor e marca a relação do escritor com a sua realidade, com a sua forma de encarar o mundo. Todos os elementos, personagens, cenários, condução da narrativa estão a serviço de uma posição literária e material de  um escritor que irá compartilhar ou estabelecer o debate com o leitor e crítico. Isso  acontece por meio da interação da linguagem. Oliveira Paiva, escritores e artistas de toda uma época são responsáveis, de uma forma geral, por suas criações e pela construção e representações feitas  a partir de determinada realidade. 

Não seria exagero, portanto, lembrar o velho Marx e seu companheiro Engels,  quando apresentam no seu livro conjunto A Ideologia Alemã a questão da linguagem  como a consciência real de prática na relação entre os homens. Linguagem e  consciência carecem de necessidade e intercâmbio entre os seres humanos. “A  imaginação, a representação que esses homens determinados fazem da sua práxis real,  transforma-se na única força determinante e ativa que domina e determina a prática  desses homens” (Marx e Engels, 2007: 39).
Voltando ao objeto desta pesquisa, não raro, escuto de companheiros e colegas frases do tipo “Fortaleza é uma província”; “Fortaleza é um ovo”; “Fortaleza não deixa nunca de ser uma grande cidade do interior”. Às vezes, cogito, que essas idéias fazem parte de um sentimento coletivo da própria cidade, compartilhado por vários dos seus
 habitantes. São pensamentos que fluem e migram entre os moradores de Fortaleza e que  vão se espalhando e ganhando forma, um discurso material.

Uma cidade deve ser pensada por meio de seus inúmeros discursos. Quando  leio e releio os primeiros romances que propiciaram experiência escrita à cidade de  Fortaleza, fico a me perguntar se essas primeiras narrativas não seriam também  responsáveis pelo que se diz hoje da própria cidade. Essa é uma dúvida com a qual vou permanecer mesmo ao término desta dissertação, pois um romance e um escritor não  são fontes suficientes para uma investigação com essas pretensões.

Mas quando leio o romance A Afilhada, há uma reflexão teórica para mim de fundamental importância para a discussão específica da obra. Sendo A Afilhada o primeiro romance que se tem conhecimento sobre Fortaleza, e sabendo que o romance é o gênero textual, por excelência, da modernidade e da burguesia, acredito ser relevante pensar como se dá a relação entre os termos: cidade, romance e modernidade.  
Nesta tríade, o conceito de modernidade é central para a análise proposta.  Tomamos como ponto de partida a definição do crítico literário Marshall Berman
(2007). O significado de moderno está na possibilidade de um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em  redor. Esses benefícios, no entanto, não são gratuitos.  Ao mesmo tempo, ela é uma constante ameaça de destruição de tudo o que temos, tudo que sabemos, tudo o que somos. “A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e  raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer  que a modernidade une a espécie humana” (2007: 24).
O autor estabelece uma divisão de três fases para a modernidade. A primeira
 acontece no início do século XVI e vai até o fim do século XVIII. Nela, as pessoas estão  apenas começando a experimentar a vida moderna e não fazem idéia do que as atingiu. A segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790, principalmente com  a Revolução Francesa (1789), marco da expansão e difusão para todo o Ocidente de idéias como liberdade e igualdade. Finalmente, com a entrada do século XX, Berman  percebe a terceira e última fase, quando o processo de modernização se expande a ponto  de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial culmina com o modernismo  em desenvolvimento, atingindo espetaculares triunfos na arte e no pensamento.
O mais interessante para este trabalho está justamente na transição da
segunda para a terceira fase. Ela é o marco da expansão do capitalismo, em que as  culturas européias, mais do que nunca, expandem-se além-mar e consolidam o processo  de dominação cultural. Fortaleza, assim como várias capitais brasileiras, passou por esse  momento. Até hoje, para qualquer discussão, acerca de literatura e/ou urbanização no  Brasil, faz-se necessário um passeio pelo período do século XIX, quando o sentimento  de modernidade germina no Brasil e ganha asas, a ponto de influenciar vários de nossos pensadores, artistas e intelectuais surgidos no início do século XX. 
Berman repara que as afirmações feitas sobre a modernidade por escritores e
 pensadores do século XX, comparadas às feitas por outros um século antes, são 
um radical achatamento de perspectiva e uma diminuição do espectro  imaginativo. Nossos pensadores do século XIX eram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna, lutando desesperados contra suas ambigüidades e contradições; sua auto-ironia e suas tensões  íntimas constituíam as fontes primárias de seu poder criativo (Berman,  2007: 35).

No próximo capítulo, farei uma discussão sobre a experiência da narração e sua relação com a difusão com o romance e a cidade. O romance, embora seja um elemento  moderno e burguês e trazendo uma série de conseqüências desconhecidas ao período da modernidade, advém de uma experiência muito mais antiga: a narração. Também  apresento uma discussão entre a relação do intelectual com a cidade moderna. Além  disso, estabelecerei uma comparação entre os romances A Afilhada e A Normalista, de Adolfo Caminha, mostrando como os dois escritores, embora envolvidos em um  contexto próximo, desenvolvem perspectiva distintas para as suas cidades escritas.

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Fonte:
Tiago Coutinho Parente: “Uma análise da construção de Fortaleza no final do século XIX, no romance A Afilhada, de Oliveira Paiva”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo  Programa de Pós-Graduação em Sociologia da  Universidade Federal do Ceará.   Orientador: Prof. Dr. Eduardo Diatahy  Bezerra de Menezes). Fortaleza, 2009

Nota
:A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público 

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