Distinção e Identidade na Ethica de Spinoza



A filosofia cartesiana, para a qual Spinoza dispensou tanta atenção e inúmeras respostas ao longo de sua obra, concebe três diferentes tipos de distinção: a distinção real, a distinção modal e a distinção de razão. A distinção real é aquela pela qual duas substâncias se distinguem uma da outra, tendo ou não o mesmo atributo; e ela é reconhecida por cada uma das substâncias poder ser concebida e, conseqüentemente, existir sem o intermédio da outra. 

A distinção modal pode ocorrer ou entre um modo de uma substância e esta substância, ou entre dois modos de uma mesma substância. No primeiro caso, a distinção é reconhecida do fato de que a substância pode ser concebida sem os seus modos (ainda que os modos não possam ser concebidos sem a substância de que são modos). No segundo caso, a distinção modal é reconhecida do fato de que cada modo pode ser concebido sem considerar os demais (o que não significa que possam ser considerados independentemente de suas respectivas substâncias). Quando os modos não se referem a uma mesma substância, a distinção é descrita mais apropriadamente como uma distinção real; apesar de se estar tratando de modos diferentes entre si. 

A distinção de razão, por fim, é aquela existente entre a substância e o seu atributo ou entre dois atributos de uma mesma substância, na primeira situação, ela é reconhecida pelo fato da substância não poder ser entendida sem aquele atributo (é o caso, por exemplo, da substância inteligente com relação ao pensamento e da substância corpórea com relação à extensão). Na situação em que temos dois atributos de uma mesma substância, também  reconhecemos a diferença de razão entre eles do fato de não podermos ter uma idéia clara de um se o separamos do outro; assim é, por exemplo, no caso do atributo da duração com  relação ao atributo da existência.

Diante destes tipos diferentes de distinção (em boa parte assumidos por Spinoza), é  cabível perguntar se haveria qualquer implicação para o critério escolástico adotado por Bayle em sua leitura da Ethica ao distinguir entre uma parte e outra da substância extensa. O autor do Dictionnaire Historique et Critique parece sustentar a idéia de que, ao assumirmos a existência de uma distinção modal ou de razão, estaríamos de qualquer maneira, admitindo alguma forma de identidade; afinal, em ambos os casos não existe uma diferença entre substâncias. E o problema estaria, então, no tipo de identidade que é pressuposto: sabemos que a substância de um determinado modo é idêntica à substância de outros modos, mas dizer
que são idênticas poderia significar que são iguais quanto à natureza (apesar de numericamente distintas) ou que se trata de uma única e mesma substância. O equívoco da  Ethica, segundo vários comentadores citados por Bayle no artigo, estaria justamente em não ter atentado para as distinções envolvidas no conceito de identidade:

É preciso apenas uma pequena distinção concebida nestes termos: concedo que não  possa haver na natureza várias substâncias com a mesma natureza ou atributo no sentido numérico, mas não que não possa haver na natureza várias substâncias com a mesma natureza ou atributo no sentido específico.

Bayle sabe, porém, que a desconsideração da identidade específica está inserida em um contexto mais amplo, que nega aos universais um papel decisivo na formação dos conceitos. Gênero, espécie e indivíduo eram tidos por Spinoza como entes de razão, ou seja, modos do pensamento que tomam por base recortes ou abstrações da realidade.  Eles poderiam, segundo o autor da Ethica, apenas auxiliar-nos a reter as coisas mais facilmente, mas não a concebe-las adequadamente. De qualquer maneira, as objeções de Bayle irão incidir apenas de forma indireta sobre esta questão da ambigüidade presente no conceito de identidade; ambigüidade que é aparente, pois resulta de uma tentativa consciente de identificar e diferenciar os seres a partir de outros parâmetros. 

Esta necessidade de se promover uma revisão nas noções de distinção e de identidade está implicada no projeto de Spinoza para uma nova teoria das definições. Uma definição é, segundo a tradição aristotélica, “uma frase que significa a essência de uma coisa”. A  essência responde à pergunta “O que é?” (“o que é a beleza?”; “o que é a justiça?”; “o que é a virtude?”; “o que é o eclipse?”; “o que é o trovão?” etc.). É preciso, contudo, precaução, para, ao responder indagações deste tipo, não estar atribuindo à coisa uma propriedade ou um  acidente (ou seja, a definição deve, em primeiro lugar, significar aquilo que a coisa é por si  mesma, necessariamente; em sentido próprio, a sua substância). Quanto à forma, a frase que significa a essência da coisa deverá expressar uma identidade, pois se provamos que há uma diferença entre a coisa que se quer definir e aquilo que dela se diz, então a definição é destruída (o predicado contido na definição deve, em segundo lugar, ser conversível com o sujeito da mesma). Expressar uma identidade é fundamental, mas ainda não é suficiente; pois não temos uma definição quando afirmamos, por exemplo, que uma capa é um manto. Segundo Aristóteles, não se consegue a explicação da coisa dada na definição apenas com um termo, mas, se faz necessário um certo tipo de frase. Os termos contidos na definição são o gênero e a diferença. A definição, portanto, não é definição de uma coisa, mas de um tipo de coisa, de uma espécie, de algo que está inserido em um certo gênero e que se diferencia de outros tipos de coisa igualmente inseridos nesse gênero. Em outras palavras, é possível, por esta perspectiva, definir, por exemplo, o homem (a espécie), mas não um determinado homem  (o indivíduo). Vale notar, ainda, que a espécie não se confunde com a Idéia ou Forma no sentido platônico, pois esta é individual enquanto que aquela é universal. 

Aquilo que é expresso na definição, isto é, a essência ou a resposta à pergunta “o que é?”, em muitos casos, significa também a causa ou o porquê. E serão justamente esses casos, em que a essência é idêntica à causa, os que a teoria aristotélica irá privilegiar. O conhecimento das essências passará a ser, fundamentalmente, o conhecimento das causas; tanto das causas que promovem a existência das coisas simplesmente quanto das causas pelas quais as coisas existem de um modo determinado.

A perspectiva aristotélica, que funda a teoria das definições (e, por conseguinte, as noções de distinção e identidade) com que os comentadores de Spinoza introduzidos por Bayle trabalham, será profundamente abalada com a instituição do método cartesiano, para o qual não basta um conhecimento claro e definitivo a respeito das causas se o que se pretende  é, justamente, colocar em discussão as noções primitivas sobre as quais se assenta todo o saber. O exemplo maior disso está nas Meditações, onde se sabe, antes, que se existe enquanto coisa pensante, para, depois, se saber a causa que leva a esta existência. Não é que o conhecimento do efeito não faça nenhuma referência à causa, afinal ele já o envolve, visto que não existe nada no efeito que não exista igual ou de maneira mais perfeita na causa; mas o que  ele dispensa é que seja preciso, para termos uma idéia clara e distinta do efeito, termos antes  uma idéia clara e distinta a respeito da causa. Na verdade é o conhecimento mais perfeito do efeito que nos dará elementos para inferirmos a causa. 

Aquilo que se sabe da causa a partir do efeito pode ser pouco claro, ou melhor, será tanto mais claro quanto o for o conhecimento do efeito. Ainda assim, os resultados obtidos não estarão baseados em percepções confusas, provenientes das nossas sensações ou mesmo de pré-juízos incorporados ao longo de nossa formação. Em suma, não adianta privilegiar o conhecimento da causa sem se preocupar com a causa desta causa. Se a mesma resulta de um  processo indutivo qualquer, pautado, em última análise, nas nossas percepções sensoriais,  então o método sintético, tanto quanto o método analítico, estará partindo do efeito, e não da causa; só que partirá da percepção sensorial que está sujeita a todo tipo de engano enquanto que o outro, o método analítico, terá o seu fundamento em idéias claras e distintas, por si só, auto-evidentes. 

 Diante da perspectiva nova que o método cartesiano inaugura, a teoria das definições  desenvolvida por Spinoza no  Tractatus de Intellectus  Emendatione poderia parecer um retorno à tradição aristotélica na medida em que preconiza a idéia de que “a verdadeira ciência procede da causa aos efeitos” e que “o conhecimento do efeito nada mais é do que adquirir um mais perfeito conhecimento da causa” não fosse, entre outras coisas, os cuidados em não admitir que se conclua qualquer idéia a partir de termos universais,   preocupação esta que o filósofo holandês herda do próprio Descartes.

Conforme aquilo que Spinoza nos apresenta no Tractatus de Intellectus Emendatione, as definições precisariam explicar a essência íntima daquilo que está sendo definido, de modo que uma primeira preocupação dos que pretendem encontrar a melhor maneira de definir deverá ser o cuidado para não confundir as propriedades essenciais com as outras propriedades que decorrem da natureza das coisas. O filósofo exemplifica isso que ele quer dizer, tomando o caso do círculo, comumente definido como uma figura cujas linhas traçadas do centro para a circunferência são todas iguais. Esta seria uma definição ruim do círculo, pois, ao invés de exprimir a sua essência, i.e., a propriedade que diferente das demais expressa aquilo que é condição de existência do círculo e de onde resultam todas as suas outras propriedades, expressa simplesmente uma de suas tantas propriedades. 

Para que se obtenha clareza sobre esta diferença entre as propriedades das coisas e aquilo que lhes é essencial, Spinoza separa as definições em dois tipos: definições das coisas criadas e definições das coisas incriadas. Aquelas, diferentemente das últimas, deverão  expressar, na definição, a causa próxima. O círculo, por exemplo, tal qual fora definido anteriormente, sendo coisa criada, precisaria ser definido considerando a sua causa próxima, o que significaria defini-lo como “figura descrita por uma linha com uma extremidade fixa e a outra móvel.” Dessa definição, nota-se que é possível deduzir aquilo que fora dito na outra (“as linhas traçadas do centro para a circunferência são todas iguais”).

Para que seja possível, a partir da definição, derivar as demais propriedades da coisa é preciso atentar também para que aquela expresse um conceito positivo, ainda que possa, no entanto, se valer de termos negativos; o que constitui a segunda exigência para este tipo de definição. 

Uma observação relevante, ainda sobre as coisas criadas, é que se a ordem de derivação das propriedades na geometria não é tão importante a ponto de impedir a nossa compreensão dos objetos envolvidos e de suas relações (afinal as entidades geométricas e aritméticas não existem no tempo) a respeito da concepção das coisas físicas e reais, essa ordem será de suma importância. Afinal, além de não poder haver uma compreensão adequada das propriedades das coisas sem um entendimento prévio acerca das essências das mesmas, a concatenação das idéias no intelecto não estará reproduzindo a concatenação da ordem das coisas na realidade; o que, segundo Spinoza, seria fundamental para que a nossa mente reproduzisse objetivamente, tanto quanto possível, a formalidade da natureza, quer no todo, quer em cada uma de suas partes. 

Sobre o outro tipo de definição de que trata Spinoza, i.e., a das coisas incriadas ou daquelas cuja existência não depende de causas externas, mas tão somente da sua própria essência ou natureza, destacam-se quatro exigências: (i) a definição não envolverá nenhuma causa, diferentemente do que ocorre no caso das coisas criadas; (ii) por expressar exclusivamente a essência do objeto da definição, não restará dúvidas sobre a existência do mesmo, i.e., a existência da coisa incriada será prontamente percebida ou como impossível ou como necessária; (iii) quanto à forma, deverá evitar na medida do possível explicações que  recorram a abstrações e, por fim, tal qual nas definições das coisas criadas; (iv) é preciso que todas as outras propriedades possam ser inferidas da mesma.     

Um último ponto para o qual Spinoza chama atenção do leitor é que a melhor conclusão obtida por uma definição deverá ser tirada de alguma essência particular  afirmativa. Isso porque, segundo ele, quanto mais particular for uma idéia mais distinta e, conseqüentemente, mais clara ela nos parecerá. A dedução de uma essência a partir de outra não ocorrerá, portanto, seguindo o modelo do mais genérico ao mais específico, pois o ponto de partida, bem como todo o encadeamento, só poderá fundar-se no particular. Isso, porém, não quer dizer que Spinoza, na contra-mão da teoria aristotélica, esteja querendo definir as coisas singulares e mutáveis, i.e., os indivíduos para os quais a possibilidade de uma definição estaria vetada tendo em vista as constantes gerações e corrupções a que eles estão submetidos. A diferença está, sobretudo, no encadeamento das essências que, naquele caso, se desdobrava entre o gênero maior e a espécie ínfima, e que neste acontece apenas entre as coisas particulares. 


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Fonte:  
Andréa de Faria Franco Negrão: “DEUS SIVE NATVRA SOBRE AS OBJEÇÕES DE PIERRE BAYLE NO DICTIONNAIRE HISTORIQUE ET CRITIQUE À HIPÓTESE ESPINOSISTA DE UMA SÓ SUBSTÂNCIA”. (Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Orientadora Profa. Dra. Lia Levy). Porto Alegre, 2006

Notas:
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